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Parque Nacional da Serra da Capivara reúne pré-história e natureza de forma espetacular

Parque Nacional da Serra da Capivara reúne pré-história e natureza de forma espetacular

Por Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br

Parque Nacional da Serra da Capivara, situado no sudeste do Estado do Piauí, é uma unidade de conservação brasileira de proteção integral à natureza que ocupa parte dos municípios de São Raimundo NonatoJoão CostaBrejo do Piauí e Coronel José Dias. O Parque abriga a maior e mais antiga concentração de sítios pré-históricos da América (figura 1). As datações, oriundas de métodos luminescentes, indicam até mais de cem mil anos de ocupação humana na região!

Criado por Decreto Federal em 1979 e gerenciado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), uma instituição criada pela arqueóloga brasileira Niède Guidón, e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Parque e suas riquezas arqueológicas aportam novos dados que fazem repensar as teorias de povoamento das Américas, fundamentando testes de hipóteses sobre mais de uma leva migratória oriunda da América do Norte e com possíveis contribuições oceânicas.

Mas não apenas a Arqueologia impressiona no Parque Nacional da Serra da Capivara: a Geomorfologia, as formas de relevo, as geoformas, a paisagem natural, também são magníficas. Não existem muitos estudos sobre esses aspectos, podendo-se citar a pesquisa pioneira de Neres et al. (2011), mas visitas ao Parque Nacional permitiram trazer alguns indicativos da evolução do relevo e da paisagem geomorfológica da região, de forma geral.

O Parque Nacional da Serra da Capivara está na justaposição de dois conjuntos geológicos diferentes. Trata-se das chamadas províncias geológicas do São Francisco, de idade pré-cambriana (mais de 1 bilhão de anos), a leste, e da Bacia Sedimentar do Parnaíbapaleozoica (idade de em torno de 420 milhões de anos para início de formação; CPRM, 2012), a oeste.

A Bacia Sedimentar do Parnaíba, onde se concentra a maioria dos sítios arqueológicos, é caracterizada sobretudo pela presença do denominado Grupo Serra Grande, que representa um conjunto de arenitos e conglomerados depositados na base da bacia sedimentar. O domínio geológico do São Francisco é formado sobretudo por rochas metamórficas de idades e história evolutiva variadas.

Os domínios geológicos sustentam dois domínios geomorfológicos distintos: cuestas (relevos estabelecidos em camadas sedimentares com mergulho, apresentando uma vertente íngreme de um lado e suavemente inclinada de outro) e chapadas (relevos estabelecidos em rochas sedimentares horizontais, com topo plano e vertente íngreme na borda) da Bacia do Parnaíba, e a Depressão Periférica (relevo rebaixado modelado em rochas cristalinas no sopé de cuestas e chapadas) do domínio São Francisco (Figura 2).

Foto de vegetação seca em dois planos de relevo, um baixo e outro em duas elevações planas à direita da imagem
Figura 2. Cuesta da Serra da Capivara, com pouco mais de 600 m de altitude, delimitando no sopé a depressão periférica, do tipo superfície aplainada sertaneja | Foto: Vanda Claudino Sales

As chapadas e cuestas (coloca-se como cuestas, no plural, porque a cornija não é contínua, mostrando-se segmentada em extensos festões) do Parque Nacional da Serra da Capivara são modeladas em rochas de resistências diferentes, algumas bastante tenras, o que permite uma ação erosiva intensa por parte dos agentes climáticos, da água de escoamento superficial e de cursos fluviais, criando relevos do tipo ruínas (relevo ruineforme).

No relevo ruineforme, fragmentos de rocha mais frágeis são removidos, deixando in situ os segmentos mais resistentes. Pela mesma razão – erosão diferencial -, é comum no topo dessas geoformas o aparecimento de cânionspináculos e boqueirões profundos, evidenciando festonamento intenso (figuras 3 e 4). Já a superfície aplainada (depressão periférica) é ocupada por relevos residuais do tipo inselbergs, e corresponde a uma vasta área inclinada suavemente a partir dos bordos das cuestas rumo à calha central dos rios que a dissecam.

