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O “Homo” é mais ou menos “sapiens”? A encruzilhada da inteligência artificial. Artigo de Vito Mancuso

O “Homo” é mais ou menos “sapiens”? A encruzilhada da inteligência artificial. Artigo de Vito Mancuso

O verdadeiro problema não é que as máquinas se tornem como os humanos, mas sim que os humanos se tornem como as máquinas. Abandonada a ilusão de permanecermos os maquinistas, estamos nos transformando em maquinários.

A reflexão é do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado por La Stampa. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Falando em inteligência artificial, estamos falando de algo muito distante e muito próxima. Muito distante, porque pouquíssimos decidem sobre ela. Quantos haverá no mundo? Oito? Oitenta? Acho que não são muitos mais do que isso, tamanho é o poder tecnológico e econômico para poder construí-la. Muito próxima, porque ela diz respeito diretamente a todos nós, sem excluir ninguém dos oito bilhões que somos.

Essa desproporção entre uma cúpula muito pequena e uma base imensa é um dos elementos mais peculiares e mais preocupantes da matéria chamada inteligência artificial.

Por isso, é necessário que cada um esclareça a si mesmo o que a inteligência significa para ele ou para ela. A pergunta é pessoal: o que é inteligência para você? O que você acha que ela representa no mundo? E o que representa para você? É um instrumento ou um objetivo? Você se serve dela ou quer servi-la?

Eu acho que tudo depende disto: dessa opção fundamental. Se a inteligência for um instrumento em função de outra coisa (riqueza, poder, prazer), teremos uma certa abordagem à inteligência artificial. Se, em vez disso, for um objetivo, teremos uma abordagem totalmente diferente. Se, além disso, a inteligência for “o” propósito da nossa vida, especialmente aquela inteligência associada à justiça e à bondade, que se chama sabedoria, então a abordagem será ainda diferente. Na minha opinião, a certa.

Acho que a inteligência é o princípio estrutural e estruturante do mundo. Não existe fenômeno físico que não seja o resultado de uma agregação. Tudo procede de uma lógica de cooperação intrínseca à matéria e à energia, tudo é harmonização. É claro que também existe o conflito, muitas vezes muito violento, mas, a partir do conflito e das catástrofes, surgem outros níveis de organização e de complexidade.

Não estou dizendo que vivemos no melhor dos mundos; estou dizendo que “vivemos”: o que não é de forma alguma um dado evidente neste imenso universo escuro e frio. Nele, graças à inteligência como criação de vínculos a partir dos atômicos e subatômicos, surgiu a vida.

Todo ser vivo é um centro computacional que tende à coleta e ao processamento de informações. Todo ser vivo é um computador, e como tal é uma expressão da inteligência cósmica. A inteligência não é uma peculiaridade humana, é a alma do mundo.

Homo technologicus

Contudo, existe uma peculiaridade quantitativa e qualitativa da inteligência humana que nos levou a cultivar fins não apenas naturais. Foi assim que nasceram a técnica e a cultura. O ser humano é técnico ao mesmo tempo em que é sapiensHomo technologicus e Homo sapiens são a mesma coisa, a origem da técnica e da cultura é a mesma: é a superação da necessidade natural. Agora atenção: a inteligência artificial consiste na transferência dessa nossa peculiaridade mais preciosa para as máquinas.

Elas foram construídas por nós e, do ponto de vista da capacidade de coleta e de processamento de informações em que consiste a inteligência, tornam-se como nós; ou, melhor, mais poderosas. O que vale não apenas para processos lineares como o cálculo, mas também para processos não lineares como a criatividade artística e musical, e até mesmo para a capacidade de gerar empatia. O que significa essa transferência da nossa inteligência e dos nossos sentimentos? O que significará daqui a algumas décadas? Um progresso ou um regresso do fato de sermos humanos?

Para responder, é necessário que cada um esclareça a si mesmo o que significa “humano”. Eu acho que significa liberdade. Um ser humano realiza sua humanidade quando é livre, e é livre quando desenvolve o conjunto destas três qualidades: consciência, criatividade e responsabilidade. Não somos apenas inteligência, somos também a liberdade de utilizá-la de uma forma ou de outra. Portanto, quanto mais a inteligência artificial promove a liberdade, mais favoravelmente deve ser considerada. Quanto menos, menos.

Faca com lâmina afiada

Porém, impõe-se esta outra consideração, ou seja, de que é preciso avaliar a inteligência artificial não apenas em si mesma, mas também à luz do contexto em que ela opera. Como considerar uma faca com uma lâmina muito afiada que corta tudo instantaneamente? Se eu a considerar em si mesma, só posso achá-la um instrumento muito útil, mas, se a considerar à luz do contexto em que se encontra, e se esse contexto for uma escola primária, então o julgamento deve mudar radicalmente.

Enquanto a inteligência artificial for utilizada pelos pesquisadores nos laboratórios, pelos médicos em hospitais e em geral por seres humanos maduros, ela não me assusta nem um pouco; pelo contrário, eu a avalio positivamente e a saúdo com alegria. Porém, manuseada por seres humanos imaturos e barbarizados, pode ser deletéria.

E hoje assistimos a um preocupante processo involutivo. Kant saudava os seus dias como “a saída do homem do estado de minoria”, e nós nos encontramos às voltas com aquilo que Amós Oz definiu como “infantilização das massas”.

O século XX foi o século da tecnologia como instrumento. Este novo século será lembrado como o século da tecnologia que se tornou finalidade? De fato, a técnica é cada vez mais autopoiética, cresce, evolui, expande-se e em breve chegará a modificar o nosso mundo exterior e o nosso mundo interior. Ela já está fazendo isso, a passos de gigante.

Uma questão de instinto

Todos nós, instintivamente, pensamos que podemos nos servir ou não da técnica, permanecendo ainda seus senhores. E, de fato, podemos ter ou não ter, usar pouco ou usar muito, as tecnologias. Na teoria. Na prática, porém, é preciso fazer as contas com seu poder de sedução, especialmente nos jovens, e, ao fazer isso, percebemos que a técnica já está agora prestes a derrotar todas as outras formas de informação, de conhecimento e até de comunicação: muitos genitores afirmam que tem mais efeito falar com seus filhos pelo celular do que face a face.

Em breve, mandaremos a máquina humanoide que circulará pelas nossas casas falar com nossos filhos, dotada de inteligência e de capacidade de despertar empatia, e que resolverá os conflitos porque sempre saberá encontrar as palavras certas sem nunca se descompor (como, ao contrário, ocorre com os humanos ao lidarem com seus próprios filhos ou genitores). E assim todos ficaremos gratos, porque a harmonia reinará nas nossas casas graças ao novo oráculo de Delfos personalizado. Mas quem será realmente o senhor?

O verdadeiro problema não é que as máquinas se tornem como os humanos, mas sim que os humanos se tornem como as máquinas. Abandonada a ilusão de permanecermos os maquinistas, estamos nos transformando em maquinários. Está em curso uma mudança do mundo interior com base na qual nos tornamos cada vez mais semelhantes às máquinas, no sentido de que o nosso pensamento é cada vez mais executivo, linear, plano, esquemático: sim ou não, preto ou branco, te odeio ou te amo. E tudo cada vez mais rapidamente, imediatamente!

A inteligência, porém, não é apenas um instrumento operacional e de alto desempenho para o problem solving; é também um instrumento crítico e duvidoso do problem posing, de processamento contracorrente, de oposição, de resistência, de sonho, de imaginação, de utopia. Hoje, porém, a mente tende a operar cada vez menos livremente, e vemos que sua maquinização está em curso e está ganhando não só nas empresas, mas também nos hospitais e nos ambulatórios, e até nas escolas e universidades.

O império da burocracia é o sinal mais evidente do mundo comandado pela máquina e por seus procedimentos. A inteligência artificial aumentará a ditadura da burocracia e a pedante meticulosidade dos burocratas, ou poderá até nos libertar delas?

O nosso cérebro é um órgão plástico, sempre em devir; por meio do uso, ativa algumas funções; por meio do não uso, desativa outras. Quando eu era menino, sabia de cor dezenas de números de telefone; hoje, com a lista telefônica, não sei nem os dos meus filhos.

Tudo isso deveria nos preocupar muito, porque a dialética escravo-senhor sobre a qual Hegel escrevia na “Fenomenologia do espírito”, e que tanto agradava a Marx pela inversão dialética que previa, pode se realizar na relação homem-máquina.

O fim da vida humana é a liberdade e não uma série de desempenhos técnico-operacionais, que também são importantes. Por isso, o fim da inteligência artificial deve ser e continuar sendo a inteligência “natural”, em sua capacidade de gerar liberdade, e não as contas bancárias daqueles pouquíssimos que a produzem e que em breve vão vendê-la a nós, ou o poder daqueles ditadores que já se servem dela e irão se servir cada vez mais para fortalecer seu domínio.