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Todos os anos, águas vivas causam milhares de acidentes nas praias do Brasil – e o número está aumentando

Todos os anos, águas vivas causam milhares de acidentes nas praias do Brasil – e o número está aumentando

Por trás do crescimentos dos casos podem estar as mudanças climáticas, que aquecem as águas, o que atrai espécies de outras regiões

No verão, milhões de brasileiros – além dos turistas estrangeiros – acorrem a alguma das cerca de 2.100 praias do país, espalhadas por 7.600 km de litoral, para aproveitar o sol, o calor ou dar um mergulho refrescante. Mas é aí, na água, que mora o perigo. Também aos milhões, animais de variados tamanhos, mas praticamente invisíveis, flutuam livremente e se deslocam ao sabor das ondas e do vento. São as águas-vivas e caravelas, organismos que pertencem ao filo Cnidária, que reúne ainda entre seus principais representantes as anêmonas-do-mar, os corais e as hidras.

Mas não se deixe enganar pela sua aparente placidez. Eles podem causar danos, que vão de leve a graves “queimaduras”, causando dores com diferentes níveis de intensidade e, em casos raros, até a morte da vítima. Três principais fatores contribuem para que os acidentes com águas-vivas e caravelas sejam mais comuns no verão: a coincidência com o período de reprodução das espécies, a circulação de correntes marinhas e a maior presença de banhistas e dos próprios cnidários.

O que não se sabe com exatidão sobre esses animais é número de acidentes causados por eles. Não há nenhum levantamento nacional, mas apenas dados esparsos aqui e ali. Servem, no entanto, para dar uma ideia geral do problema. Um aumento súbito da população de cnidários em um local é chamado de afloramento de medusas ou “bloom”. Em um deles, no verão 2011/2012, no litoral do Paraná, por exemplo, foram registrados mais de 20.000 acidentes pela espécie Chrysaora lactea, segundo dados coletados pelo Corpo de Bombeiros do estado.

Números mais recentes, referente a janeiro de 2017, indicam mais de 6.600 casos no litoral catarinense. No Rio Grande do Sul, de acordo com um estudo que tem como um dos autores o biólogo Renato Mitsuo Nagata, do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), o corpo de bombeiros registrou a ocorrência de mais de 254 mil envenenamentos em dois verões consecutivos.

Desse total, 193.111 ocorreram entre 15 de dezembro de 2017 e 3 de março de 2018, e 57.634 entre 15 de dezembro de 2018 e 25 de janeiro de 2019. Em Santa Catarina, o Corpo de Bombeiros contabilizou 5.728 lesões por água viva no litoral do estado na última Operação Veraneio, entre18 de dezembro de 2022 e 6 de março deste ano.

Embora ainda não haja dados suficientes que comprovem o fato no Brasil, há evidências de que o número de acidentes por águas vivas e caravelas está aumentando pelo planeta. “Infelizmente não temos dados científicos para demonstrar que o número de águas vivas está aumentando ultimamente, mas há estudos em outras regiões do mundo que apontam que sim, que as populações delas podem estar aumentando”, diz Nagata.

Entre as causas desse fenômeno, há evidências de que mudanças climáticas podem estar afetando a ocorrência de águas vivas. “Principalmente na região em que estamos estudando”, conta Nagata. “Nós estamos habituados com aquelas que ocorrem nesta região subtropical. Com o aquecimento das águas, no entanto, espécies tropicais podem estar se expandindo para cá”.

É o caso da caravela-portuguesa, que é venenosa e pode estar ocorrendo em maior frequência no litoral do sul do país. “Esse fenômeno é chamado de tropicalização dos ambientes, ou seja, espécies de regiões quentes se expandindo para áreas mais frias em resposta ao aquecimento dos oceanos. Isso ocorre no mundo inteiro e não só com águas vivas, mas com outros organismos marinhos também”, afirma o biólogo.

No Brasil, isso vem acontecendo principalmente no estados do Sul do país em maior grau e em São Paulo, onde os acidentes são em menor número. Na realidade, águas-vivas e caravelas são registradas em todo o litoral brasileiro. “No Norte e Nordeste do Brasil elas ocorrem o ano todo”, diz o biólogo Alberto Lindner, do Laboratório de Biodiversidade Marinha da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que vem monitorando a presença desses organismos no litoral do seu estado desde 2019. “Mas nas regiões de características subtropicais, como, por exemplo, no Sudeste e no Sul do Brasil, elas aparecem com maior frequência no verão.”

