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Sobre a tutela jurídica dos solos

Sobre a tutela jurídica dos solos

Os solos e os subsolos, por força de lei, são considerados recursos ambientais. Logo, inserem-se na proteção constitucional do artigo 225 da Carta Política de 1988, além de serem considerados direitos fundamentais. Por isso, devem ser utilizados respeitando à sua aptidão, capacidade de uso e resiliência, com vias a atingir a sustentabilidade, fruto de uma eficiente governança.

Necessário relembrar que o uso antrópico do solo, sem a observância dos critérios de resiliência, sustentabilidade e aptidão, provoca degradação ambiental, pois, na forma da Lei federal 6.938/81 e de outras, causa alteração adversa das características do meio ambiente.

O dano ambiental, na legislação brasileira, se submete à responsabilidade civil objetiva e à teoria do risco integral, reclamando somente a prova do nexo de causalidade, que fornece importante instrumento de tutela jurídica do solo para a atuação do Ministério Público brasileiro.

Na pedosfera [1], ocorre a grande maioria dos processos hidrológicos e geoquímicos que sustentam funções ecológicas essenciais e os serviços ecossistêmicos.

Raras vezes buscou-se proteção ao solo em razão da sua própria natureza jurídica, ou seja, como recurso ambiental em si considerado e direito fundamental previsto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Por força de disposição legal, o solo é considerado um recurso ambiental. De acordo com a Lei Federal nº 6.938, de 31/8/1981:

“Art. 3º — Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
… omissis …
V — recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora (…)”
 [2].

Diante da clareza do texto normativo citado, não há nenhuma dúvida de que o solo e o subsolo são recursos naturais e ambientais em si considerados.

Entre as inúmeras definições de solo, optamos por adotar a utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em seu “Manual Técnico de Pedologia”:

“Solo é a coletividade de indivíduos naturais, na superfície da terra, eventualmente modificado ou mesmo construído pelo homem, contendo matéria orgânica viva e servindo ou sendo capaz de servir à sustentação de plantas ao ar livre. Em sua parte superior, limita-se com o ar atmosférico ou águas rasas.
Lateralmente, limita-se gradualmente com rocha consolidada ou parcialmente desintegrada, água profunda ou gelo. O limite inferior é talvez o mais difícil de definir. Mas o que é reconhecido como solo deve excluir o material que mostre pouco efeito das interações de clima, organismos, material originário e relevo, através do tempo (…)”
 [3].

Comprovado legal e cientificamente que o solo é um recurso ambiental, não remanesce dúvida de que sua proteção se insere no conceito holístico do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que localiza esse ecossistema como direito fundamental, mas também como fornecedor de funções ecossistêmicas e serviços ambientais capazes de suprir as necessidades humanas. Notadamente, através da produção de alimentos.

É necessário aferir se a degradação desse ecossistema, decorrente da intervenção antrópica que não respeitou sua aptidão, capacidade de suporte e resiliência, eleva-se à categoria de dano ambiental nos termos da Lei Federal nº 6.938/81.

Sendo assim, é central definir o que se entende como dano ambiental.

O conceito de degradação — e, consequentemente, de dano ambiental — tem sede normativa de conhecimento geral, a Política Nacional do Meio Ambiente — Lei Federal 6.938/81, no artigo 3º, incisos II e III, o definem.

Segundo os conceitos agronômicos, a erosão é um processo natural. Contudo, se resta agravada ou amplificada pela ação humana ou antrópica, produz alteração adversa no solo e nas características fundamentais ao meio ambiente, degradando sua qualidade.

Segundo o Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo:

“A erosão pode ser ‘natural’ ou ‘geológica’, que se desenvolve em condições de equilíbrio com a formação do solo; e ‘acelerada’ ou ‘antrópica’, cuja intensidade é superior à da formação do solo, não permitindo a sua recuperação natural.
A erosão acelerada pode ser de dois tipos: erosão laminar, ou em lençol, ‘quando causada por escoamento difuso das águas das chuvas, resultando na remoção progressiva dos horizontes superficiais do solo’; e erosão linear, ‘quando causada por concentração das linhas de fluxo das águas de escoamento superficial, resultando em incisões na superfície do terreno’ na forma de sulcos, ravinas e boçorocas e solapamento de margens de canal.
A erosão laminar é dificilmente perceptível, porém é evidenciada pela tonalidade mais clara dos solos, exposição de raízes e queda da produtividade agrícola. É determinada a partir de cálculos, segundo a Equação Universal de Perdas de Solo (USLE), levando em conta os índices: erosividade da chuva, erodibilidade, comprimento de rampa, declividade do terreno, fator uso e das feições lineares, os sulcos são pouco profundos (inferiores a 50 cm) e podem ser mais facilmente corrigidos por meio da melhoria do manejo do solo. Este tipo de erosão está geralmente associado a áreas rurais e ocorre sob a forma de áreas de concentração, sendo induzidas pelos seguintes fatores:
a) manejo agrícola inadequado em áreas de cultura, sem a adoção de práticas conservacionistas, como o simples plantio sem obedecer às curvas de nível e sem a implantação de terraços e canais escoadouros vegetados; solos preparados de forma inadequada e culturas de má cobertura, além de outras situações. Normalmente ocorre a formação de sulcos de forma generalizada em toda a vertente, sendo comum a evolução para ravinas e boçorocas nos pontos de concentração do escoamento superficial;
b) modificação do escoamento das águas pluviais condicionado por trilhas de gado, carreadores, cercas, divisas antigas e áreas de empréstimo, que aduzem e concentram as águas pluviais. As ravinas são feições de maior porte, profundidade variável, de forma alongada e não atingem o nível d’água subterrânea, onde atuam mecanismos de desprendimento de material dos taludes laterais e transporte de partículas do solo (…) (PHA.POLI.USP, 2021)”.

Há farta legislação infraconstitucional que determina a conservação do recurso natural solo, ainda que de forma genérica. Por exemplo, a Lei Federal nº 12.651/12 (artigo 1º, parágrafo único, inciso I), a Lei Federal nº 8.171/91 (artigo 48, inciso III) e a Lei Federal nº 4.504/64 (artigo 89), entre outras.

O Censo Agropecuário de 2017 indicou que o Brasil tem de 159 milhões de hectares — 45% de toda a área produtiva — ocupada com pastagens [4]. Ou seja, o número de hectares destinado à pecuária corresponde a quase metade de toda a matriz produtiva. Não obstante esses números superlativos, infelizmente, como afirmado pela própria Embrapa [5], mais de cem milhões de hectares estão com algum grau de degradação.

De forma inédita na tutela jurídica dos solos como bem ambiental e recurso natural em si considerado, com o apoio de várias instituições de ensino superior, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP-MG), através da Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas dos Rios Paranaíba e Baixo Rio Grande, está desenvolvendo o Sistema de Apoio no Diagnóstico de Pastagens Degradadas (Sipade).

O sistema, de baixo custo, será dividido em duas soluções: a) um website responsivo, a ser utilizado em computador, notebook, tablet ou smartphone; e b) um aplicativo disponibilizado via serviços de distribuição eletrônica de software (Google Play Store, App Store etc).

De forma simples, o Sipade, valendo-se de imagens do satélite Modis, avalia o Índice de Normalização da Vegetação (NDVI), que fornece um indicativo de degradação, dentro de uma matriz prévia, que divide a pastagem em quatro cenários, quais sejam: a) pastagem sadia; b) pastagem com presença de plantas invasoras que indicam início de degradação; c) pastagem com a presença de plantas invasoras e cupins, indicando estágio médio de degradação; d) pastagem com solo desnudo e processo erosivo intenso que denote pasto degradado e, por consequência, dano ambiental.

Os dados serão tratados exclusivamente em ambiente digital e a tramitação entre os órgãos fiscalizadores e o Ministério Público de Minas Gerais e o sistema será realizado, de forma inicial e como piloto, na zona rural da área de proteção ambiental (APA) do Rio Uberaba, município de Uberaba (MG).

As entidades fiscalizatórias (Polícia Militar de Meio Ambiente, Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Secretarias Municipais de Meio Ambiente) serão previamente cadastradas e, através de tabletssmartphonesnotebooks ou qualquer outro aparelho eletrônico, poderão utilizar o Sipade — inclusive off-line — e, após o trabalho de campo, baixar os dados, gerar os laudos e encaminhá-los as unidades dos Ministérios Públicos brasileiros. Enfim, o Sipade representa um grande salto tecnológico na atuação da defesa do meio ambiente, pois possibilitará a defesa direta do recurso ambiental solo, em si considerado, através da atuação resolutiva do Ministério Público.

