População e consumo na COP26: como reduzir as emissões de CO2? Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“O desenvolvimento econômico, tal como surgiu na Revolução Industrial e Energética do final do século XVIII, assumiu proporções incompatíveis com a capacidade de suporte da natureza”, escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate.
Eis o artigo.
“O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita. Em outras palavras, você tem dois números multiplicados um pelo outro – qual é o mais importante? Se você mantiver uma constante e deixar a outra variar, você ainda está multiplicando. Não faz sentido para mim dizer que apenas um número é importante” Herman Daly (2018)
A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a ser realizada na cidade de Glasgow, na Escócia, sob a presidência do Reino Unido, começa no dia 31 de outubro de 2021. A tarefa mais urgente da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (a COP26) é traçar metas mais ambiciosas de redução de gases de efeito estufa para evitar um aquecimento global acima de 1,5º C.
Não há dúvidas que o aumento da temperatura global tem causa antropogênica. Os vencedores do Nobel de Física de 2021, Syukuro Manabe, da Universidade de Princeton; Klaus Hasselmann, do Instituto Max Planck de Meteorologia; e Giorgio Parisi, da Universidade Sapienza, foram premiados pela Real Academia Sueca de Ciências pelo trabalho essencial para compreender como o clima da Terra está mudando e como as atividades humanas estão influenciando esse processo. Os seres humanos já modificaram a composição química da atmosfera e agora precisam reduzir a pegada ecológica para evitar um colapso climático catastrófico.
O gráfico abaixo mostra que a meta mínima do Acordo de Paris para o controle do aquecimento global exige uma dramática redução das emissões de CO2 até 2050, além de requerer emissões negativas (remoção de CO2 da atmosfera) a partir de 2050. Ou seja, até ao longo do século XXI, o mundo terá que zerar as emissões de CO2 e também “sequestrar” carbono da atmosfera.
Mas quais são as principais medidas para enfrentar a crise climática?
Algumas pessoas e correntes de pensamento dizem que o problema central é explosão da população (overpopulation), enquanto outras pessoas e correntes de pensamento dizem que o problema central é a explosão do consumo, especialmente dos ricos (overconsumption). Assim, uns focam na redução do impacto populacional, enquanto outros focam na diminuição do impacto da produção e do consumo. Contudo, não existe população sem consumo e nem consumo sem população. Os dois fatores contam e devem ser vistos de forma conjunta.
O impacto antrópico sobre a ecosfera ocorre em função do crescimento da população e do consumo. Por conseguinte, não há motivo para criar qualquer dubiedade nesta questão. Como disse Herman Daly (2018): “O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita. Em outras palavras, você tem dois números multiplicados um pelo outro – qual é o mais importante? Se você mantiver uma constante e deixar a outra variar, você ainda está multiplicando. Não faz sentido para mim dizer que apenas um número é importante”.
O gráfico abaixo, com base nos dados demográficos da Divisão de População da ONU e dos dados de emissões do Global Carbon Budget, mostra que 97,5% da variação das emissões globais é explicado pela variação da população. Em 1959, havia 2,98 bilhões de pessoas no mundo que emitiam 8,9 bilhões de toneladas de CO2 (3 toneladas per capita). Já em 2019, havia 7,7 bilhões de habitantes que emitiam 36,4 bilhões de toneladas de CO2 (4,7 toneladas per capita). Isto quer dizer que não só a população cresceu de quase 3 bilhões para quase 8 bilhões de habitantes, como também as emissões per capita cresceram, pois neste período houve grande crescimento da economia e, a despeito das desigualdades sociais, houve aumento da renda per capita. Ou seja, houve aumento da população e do consumo. Portanto, os dois fatores contribuíram para a concentração de CO2 na atmosfera e a aceleração do aquecimento global.
Foto: Reprodução | EcoDebate
A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica é muito maior do que a Biocapacidade do Planeta. Os seres humanos também já ultrapassaram 4 das 9 fronteiras planetárias. O desenvolvimento econômico, tal como surgiu na Revolução Industrial e Energética do final do século XVIII, assumiu proporções incompatíveis com a capacidade de suporte da natureza. A humanosfera ultrapassou a capacidade de sustentação da ecoesfera. O dia da Sobrecarga da Terra ocorre cada vez mais cedo.
O gráfico abaixo mostra que os EUA sempre tiveram emissões per capita de CO2 acima das emissões chinesas. Contudo, as emissões totais da China ultrapassaram as emissões americanas a partir de 2006. Em 2019, a China tinha emissões per capita de 7,1 toneladas e os EUA 16,1 toneladas (mais do dobro). Mas como a população chinesa de 1,43 bilhão de habitantes é 4,3 vezes maior do que a população americana de 330 milhões de habitantes, as emissões totais de CO2 da China em 2019 foram de 10,2 bilhões de toneladas de CO2 contra 5,3 bilhões de toneladas dos EUA (A China emite quase o dobro). Ou seja, as emissões per capita da China são menores (o padrão de consumo é menor), mas como a população é mais de 4 vezes maior, as emissões totais de CO2 da China são o dobro do que as dos EUA. Isto mostra que o tamanho da população importa e é a combinação das variáveis população e nível e padrão de consumo que define a quantidade de emissão total de cada país.
O mesmo exemplo acima pode ser aplicado para outros países como a Índia e o Japão, conforme mostra o gráfico abaixo. O Japão sempre teve emissões per capita acima da média indiana. Contudo, as emissões totais da Índia ultrapassaram as emissões japonesas a partir de 2007. Em 2019, a Índia tinha emissões per capita de somente 1,9 toneladas e o Japão 8,7 toneladas (quase 5 vezes maior). Mas como a população indiana de 1,37 bilhão de habitantes é mais de 10 vezes maior do que a população japonesa de 127 milhões de habitantes, as emissões totais de CO2 da Índia em 2019 foram de 2,6 bilhões de toneladas de CO2 contra 1,1 bilhão de toneladas do Japão (A Índia emite mais do dobro no total). Ou seja, as emissões per capita da Índia são menores (o padrão de consumo é muito menor), mas como a população é mais de 10 vezes maior, as emissões totais de CO2 da Índia são o dobro do que as do Japão. Isto confirma que o tamanho da população importa na análise dos problemas ambientais e climáticos.
Não há dúvidas de que o crescimento demoeconômico acarreta maior quantidade de emissões de gases de efeito estufa. Mas a governança global tem falhado no enfrentamento desta questão. Agência Internacional de Energia (IEA), divulgou o relatório WEO–2021, no dia 13 de outubro, exortando os líderes que estarão presentes na COP26 para enviar um “sinal inconfundível” com planos concretos para reduzir as emissões, pois com as atuais promessas dos países as emissões de carbono cairão apenas 40% até 2050, conforme mostra o gráfico.
Foto: Reprodução | EcoDebate
Segundo as projeções da IEA (mostradas no gráfico acima), as emissões globais de CO2 relacionadas com a energia e processos industriais se recuperam rapidamente em 2021 e aumentam para 36 gigatoneladas (Gt) em 2030 no cenário STEPS. No cenário APS, as emissões atingem o pico em meados da década de 2020 e voltam a apenas abaixo de 34 Gt em 2030, próximo aos níveis atuais. No cenário NZE, por outro lado, as emissões caem para 21 Gt em 2030, marcando uma mudança decisiva de direção.
O Relatório “2021 Production Gap Report”, elaborado por importantes institutos de pesquisa e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e divulgado em 20 de outubro, conclui que, apesar do aumento das ambições climáticas e dos compromissos líquidos de zero carbono, os governos ainda planejam produzir mais do que o dobro da quantidade de combustíveis fósseis em 2030 do que o que seria consistente com a limitação do aquecimento global a 1,5º C.
Além disto, documentos vazados e obtidos pela BBC, mostra que inúmeras ações das diplomacias estrangeiras fazem “lobbies” sobre as autoridades climáticas internacionais e das Nações Unidas para limitar ou retardar a revolução verde, especialmente no que diz respeito ao uso de combustíveis fósseis. Arábia Saudita, Japão e Austrália, nos arquivos obtidos pela televisão pública britânica, estão entre os maiores países a se opor a uma rápida recalibração energética. Mas o quadro é geral, pois quase todos os países querem aumentar o crescimento demoeconômico visando a grandeza nacional.
Por conseguinte, nos planos atuais, as emissões globais de carbono ficarão 60% abaixo de sua meta de zero líquido para 2050. A Agência Internacional de Energia argumenta que a diferença entre os planos atuais e a mudança necessária para atingir a meta de zero líquido é gritante e exige investimentos de US$ 4 trilhões apenas na próxima década para evitar um desastre de grande proporção.
O valor de US$ 4 trilhões na década pode parecer muito, mas o mundo gasta US$ 2 trilhões por ano com despesas militares e gastos de guerra, como mostrei em artigo recente (ALVES, 27/09/2021). A maioria dos investimentos militares são improdutivos, servem apenas para sustentar batalhões de soldados a generais inúteis e voltados para a destruição e morte. Se o mundo redirecionasse 25% das despesas militares para a transição energética e a descarbonização da economia, as metas do Acordo de Paris poderiam ser atingidas.