Nagata informa que águas-vivas ou mães-d’água têm formato de guarda-chuva ou prato. “Seu corpo é transparente e parece gelatina, pois 95% é formado por água, e têm tentáculos, que em algumas espécies podem chegar a 30 metros”, explica. “São conhecidas mais de 2.000 tipos, mas a maioria é pequena e inofensiva. Cerca de 70 delas, no entanto são maiores e venenosas, causando as popularmente chamadas “queimaduras” na pele. Mas não é o termo correto, pois não ocorrem queimaduras de fato, já que esses animais são frios.”

Cifomedusa Chrysaora lactea — Foto: Getty Images
Cifomedusa Chrysaora lactea — Foto: Getty Images

Algumas são mais comuns do que outras e, por isso, causam mais acidentes no litoral brasileiro. “No país, são registrados acidentes com a caravela-portuguesa (Physalia physalis), as cubomedusas Tamoya haplonema e Chiropsalmus quadrumanus, a cifomedusa Chrysaora lactea e a hidromedusa Olindias sambaquiensis”, conta o também biólogo Antonio Carlos Marques, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

Segundo ele, todas as águas vivas (e seus pólipos – fase da vida em que vivem presas em substratos no fundo marinho) têm veneno, que usam para se alimentar e se defender, mas não necessariamente ele faz mal ao ser humano. “Mas algumas tem coquetéis de toxinas muito potentes e, dentre estas, as cubomedusas são o destaque”, explica. “Mas não há mortes registradas no Brasil, no entanto. De fato, o animal mais venenoso conhecido é uma cubomedusa, a vespa-do-mar-do-Pacífico (Chironex fleckeri), que vive na costa australiana, com diversos óbitos associados a ela — mas há outras.”

Seu colega no IB-USP, André Morandini, diz que águas-vivas e caravelas causam acidentes porque possuem células, chamada de cnidócitos, com estruturas urticantes, as cnidas. “Estas cnidas lembram micro arpões que injetam veneno na presa ou no predador”, explica. “Quando encostamos nesses animais, essas estruturas disparam e temos sensações desagradáveis (dor, ardência, e outras possíveis reações sistêmicas).”

Das espécies que causam acidentes, a Olindias sambaquiensis mede no máximo 10 cm e provoca intoxicações moderadas. De acordo com a publicação “Um guia sobre mães-d’água e caravelas do litoral gaúcho”, escrita por Nagata e seu grupo, é a principal água-viva causadora de acidentes no Rio Grande do Sul, que deixa dolorosas marcas vermelhas. Complicações como alergias são raras. A espécie possui inúmeros tentáculos finos alaranjados ou lilases saindo de sua borda. Suas gônadas alaranjadas formam um “X” no centro do animal.

Comum no início do verão, a Chrysaora lactea tem o dobro do tamanho e pode provocar intoxicações leves e moderadas. Ela é mais frequente em Santa Catarina e no Uruguai, mas ocorre eventualmente no litoral gaúcho. Segundo o guia, pode ter coloração diversa, rosada, roxa, leitosa ou com polígonos vermelhos. Possui longos e finos tentáculos saindo de sua borda.

Caravela-portuguesa se caracteriza por ter um flutuador roxo-azulado com formato de bexiga e tentáculos — Foto: Getty Images
Caravela-portuguesa se caracteriza por ter um flutuador roxo-azulado com formato de bexiga e tentáculos — Foto: Getty Images

Entre as espécies mais perigosas, a caravela-portuguesa também mede 20 cm e se caracteriza por ter um flutuador roxo-azulado com formato de bexiga e tentáculos que chegam a até 30 m, que causam intoxicações que podem ser graves. É mais comum no Nordeste e Sudeste do Brasil, porém há grandes encalhes no verão em praias do Rio Grande do Sul. Suas lesões causam linhas vermelhas bem características.

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O que fazer

– Sair da água imediatamente, porque o envenenamento pode causar câimbras e há risco de afogamento.

– Lavar com água do mar para retirar restos de tentáculos aderidos.

– Lavar com vinagre por alguns minutos para desativar o veneno e aliviar a dor.

-Lavar com água do mar gelada ou gelo artificial envolto por panos, o que também ameniza a dor.

O que não fazer

– Nunca urinar, nem colocar álcool ou refrigerante sobre a lesão, pois não há comprovação de eficácia dessas substâncias em amenizar os efeitos da lesão.

– Nunca lavar com água doce, uma vez que a medida pode aumentar o envenenamento e agravar a lesão.

– Não usar toalhas, areia ou outro material abrasivo para retirar restos de tentáculos, pois isto também pode aumentar a injeção de toxinas por explodir as cápsulas com veneno.