Anchor Deezer Spotify

Anna Lembke: “O vício é uma das doenças mais contagiosas que existem”

Anna Lembke: “O vício é uma das doenças mais contagiosas que existem”

Professora da Universidade Stanford e especialista em adicção fala sobre como somos vulneráveis ao vício e, ainda assim, falhamos ao oferecer alternativas de prevenção e tratamento contra o problema

Desde 1987, o vício é oficialmente classificado como doença. Foi naquele ano que a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês) — organizado pela Associação Americana de Psiquiatria e considerado a principal referência de saúde mental no mundo — atualizou a classificação do problema. Mesmo assim, o comportamento que leva ao abuso de substâncias carrega até hoje um forte estigma.

Há quem ainda considere a dependência um desvio moral ou uma incapacidade de autocontrole. Além de incorreta, essa visão é um dos maiores obstáculos para a prevenção e o tratamento da condição — que, atualmente, é encarada como algo que vai além de substâncias e pode incluir, por exemplo, o excesso de uso de redes sociais.

Esse é um dos principais alertas da psiquiatra Anna Lembke, professora da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e especialista em adicção. Lembke é também autora dos livros Nação dopamina (2022) e Nação tarja preta (2023), lançados no Brasil pela editora Vestígio.

“Algumas substâncias e comportamentos são inerentemente mais viciantes do que outros, porque sequestram de forma única os caminhos de recompensa do nosso cérebro, mas também é verdade que as pessoas chegam a este mundo com graus variáveis de vulnerabilidade ao vício”, afirma. Ela veio ao Brasil para participar do HSM+, evento sobre tendências de gestão e inovação que aconteceu nos dias 28 e 29 de novembro, em São Paulo.

Na visão de Lembke, vivemos em uma era de superabundância de recursos que são importantes para a sobrevivência (e, portanto, mais viciantes), como comida, roupas, abrigo e conexão com outros seres humanos. Tudo isso libera dopamina, o neurotransmissor de recompensa, que leva nosso cérebro a compreender que esse excesso de recursos é importante para a sobrevivência. “O problema é que isso não é verdade”, frisa.

Ao mesmo tempo, a medicina levou muito tempo para reconhecer o vício como uma doença cerebral e seguimos com um sistema que tende a punir comportamentos decorrentes da doença, o que dificulta o acesso a terapias. “Temos muitos tratamentos elaborados e caros que são amplamente pagos pela sociedade para ajudar pessoas com outras doenças crônicas, recorrentes e remitentes. E, no entanto, não fazemos o mesmo com as pessoas viciadas, embora as taxas de dependência sejam muito mais elevadas do que as de câncer e as de doença renal crônica”, destaca a psiquiatra.

Leia a entrevista completa a seguir.

O que significa falar em vício?

Há muitos mal-entendidos e ambiguidades em torno da linguagem. De modo geral, o termo vício é usado para descrever uma doença mental, definida como o uso compulsivo contínuo de uma substância ou comportamento, a ponto de causar danos a si mesmo e/ou a outras pessoas. É importante ressaltar que não há exames cerebrais ou de sangue para detectar a doença. Baseamos o diagnóstico, como fazemos com todas as doenças mentais, na fenomenologia, ou seja, em padrões de comportamento que se repetem entre períodos de tempo, populações, etnias e culturas.

Muitas vezes, usamos os 11 critérios do DSM [atualmente na quinta edição] que são usados para diagnosticar o vício. Importante ressaltar que é possível ficar viciado em um comportamento tanto quanto é possível ficar viciado em uma substância.

Até o momento, o único processo ou dependência comportamental incluído no DSM é o transtorno do jogo. Penso que, com o passar do tempo, mais e mais vícios comportamentais ou de processos serão adicionados a essa lista, incluindo o vício na internet e nas redes digitais.

Então qualquer coisa pode causar vício?

Algumas substâncias e comportamentos são inerentemente mais viciantes do que outros, porque sequestram de forma única os caminhos de recompensa do nosso cérebro. Normalmente, as substâncias que fazem isso são as que já produzimos, mas que também ocorrem na natureza, e que podemos ingerir em doses muito mais altas, em formas muito mais potentes, sem ter que fazer o tipo de trabalho necessário para produzi-las sozinhos.

Mas também é verdade que as pessoas chegam a este mundo com graus variáveis de vulnerabilidade ao vício. Se você pegar uma pessoa que realmente não nasceu inata ou geneticamente com uma alta vulnerabilidade ao vício, ela provavelmente precisaria de muita exposição a substâncias e comportamentos altamente viciantes para ficar viciada.

Por outro lado, você poderia ter alguém com uma carga genética muito alta para um tipo específico de consumo excessivo compulsivo e, nesse caso, não demoraria muito para que essa pessoa se viciasse, inclusive em coisas que outras pessoas talvez não consigam se viciar.

Só para ilustrar com um exemplo, tive uma paciente que tinha um vício em álcool muito grave e com risco de vida. Ela conseguiu parar de beber álcool, mas com o tempo tornou-se viciada em água, porque percebeu que, ao beber grandes quantidades de água, poderia induzir hiponatremia [baixos níveis de sódio no sangue], o que a colocava em um estado alterado, que é o que ela queria. Ela queria não estar em sua própria mente. Normalmente seria muito, muito difícil para uma pessoa comum ficar viciada em água. Mas para alguém que já era viciado, que tinha uma carga genética para o vício, isso foi possível.

Na sua visão, como a internet e as mídias sociais se inserem nesse contexto?

As coisas em que temos tendência a ficar viciados são aquelas que, de maneira diferente ou menor, realmente são importantes para a sobrevivência, como encontrar comida, roupas, abrigo, outros seres humanos e fazer conexões profundas com essas pessoas. Mas o que acontece no mundo hoje é que a ciência, a tecnologia e a inovação trouxeram muitas dádivas, mas também muitos perigos.

E um dos grandes riscos é o problema da superabundância e o fato de que agora adotamos todos esses comportamentos como se fossem necessários para sobreviver. Essa superabundância a que temos acesso libera dopamina, neurotransmissor de recompensa, o que faz nosso cérebro entender que isso é algo importante para a sobrevivência. O problema é que não é verdade.

E quais os sinais de alerta para identificar que você está se viciando em algo?

As coisas a serem observadas são o controle, a compulsão e as consequências, o que chamamos de “três Cs”. Controle se refere a usar repetidamente, mais do que o planejado, e à dificuldade em reduzir o consumo, mesmo quando há plano de reduzir. É uma sensação de não ter controle ou de não conseguir administrar o consumo.

Compulsão refere-se ao fato de que grande parte do nosso espaço mental fica ocupado pensando na substância ou no comportamento, com um estreitamento do foco e um nível de automatismo. Há sobreposição entre controle e compulsão. Mas provavelmente a maior marca do vício é o uso consequente, especialmente o uso continuado, mesmo quando reconheço essas consequências.

E quais são alguns dos maiores equívocos ou mitos em torno do vício?

É afirmar que as pessoas com vício grave nunca vão melhorar e que são um caso perdido, quando a verdade é que existem milhões de pessoas em todo o mundo que lutaram contra a dependência grave e que, agora, estão em recuperação robusta e sustentada e são membros valiosos da nossa sociedade.

Quando as pessoas estão viciadas, elas essencialmente não são elas mesmas; elas são a doença, que pode parecer um transtorno de personalidade e se tornar uma situação muito desesperadora. Mas essas pessoas podem se recuperar e o fazem todos os dias. A recuperação não só melhora a vida delas, mas também a de todos aqueles com quem convivem.

Essa é uma das doenças mais contagiosas que existem: afeta famílias inteiras, bairros inteiros, países inteiros. Acho que esse é o maior equívoco, essa ideia de que as pessoas nunca poderão melhorar. Dito isso, é também, em alguns casos, uma doença terminal e algumas pessoas morrerão disso.

E quais os desafios de se implementar abordagens baseadas em evidências para prevenção e tratamento de vícios?

Um dos maiores desafios é que a medicina levou muito tempo para reconhecer o vício como uma doença cerebral, para fazer com que as seguradoras paguem pelo tratamento, para construir uma infraestrutura que direcione e trate o vício dentro do sistema de saúde. E então, para preencher esse vácuo, o que temos são muitas clínicas de reabilitação privadas, algumas das quais são boas e outras nem um pouco boas.

Mas a questão é que nem deveria haver necessidade disso. Temos muitos tratamentos elaborados e caros que são amplamente pagos pela sociedade para ajudar pessoas com outras doenças crônicas, recorrentes e remitentes. E, no entanto, não fazemos o mesmo com as pessoas viciadas, embora as taxas de dependência sejam muito mais elevadas do que as de câncer e as de doença renal crônica.

“Um dos maiores desafios é que a medicina levou muito tempo para reconhecer o vício como uma doença cerebral”
— Anna Lembke

Você acha que isso se deve ao grande estigma atrelado ao vício?

Sim. Quando penso em estigma, penso como uma espécie de “envergonhamento público” das pessoas. E certamente precisamos acabar com isso porque, caso contrário, as pessoas não receberão tratamento. Por outro lado, o vício é diferente de outras doenças, porque as pessoas viciadas podem se envolver em atividades criminosas como resultado da doença da dependência.

Por isso, o sistema de justiça criminal e o sistema de tratamento médico realmente precisam se unir. As pessoas devem ser responsabilizadas pelos crimes que cometem, mesmo que isso seja resultado do seu vício. Mas as punições podem ser atenuadas com a compreensão da doença e das opções de tratamento.

“Precisamos deixar bem claro que as substâncias que causam dependência e a doença da dependência não são um estado que alguém desejaria para si
— Lembke reflete sobre como lidar com o estigma em torno do vício

Na maioria dos países, inclusive no Brasil, o uso de substâncias psicoativas é proibido, até que ponto isso criminaliza e pune pessoas que estão viciadas, acirrando o estigma que enfrentam?

Há um movimento nos Estados Unidos para caracterizar pessoas com dependência química como “usuários de drogas” e sequer considerar isso um comportamento desordenado ou um problema de saúde mental. Eu acho que isso é errado. Precisamos deixar bem claro que as substâncias que causam dependência e a doença da dependência não são um estado que alguém desejaria para si ou para alguém de quem gosta, e que temos de nos unir como sociedade para descobrir como ajudar pessoas que se tornam viciadas.

A resposta apropriada não será uma guerra contra as drogas nem a descriminalização de todas elas. Será necessário algum reconhecimento da letalidade das drogas, do potencial viciante delas e, em seguida, criar barreiras de proteção para uma sociedade segura.

Agora, certamente já existe uma enorme quantidade de hipocrisia no sistema, basta observar que algumas drogas muito perigosas e letais, como o álcool e a nicotina, já são legais. Por outro lado, não deixamos menores de idade comprarem cigarros, não permitimos que pessoas que fabricam e vendem cigarros façam propaganda para menores; não permitimos que pessoas dirijam veículos motorizados embriagadas.

É ingênuo pensar que a situação se resolveria se simplesmente descriminalizássemos todas as drogas, se não usássemos o sistema de justiça criminal de forma alguma para punir os comportamentos em que as pessoas se envolvem por causa das drogas. E é injusto com esses indivíduos que nós, como sociedade, não os protejamos dessas drogas nocivas.