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A natureza, o caiçara e o brado: a tradição alimentar como forma de resistência social às mudanças socioambientais

A natureza, o caiçara e o brado: a tradição alimentar como forma de resistência social às mudanças socioambientais

A zona costeira brasileira é dinâmica e vive um processo contínuo de transformação. Desde as tribos indígenas, anteriores à chegada dos europeus ao Brasil, até os povos quilombola e caiçara, que passaram a ocupar o território costeiro, mudanças ambientais, sociais, econômicas e culturais vêm sendo registradas. Mais recentemente esse fenômeno tem sido intensificado nas populações caiçaras, impulsionando mudanças culturais em resposta às novas realidades dessas regiões, conforme constatado pelo antropólogo Antônio Carlos Sant’Anna Diegues, professor da Universidade de São Paulo.

Os caiçaras são habitantes tradicionais das regiões costeiras dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Desde o início do período colonial, eles habitam áreas entre a Mata Atlântica e o mar e se utilizam de diferentes ambientes, como estuários, manguezais, praias, restingas e lagunas, cujos recursos naturais passaram a fazer parte dos seus modos de vida. Enquadram-se aqui as plantas medicinais, os temperos, os troncos para fazer canoas e o pescado, que era abundante nos rios e no mar. O roçado, importante na alimentação caiçara, configurou-se como um elemento do mosaico paisagístico que passou a caracterizar essas regiões.

Mas o que é a cultura caiçara? Segundo Diegues, ela é definida como um conjunto de valores, visões de mundo, práticas cognitivas e símbolos compartilhados, que servem de orientação para os indivíduos se relacionarem entre eles e com a natureza. Essa cultura pode se expressar de forma material, como moradia, utensílios e embarcações, ou imaterial, como linguagem, música, dança e alimentação. Os saberes tradicionais dos caiçaras sobre a natureza, representada pela mata, pelos rios e pelo mar, criaram sistemas de manejo complexos e integrados com o ambiente, de forma que a biodiversidade (também compreendida como alimento) é parte integrante de sua vida social, sendo incorporada aos conhecimentos tradicionais construídos ao longo do tempo e propagados entre gerações.

Entretanto, a mudança nesse estilo de vida, integrado à natureza e dependente dela, intensificou-se no século XX, em particular a partir das décadas de 1950 e 1960, quando a ampliação dos vetores de ocupação levou a um novo tipo de dinâmica demográfica e territorial nas regiões costeiras desses estados. Dentre as mudanças mais evidentes destaca-se a atuação de grileiros e do setor imobiliário para construção de casas de veraneio, processo que levou à apropriação das terras caiçaras. Assim, a vida caiçara foi, pouco a pouco, sendo transformada e ficando sem acesso ao espaço que integrava o mar e a roça. A pesca foi dificultada e a agricultura foi deslocada para os sertões das planícies costeiras.

Concomitantemente a essas modificações, houve a implementação de uma nova política governamental, que estabelecia áreas de proteção ambiental nas quais os usos tradicionalmente realizados pelos caiçaras passaram a ser proibidos. A criação de áreas como o Parque Estadual da Serra do Mar e da Ilha do Cardoso baseava-se na dicotomia entre a ocupação humana e a preservação do meio ambiente. Embora essas áreas tenham combatido o avanço do mercado imobiliário na região, elas criaram um constrangimento adicional a esse povo e intensificaram as pressões sobre suas práticas tradicionais.

Uma das consequências dessas modificações foi a inserção forçada dos caiçaras em um novo cenário social. O êxodo das vilas para os centros urbanos em processo de consolidação, como a região central de Ubatuba, no litoral norte do Estado de São Paulo, provocou mudanças nos modos de viver no território tradicional. Pode-se dizer que essas mudanças tiveram, como consequência, o desacoplamento do caiçara de suas raízes, literalmente. O distanciamento do mar, da pesca e da floresta e a dificuldade de praticar o roçado e de construir novas canoas impactaram a alimentação do caiçara.

Essa nova condição também levou ao distanciamento dos jovens em relação aos membros mais antigos das comunidades, cujos conhecimentos e costumes passaram a ter pouca repercussão em suas práticas, incluindo a culinária. A alimentação tradicional também foi afetada significativamente pela diminuição da abundância de peixes e pela degradação da qualidade do meio ambiente, ocasionada pelo aumento do fluxo de pessoas para o litoral e da urbanização. Adicionalmente, a praticidade e a conveniência da vida moderna ampliaram o acesso a produtos industrializados, como alimentos processados, que modificaram a dieta tradicional. Essa “industrialização” foi intensificada pelo modelo de turismo de sol e praia que se instalou na região, com pouca valorização das práticas tradicionalmente realizadas por essas comunidades.

Entretanto, apesar da alimentação tradicional caiçara ter sido influenciada por esse processo, nos últimos anos o capital cultural ainda existente tem sido resgatado e valorizado, como resultado de movimentos semelhantes ao do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, que buscam um novo diálogo entre a comunidade caiçara e o litoral em transformação. Um exemplo são as iniciativas de turismo de base comunitária, que têm a indissociabilidade entre o ser humano e a natureza como essência. Nesse contexto, a tradição alimentar tem sido um ativo caiçara. E sua manutenção tem sido feita pelos mais velhos que, por exemplo, cultivam em seus quintais produtos tradicionalmente utilizados na culinária caiçara, entre eles a mandioca, batata-doce, cará, cará-moela, cará-espinho e inhame; e frutos como banana, cambuci e gabiroba. Além disso, os caiçaras continuam sendo um povo ligado à pesca e tendo a salga e a defumação do pescado como parte presente em sua alimentação. Como resultado, a culinária caiçara está sendo cada vez mais valorizada pelo seu simbolismo.

Esse cenário revela, portanto, uma oportunidade para o fortalecimento da identidade cultural caiçara a partir da sua culinária, a qual pode ser ressignificada como um instrumento de resistência social. Um brado, que reconecta o caiçara e a natureza, conforme argumentado pelo economista Valter Palmieri Junior no artigo A gourmetização em uma sociedade desigual: um estudo sobre a diferenciação no consumo de alimentos industrializados no Brasil, publicado em 2017. Palmieri considera a alimentação como uma das formas que a cultura popular encontra para estruturar a identidade social, pois por meio dela existem diferentes momentos de interação com a cultura de um povo, como a aquisição, o consumo e o preparo de alimentos. Um brado, que evidencia a analogia entre a alimentação e a linguagem proposta pelo historiador Massimo Montanari no livro Comida como cultura, publicado em 2004, que as considerou como sistemas de sinais que transmitem valores simbólicos e significados de natureza variada, econômica, social, política, religiosa, étnica e estética.

Desse modo, é possível traçarmos um paralelo entre o que é citado por Diegues, Palmieri e Montanari, dando à culinária caiçara um papel semelhante ao relato oral, auxiliando na transmissão e fortalecimento do conhecimento tradicional e construindo uma ponte entre o passado e o presente com o futuro, que depende de um oceano limpo, produtivo, inclusivo e socialmente justo.

*Por Guilherme Gonçalves Marques, discente do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, Alexander Turra, professor do IO-USP, e Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, discente do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, Alexander Turra, professor do IO-USP, e Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano