“O ser humano será extinto por teimosia”
Francy Baniwa, pesquisadora do Museu Nacional, defende que ancestralidade do conhecimento indígena seja vista como inovação a fim de frear as mudanças climáticas.
Em painéis e fóruns sobre mudanças climáticas, a inovação costuma ser citada como um elemento-chave para enfrentar essa realidade. Ferramentas avançadas, como satélites, serão fundamentais nos próximos anos. Mas a tecnologia pode também ser ancestral.
“Se a gente não olhar a ancestralidade do conhecimento indígena como inovação, vamos sofrer cada vez mais”, defende a antropóloga Francy Baniwa, de 37 anos, doutoranda do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Francy nasceu e se criou na comunidade de Assunção, na Terra Indígena Alto Rio Negro, localizada em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. A pesquisadora vive entre a floresta e o Rio de Janeiro, onde reside desde 2017. Em julho deste ano, tornou-se a primeira mulher indígena brasileira a publicar um livro de antropologia: Umbigo do mundo.
A jovem Baniwa é hoje uma referência para estudantes indígenas que sonham com a universidade. Educada pela tradição oral de seu povo, Francy carrega a missão de transmitir e modular esse conhecimento para os cânones da academia.
“A universidade não foi construída e pensada para nós. É preciso haver muito diálogo”, afirma a pesquisadora, em entrevista à DW Brasil.
Apesar dos desafios, Francy continua a trilhar novos caminhos. Sua facilidade em transitar por diferentes “mundos” de conhecimento chama atenção. Neste mês, ela participou do Rio Innovation Week como palestrante do maior evento de tecnologia e inovação da América Latina.
“Essa sociedade ocidental precisaria passar por um ritual de iniciação para aprender a ser humano e ver a vida com outro olhar”, diz a pesquisadora. “Do jeito que estamos, o ser humano vai ser extinto por teimosia, por não saber ouvir.”
DW Brasil: Você tem participado de fóruns de tecnologia e inovação. Como os povos indígenas podem contribuir nesse debate?
Francy Baniwa: Às vezes não acredito que esses momentos têm acontecido na minha vida. Essa participação para mim é muito recente, assim como a minha vinda para a cidade grande. Para mim, é tudo muito novo. São momentos de grande aprendizado, de conhecer pessoas, como mulheres negras que estão nessa mesma luta e me inspiram. A nossa maior tecnologia são as nossas narrativas. Sem elas, você fica perdida, não tem um caminho a seguir.
As narrativas são do passado, presente e futuro. A gente precisa olhar para elas como uma solução para esse fim do mundo que está chegando, principalmente com a questão climática que estamos sofrendo hoje, neste momento. Ainda não sabemos ouvir essas vozes, esses gritos de socorro. E quem acaba perdendo as vidas para esse momento são nossos peixes, nossos rios e florestas. Não é o ser humano que está pegando fogo, que está morrendo, mas seres que são água, rios, nascentes.
Se a gente não olhar a ancestralidade do conhecimento indígena como inovação, vamos sofrer cada vez mais. Precisamos ter esse olhar diferenciado e escutar mais – sem interromper, querer falar mais, escutar o que nós podemos fazer. São tantos conhecimentos diversos nos territórios indígenas, dos rezadores, parteiras, e também em outras culturas, como as religiões de matriz africana. Acima de tudo, precisamos respeitar e ouvir. Do jeito que estamos, o ser humano vai ser extinto por teimosia, por não saber ouvir.
Você acredita em uma mudança de postura?
Essa sociedade ocidental precisaria passar por um ritual de iniciação para aprender a ser ser humano e ver a vida com outro olhar. Deveriam sofrer uma semana de resguardo, levar um chicote, comer pimenta. Para entender que a fome dói e saber o que você tem para oferecer ao próximo. Seria necessário para que aprendam a ser gente de fato: olhar para o futuro e todas as pessoas sem estado social – rico, pobre –, mas como parente. A inovação e a tecnologia nós já temos, pela ancestralidade. A gente tem uma ciência para entender o nosso território. Nossos pais são grandes arquitetos indígenas do conhecimento, usando métodos muito tradicionais. Temos resistido esse tempo todo, desde a colonização, com esse saber.
Nossos avós sofreram muito com a chegada do homem branco e as doenças, que levaram muitas pessoas à morte. Os que sobreviveram se tornaram mais fortes ainda. Foi muito dolorosa a destruição da nossa cultura, com queimadas das malocas, proibição de falar a língua. Nossos pais e avós choraram muito, mas se ergueram. E hoje a gente está ecoando as vozes deles, levando essas narrativas da oralidade para a universidade, por mais que haja desafios. Levar esse conhecimento para dentro das universidades, pela produção de teses e artigos, isso é inovação.
Você se divide entre múltiplas tarefas, em sua aldeia e na cidade. Como é a vida entre dois mundos tão distintos?
É muito desafiador a gente sair do território que ama, nossa zona de conforto, e vir para a cidade de pedra sem conhecer ninguém, sem um parente. Ao mesmo tempo, você se torna muito forte, porque não está aqui como uma única pessoa, mas um coletivo que representa os 23 povos do Rio Negro. Não é uma escolha fácil, até pela questão financeira, de se manter nas cidades. Estou muito feliz com essa trajetória, de uma mulher indígena que chegou em 2017 ao Rio. Sou uma sobrevivente (risos). Eu me vejo também como uma representante para outras meninas Baniwa que estão nas universidades. Tenho sido a conselheira delas.
Elas me procuram quando passam por situações de preconceito, ou sofrem com a solidão no lugar novo. Eu falo para elas respirarem, digo que vai dar tudo certo. As primeiras semanas são as mais difíceis. Eu criei um grupo no WhatsApp com elas para dar esse apoio afetivo. Isso ajuda a criar um laço familiar. Às vezes, elas não sabem procurar um texto, então eu ajudo a pesquisar e envio. Sou um pouco psicóloga, mãe e professora. É muito desafiador para elas. No grupo, a gente faz brincadeiras com as dificuldades para ajudar a levantar a auto-estima. A ideia é que elas não desistam. A academia ainda não está preparada para receber alunos tão diversos, com realidades tão diferentes. O mais lindo é a resistência dessas pessoas nessas instituições: enfrentam os problemas, amadurecem e ficam fortes.
Nós, indígenas, temos ainda o desafio de estar na universidade, mas também fazer algo acontecer dentro do território. Para nós, é o mais importante. A gente precisa dar esse apoio às mulheres, à juventude, fazer a ponte com as organizações do movimento indígena. É muito desafiador, porque são muitos anseios, eu precisaria de toda uma equipe. O espaço da academia acaba abrindo muitas portas. Tenho construído a minha carreira com passos de tartaruga, e isso tem dado fruto para desenvolver atividades no território. É preciso fortalecer questões como a língua, mas também a geração de renda.
Por décadas, os indígenas foram limitados a objeto de estudo na Antropologia. Agora, pessoas como você assumem o fazer científico. Como vê esse processo?
Acima de tudo, o mais bonito é que a gente fala na primeira pessoa dentro desses espaços. “Nós, mulheres Baniwa da comunidade de Assunção, pensamos a roça desse jeito.” São as minhas roças. Não é o pesquisador de fora falando por nós, “eles”, “aquela comunidade”. Isso é o mais rico. É mais gostoso de descrever, porque você não está tentando entender aquele grupo, você vivencia. Infelizmente, a academia não permite você incluir na autoria dos trabalhos as pessoas que te passaram todo o conhecimento. Esse reconhecimento seria lindo – e justo. É muito triste o esquecimento dos pesquisadores. As comunidades se queixam por não poderem ler o que foi escrito sobre seus pais e avós. Seria muito útil para elas recuperarem um saber que se perdeu, mas não há retorno das teses e dissertações. Eu, como pesquisadora, tento passar que estou ali para estudar, mas acima de tudo sou parente.
