“Precisamos do crescimento digno e sustentável”
Garantias mínimas precisam ser asseguradas para que o trabalhador tenha proteção social na revolução digital, que mudou o arranjo de forças com a ”uberização” e a prestação de serviços remota
O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, Leonardo Trajano, não hesita quando o tema das discussões envolvendo relações do trabalho chega ao mundo digital.
Para ele, não há como ignorar que as plataformas de mobilidade e outros tipos de trabalho moderno trouxeram mudanças profundas. E são mudanças que afetam o tecido social em áreas díspares, que vão da remuneração pelo serviço prestado à proteção social.
Trajano só não admite que se relegue a um plano secundário, a garantia de uma vida digna e sustentável aos trabalhadores. Nessa conversa com A União, Leonardo Trajano faz uma análise dos avanços e retrocessos socais, da necessidade de se promover uma discussão profunda no Parlamento e da reação da Justiça aos avanços dos conflitos criados pelas relações sociais no Brasil.
E esse cenário deu passos mais longos e céleres com a pandemia provocada pelo vírus covid-19, que exigiu de todos um repensar da convivência social e, especialmente, no trabalho, com a efetivação das estações remotas com a prestação de serviços de forma digital, o que transformou a residência em local de trabalho. Ele é taxativo quando é questionado sobre quais direitos não podem ser transgredidos seja qual for a hipótese: “assinatura de carteira profissional, recolhimento de fundo de garantia por tempo de serviço, jornadas de trabalho incompatíveis com a fixada na legislação”.
A entrevista
Como o senhor está avaliando a precarização do trabalho, especialmente depois da pandemia?
O tecido social, com toda a crise econômica oriunda da pandemia está muito esgarçado e esse esgarçamento atrai uma dificuldade tremenda do empreendedor, do empregador sobretudo do micro e pequeno empreendedor e empregador em manter as condições de emprego dignas aos trabalhadores. É nessa situação, vivenciada no momento, que se afasta o trabalho digno, sustentável. As pessoas precisam continuar a ter a sua renda e se submetem a situações realmente bastante deploráveis. Esse momento é de crise e a Justiça do Trabalho precisa estar atenta e se deparando com esse tipo de situação, com esse tipo de demanda, a aplicar a lei da melhor forma possível.
Quando se refere a situações deploráveis que exemplo, se poderia dar?
Pela ausência dos direitos mais básicos: assinatura de carteira profissional, recolhimento de fundo de garantia por tempo de serviço, jornadas de trabalho incompatíveis com a fixada na legislação. A violação dos direitos mais básicos e fundamentais que são assegurados aos trabalhadores.
O senhor acredita que essa precarização aumentou exatamente por conta dessa pressão social causada pela pandemia, o Brasil já vinha ensaiando alguma quebra de contrato, com ameaças ao direito dos trabalhadores?
O futuro do mundo do trabalho enseja uma reflexão muito profunda. Essa precarização – eu diria que ela está intimamente ligada com o que se denomina “uberização” – com esse trabalho, que é desenvolvido pelos trabalhadores das plataformas digitais. É a “tempestade perfeita”. Esse fenômeno do futuro das relações do trabalho ainda não, ainda não contemplado, não tratado de forma específica pela legislação, que foi “apimentado” pela pandemia.
Até a doutrina ainda não tem corrente definida sobre o tema?
No mundo todo há uma discussão severa. Em alguns países de tradição liberal, como Inglaterra e Estados Unidos, se reconhece uma relação de emprego dos trabalhadores de plataforma com a empresa. O Tribunal de Lion, na França, não reconhece a relação de emprego e aqui no Brasil há decisões díspares.
Há saída?
Se faz necessário uma ampla discussão e o fórum apropriado para isso é o parlamento para que se debata e se chegue a uma proposta legislativa para contemplar os trabalhadores da economia digital.
Cujos contratos de trabalho exigem um tratamento especial?
Sim. Não hesito em afirmar que esses trabalhadores não podem ser tratados ou ter sua relação regulada pelo Código Civil, como profissionais liberais ou autônomos. E talvez a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – não seja capaz de regular de forma adequada essas relações. Seria fundamental um estudo profundo do Parlamento para se chegar a uma legislação que reconhecesse essa “subordinação algorítma”.
O que caracteriza a relação do trabalho hoje não serve para essa relação digital?
Aqueles requisitos clássicos do artigo 3º da CLT, parece-me que não se aplicam nesse caso, mas essas pessoas têm uma relação de dependência, com as plataformas, com as empresas.
Agora, nós estamos falando de trabalhadores celetistas?
É necessário um estudo profundo para que se chegue, no mínimo, a uma legislação intermediária.
O que não pode faltar a esses trabalhadores?