A tutela efetiva do solo possibilitará que cerca de cem milhões de hectares, o equivalente a cem milhões de campos de futebol, recebam o manejo adequado, sendo este entendido como o respeito à aptidão, uso, conservação e resiliência desse recurso natural.

Ora, se temos em nossa matriz produtiva, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, 351 milhões de hectares em produção e, destes, cem milhões ocupados por pastagens com algum tipo de degradação, não é mais adequado, eficiente e ambientalmente justo reutilizarmos as referidas áreas, trazendo-as novamente para o sistema produtivo, logo, dimuindo a pressão sobre novas áreas ainda preservadas, quiçá ensejando uma moratória do desmatamento?

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com a idealização e consolidação do Sipade, busca mudar o atual cenário de degradação das pastagens. As geotecnologias e a boa ciência, praticadas de ponta a ponta, aliadas à atuação resolutiva do Ministério Público brasileiro e à demonstração das perdas econômicas, sociais e ambientais, fomentarão a tutela jurídica do solo.

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20 de março de 2021.

BRASIL. Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília: DF, Presidência da República, 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938compilada.htm. Acesso em: 18 de março de 2021.

BRASIL. Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política agrícola. Brasília, DF: Presidência da República, 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8171.htm>. Acesso em: 20 de março de 2021

IBGE. Censo Agropecuário 2017. Brasília, DF: IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2017. Disponível em: <https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/templates/censo_agro/resultadosagro/estabelecimentos.html>. Acesso em: 20 de março de 2021.

IBGE. Manual técnico de pedologia. 2ª ed. Brasília, DF: IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2007. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv37318.pdf>. Acesso em: 18 de março de 2021.

DIAS-FILHO, Moacyr Bernardino. Diagnóstico das pastagens no Brasil. Belém, PA: Embrapa Amazônia Oriental, 2014, p. 26). Disponível em: <https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/986147/1/DOC402.pdf>. Acesso em: 18 de março de 2021.

[1] Segundo o “Dicionário Informal”, “a pedosfera é a camada mais externa da Terra e é composta do solo e sujeita a processos de formação de solo. Assim, designa o conjunto dos solos a nível mundial. A pedosfera existe da interação entre a litosfera, atmosfera, hidrosfera e biosfera”. Disponível: <https://www.dicionarioinformal.com.br/significado/pedosfera/13779/>. Acesso em: 21.01.2021

[2] BRASIL. Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília: DF, Presidência da República, [1981]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938compilada.htm. Acesso em: 18 de março de 2021.

[3] SOIL TAXONOMY (1975) e SOIL SURVEY MANUAL (1984) apud IBGE. Manual técnico de pedologia. 2ª ed. Brasília, DF: IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2007. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv37318.pdf>. Acesso em: 18 de março de 2021.

[4] IBGE. Censo Agropecuário 2017. Brasília, DF: IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2017. Disponível em: <https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/templates/censo_agro/resultadosagro/estabelecimentos.html>. Acesso em: 18 de março de 2021.

[5] O pesquisador Dias-Filho apontou: “Com base no total das áreas de pastagens do Brasil,segundo cálculos oficiais (IBGE, 2007), seria possível estimar que em torno de 100 milhões de hectares de pastagens no País estariam com nível de degradação forte ou moderado, necessitando sofrer alguma forma de intervenção” (DIAS-FILHO, Moacyr Bernardino. Diagnóstico das pastagens no Brasil. Belém, PA: Embrapa Amazônia Oriental, 2014, p. 26). Disponível em: <https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/986147/1/DOC402.pdf>. Acesso em: 18 de março de 2021.

Carlos Alberto Valera é doutor em Agronomia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/FCAV), campus Jaboticabal/SP, colíder do Grupo Política de Uso do Solo (Polus), Unesp FCAV, membro colaborador da Comissão de Meio Ambiente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), vice-diretor da Região Sudeste da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas (MPMG) e coordenador regional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas dos Rios Paranaíba e Baixo Rio Grande.