A universidade tem abertura para os saberes indígenas?
A academia ainda é muito resistente a amadurecer para entender essas presenças indígenas. A universidade não foi construída e pensada para nós. É preciso haver muito diálogo e participação de indígenas que já atuam dentro das universidades, além dos professores não indígenas que estejam de fato com a causa. É um espaço incrível, mas ainda muito resistente a essas mudanças. Hoje, nós já temos muitos doutores e uma grande produção acadêmica feita por indígenas, seja na Antropologia, Educação ou na Saúde. Já não há desculpa para a ausência de textos de autores indígenas nas ementas. Em pleno século 21, as figuras mais importantes da academia são autores brancos que morreram há centenas de anos.
Eu sei que isso é importante, mas a gente tem que dar espaço para pesquisadores contemporâneos, pessoas indígenas, pessoas negras. Elas trazem olhares que partem do território para dentro das universidades. A gente precisa colorir as ementas de pós-graduação com textos de pesquisadores indígenas, para que os estudantes saiam com o olhar amadurecido.
Como você enxerga o valor do conhecimento tradicional, de dentro da academia?
No passado, nossos pais diziam que a gente precisava estudar para não precisar ir para a roça no sol quente, nem passar a noite toda pescando. Para “ser alguém na vida”. Mas, hoje, vejo ao contrário. Eu me sinto muito orgulhosa de ser uma dona de roça, saber arrancar mandioca, carregar a turá, saber fazer farinha. É um grande orgulho para mim conhecer o meu mundo, mas também ter uma perninha fora e conhecer esse outro mundo que escolhi, da Antropologia, pela qual sou apaixonada.
Às vezes falo para mim mesma: posso até não saber escrever em inglês ou francês, mas eu sei mais do que esses brancos sentados aqui, que só tem o conhecimento ocidental, de leitura. Se a gente fosse para a roça, eles ficariam perdidos. Eu saio ganhando porque tenho o conhecimento indígena, do meu território. É uma bagagem enorme. Não apenas sobre ser indígena, mas conhecer os desafios e se preparar, mental e espiritualmente, para carregar peso, para rir, para trabalhar. Você é preparada para enfrentar tudo.
O projeto do marco temporal pode impactar o reconhecimento de terras indígenas. Qual é o sentido do território para essas populações?
A gente não consegue viver sem o território. Nosso entendimento é que aquele território tem outras vidas. Não é só o ser humano que precisa estar naquele espaço, tem seres vivos que precisam daquele espaço para existir. Há outros humanos, de outros mundos, que estão ali presentes e precisam daquele lugar. Então, é preciso olhar para os povos indígenas com esse olhar diferenciado, entender a narrativa de cada povo e a importância do contexto daquele território. Nosso umbigo está naquele território. A ancestralidade está lá, e é onde seguramos o céu. Não tem como escapar e não começar a ouvir. De fato, o futuro sempre foi e continuará sendo ancestral. Nós temos uma ciência própria, indígena, que não precisa passar por academia, nem por laboratório. Nossos pajés fazem cirurgias com o maracá, com Paricá. Está na hora de a gente reconhecer que temos uma ciência própria, de cura, de proteção, um conhecimento único para defender o território. E nosso entendimento com aquele lugar, com aquele espaço que é sagrado, do qual precisamos para sobreviver.
Eu não consigo imaginar os povos do Rio Negro sendo expulsos para ocupar um pedacinho de terra. Além do espaço de preservação, a gente tem aquelas áreas de terra firme para fazer roça, porque a floresta é diversa, tem caatinga, terra firme, capoeira, igapó. Aquele espaço sempre foi nosso, entregue a nós por nossos deuses Baniwa. Se a gente ficar atento a essas narrativas, vai perceber que o futuro depende dos povos indígenas. Esse caos que está acontecendo foi previsto há muitos anos por nossos pajés. Precisamos dessa conscientização sobre a importância de preservar o mundo hoje. Senão, daqui a 50 anos, já não vai existir como é hoje.