Segurança. Segurança previdenciária, no trabalho, regulação para a jornada, para o gozo de férias, para recebimento de 13º salário, que tenha benefícios assegurados na legislação, como todo trabalhador tem.
O que o senhor acredita ser mais frágil nessa relação capital/trabalho no que diz respeito à precarização de direitos?
É uma análise, que passa desde a ausência de uma contra prestação de salário, eventualmente pelo não recolhimento do FGTS, o não pagamento de verbas rescisórias no caso de relação de emprego específico. É uma questão de contexto geral mesmo.
Algum setor foi mais atingido?
A crise trazida pela pandemia foi geral, mas o setor mais atingido foi o de serviços, sobretudo o pequeno empregador, o mais atingido pela crise socioeconômica que estamos vivenciando.
As lições da crise apontam em que direção?
Nós devemos perseguir uma meta que é fundamental: que se tenha um trabalho digno e sustentável. Isso foi o mote final do Fórum Econômico de Davos. Há uma mudança começando a surgir mundialmente nesta perspectiva – veja os laureados agora no prêmio Nobel de Economia – com a tese da necessidade de uma renda mínima, de um pagamento de salário concreto aos trabalhadores. Não há como termos em mente esse trabalho prestado sem nenhum tipo de garantia.
Apesar dessa predominância do neoliberalismo?
Por mais que se tenha toda a questão envolvendo o mundo neoliberal é necessária uma inflexão para que se atenda essas pessoas e que se traga elas para um trabalho digno e sustentável. Que elas tenham uma garantia mínima de direitos, um colchão de proteção social.
Como encontrar essa inflexão, a que o senhor se referiu, no mundo onde a tecnologia para se dizer que devemos esquecer o que havia antes em todas as áreas, inclusive nas relações do trabalho?
Primeiro, devemos encarar isso de formas distintas. A relação do trabalhador da economia digital deve ser vista sobre esse prisma, diferente do trabalhador da economia analógica. A que se fortalecer estudos sobre a subordinação algorítma. A Justiça do Trabalho tem, ao longo desse ano, lançado bases para análise das provas digitais. A Justiça é reativa. Ela reage aos movimentos da sociedade. Não temos como acompanhar os fatos com a velocidade que eles se impõem, mas do ponto de vista da Justiça do Trabalho,estamos caminhando nesse sentido. Do ponto de vista dessa inflexão na sociedade, vou me valer da clássica reflexão de Ariano Suassuna de ser um realista esperançoso. Sem querer ser utópico, mas que a própria mudança da sociedade, dia a dia seja capaz de acomodar a situação – claro que jamais será da forma que queremos. Já tivemos a Revolução Industrial e agora estamos na revolução 4.0.
Num sentido mais filosófico, as relações do trabalho também precisam de uma releitura?
Tenho a convicção que sim. Isso vem como uma decorrência natural do tempo. É parte do processo de transformação.
Há trabalhadores em rincões do Brasil que não conhecem sequer o salário mínimo. Como equacionar uma lacuna dessas da era analógica, com as exigências da revolução 4.0?
Uma situação dessas faz parte desse movimento civilizatório do nosso país. Não há punição que resolva. Para que cheguemos é preciso o desenvolvimento socioeconômico da população, o crescimento do PIB. É uma questão complexa demais dada a própria desigualdade histórica, infelizmente do nosso país.
O senhor acredita na possibilidade de um pacto social no Brasil?
Independentemente de qualquer matiz ideológica, o fundamental seria uma confluência dos atores políticos de se buscar o caminho do crescimento, porque é a partir do crescimento econômico que há essa inclusão. O crescimento com a proteção social, ou seja, digno e sussustentável.
Será que o Brasil teria as condições?
Como disse Suassuna, temos que ser realistas esperançosos. Nós temos um déficit social muito grande, mas precisamos iniciar essa caminhada.
Como o senhor vê essas iniciativas em defesa da mediação e conciliação como alternativa para desafogar a Justiça?
Com relação a conciliação em um processo judicial eu sou entusiasta. A conciliação é o resultado de um processo judicial construído pelas partes. Além de ter esse desenho, ela é mais rápida e mais efetiva. Com relação à mediação, é um caminho também extremamente interessante e importante nas relações coletivas. Tive oportunidade de criar aqui no tribunal o procedimento de mediação pré-processual em demandas coletivas.
O que é isso?
É a possibilidade de sindicato dos trabalhadores e o sindicato patronal antes de qualquer dissídio ou demanda sentarem, com integrantes do Judiciário, mas sem a feição de um processo judicial, em audiências unilaterais, em que, eu diria, destacando o que é interesse e o que é posição. Uma conversa franca em que se chega a resultados muito expressivos.
“Temos que ser realistas, esperançosos. Nós temos um déficit social muito grande, mas precisamos iniciar essa caminhada”