Foto de paisagem com vários relevos em tons terrosos sob céu azul
Figura 3. Relevo ruineforme no reverso da cuesta na Serra da Capivara, com pináculos, cânions e boqueirões | Foto: Vanda Claudino Sales

 

Foto de paisagem com vegetação seca em primeiro plano e relevos em tons terrosos por trás sob céu azul
Figura 4. Chapada com cornija festonada, formando pináculos e vestígios de relevo ruiniforme na Serra da Capivara | Foto: Vanda Claudino Sales

Uma das peculiaridades da paisagem geomorfológica local é a existência de grandes blocos rolados, provavelmente produzidos por ação gravitacional com ação combinada da água, e fendas estabelecidas por cursos fluviais pretéritos. Essas feições demonstram a ocorrência de climas mais úmidos no fim do Pleistoceno e início do Holoceno na região, algo em torno de 12 a 10 mil anos atrás (Figura 5). As indicações dos arqueólogos corroboram essas impressões no relevo, pois foi ao longo dessas variações climáticas do Quaternário para climas mais úmidos que o povoamento dos primeiros brasileiros floresceu de forma mais intensa.

Três pessoas tirando fotos entre paredões rochosos em tons terrosos
Figura 5. Fendas estabelecidas em áreas de fraqueza da rocha sedimentar (veios, fraturas) por rios pretéritos (erosão fluvial), com ocorrência também de queda de blocos por ação gravitacional produzidos a partir da ação erosiva na cimeira da chapada. A presença de seixos rolados na superfície basal demonstra que os rios possuíam regime catastrófico, com força para produzir e transportar sedimentos grosseiros | Foto: Vanda Claudino Sales

Além do relevo, coloca-se outras características naturais marcantes da região: o Parque é drenado pela Bacia Hidrográfica do Rio Parnaíba, sub-bacia dos rios Piauí e Canindé. O clima é semiárido, quente, apresentando cursos de água caracterizados por regime intermitente. Na área do Parque nenhum rio importante é permanente, porém existem olhos d’água de regime perene, caldeirões, lagoas temporárias e algumas cavernas que conservam água nas galerias inferiores (NERES et al., 2011). A área está inserida no domínio das caatingas, e apresenta vegetação condicionada pelos elementos do meio físico (rochas, relevo, solos), com zonas de estratificação arbórea, arbustiva e herbácea.

O Parque Nacional da Serra da Capivara é de uma riqueza fenomenal, e por essa razão foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em 1991. O acesso de outras partes do País para o Parque por terra não é fácil. São longas horas de estrada. Recentemente, no entanto, um aeroporto em São Raimundo Nonato começou a receber voos regulares nas quintas e domingos oriundos de Recife. As cidades do entorno, em particular São Raimundo Nonato, apresentam infraestrutura para receber turistas de todas as classes.

O Parque, é preciso salientar, conta com dois museus espetaculares, um de Arqueologia, outro de Ciências Naturais, que nada deixam a desejar aos museus dos países mais ricos. Apenas algumas melhorias poderiam ser implementadas, como a instalação de placas interpretativas das paisagens e do relevo nos principais mirantes, para adicionar outras camadas de informações para os visitantes. A Geomorfologia, com efeito, não existe nas explicações e análises dos dados em todo o circuito do Parque.

Mas a nossa conclusão em relação a essa região é clara: o Parque Nacional da Serra da Capivara representa uma região de valor excepcional, que deveria ser visitada por todos os brasileiros pelo menos uma vez na vida!

Referências bibliográficas

CPRM (Serviço Geológico do Brasil). Geologia, Tectônica e Recursos Minerais do Brasil. Brasília: CPRM, 2003.

Neres, C. C.; Costa, J. L.P.O.; Cavalcanti, A.P.B. Caracterização geomorfológica da área do Parque Nacional Serra da Capivara – Piauí (Brasil) com vistas para o planejamento ambiental. III Workshop Internacional sobre planejamento e desenvolvimento sustentável em bacias hidrográficas. Fortaleza, Ceará, 2011.