Durante a Conferência do Clima de Copenhague em 2009, os países ricos se comprometeram a fornecer auxílios anuais no valor de 100 bilhões de dólares aos do Sul, para combater a mudança climática, ajudar na transição ecológica e na redução de emissões. Mas estas promessas não se concretizaram e podem arruinar os resultados da COP26. Os países mais ricos do mundo preferem investir em gastos militares do que na solução dos problemas climáticos e ambientais.
Assim, não resta dúvidas de que é preciso eliminar os gastos improdutivos e romper com o crescimento da pegada ecológica global. Para impedir um colapso ambiental decorrente do superconsumo civil e militar e da superpopulação a única solução holística é o decrescimento demoeconômico, como maneira de evitar um “Armageddon ecológico” e um “Holocausto biológico”. Como disse, certa vez, Jacques Cousteau: “O superconsumo e a superpopulação estão por trás de todos os problemas ambientais que enfrentamos hoje”.
Não vale a pena ficar brigando para saber se os maiores efeitos negativos sobre o meio ambiente surgem da superpopulação ou do superconsumo. Isto varia de país a país. Mas tanto o aumento continuado da população como o crescimento exponencial do consumo são prejudiciais para a natureza e não contribuem com as metas de zerar as emissões líquidas de CO2 até 2050.
Como disse Greta Thunberg sobre a falta de ações concretas: “Isso é tudo o que ouvimos por parte dos nossos líderes: palavras. Palavras que soam bem, mas que não provocaram ação alguma. Nossas esperanças e sonhos se afogam em suas palavras de promessas vazias. Falando dos 30 anos desde a Conferência do Rio em 1992, ela completou: “30 anos de blá-blá-blá dos líderes mundiais e sua traição com as gerações atuais e futuras”. Não há dúvidas de que o mundo precisa de ações profundas e urgentes, inclusive na área demográfica.
Como mostrou Jane O’SULLIVAN (24/08/2021) a ONU e a Conferência das Partes precisam agir com maior clareza e efetividade para reduzir o alto crescimento populacional que ainda afeta muitos países do mundo, em especial, aqueles que possuem alta taxa de gravidez indesejada. Como disse Nesrine Malik (The Guardian, 18/10/2021): “Nada neste mundo é absolutamente certo, exceto a morte, os impostos e as mulheres que serão regularmente informadas que não devem se esquecer de ter filhos”.
Os países necessitariam de compromissos de reduções de emissões (conhecidos como NDC, sigla em inglês para Contribuições Nacionalmente Determinadas) mais ambiciosos do que os apresentados no Acordo de Paris —que já apontava que, após cinco anos, novas metas deveriam ser assumidas. O problema é que, mesmo as atualizações apresentadas até o momento, não apresentam o avanço necessário para manter a meta de 1,5° C. O Brasil retrocedeu em suas metas ambientais e está na contramão das necessidades de redução das emissões.
Assim, a COP26 daria um passo à frente ao reconhecer que a redução das emissões de gases de efeito estufa exige menos gente, menos bovinos, menos desmatamento, menos produção de bens e serviços e menos degradação ambiental. O caminho atual leva ao precipício e ao colapso do meio ambiente.
Para haver equilíbrio homeostático entre ser humano e natureza é preciso reduzir a quantidade e o grau do egoísmo e da ganância humana e aumentar a capacidade de regeneração dos ecossistemas e de sobrevida da biodiversidade.
Referências
ALVES, JED. Corte das despesas militares e descarbonização da economia, Ecodebate, 27/09/2021. Disponível aqui.
ALVES, JED. A dinâmica demográfica importa no crescimento econômico e na degradação ambiental, Ecodebate, 03/05/2019. Disponível aqui.
ALVES, JED. Cientistas alertam para a emergência climática e o crescimento populacional, Ecodebate, 15/11/2019. Disponível aqui.
HERMAN DALY. Ecologies of Scale, Interview by Benjamin Kunkel. New Left Review 109, Jan-Feb 2018. Disponível aqui.
Jane O’SULLIVAN. The demographic fantasies of the IPCC, The Overpopulation Project, August 24, 2021. Disponível aqui.
Nesrine Malik. From childlessness to the climate crisis, why is the blame always on us? The Guardian, 18/10/2021. Disponível aqui.
IEA. World Energy Outlook (WEO), 2021. Disponível aqui.
UNEP. 2021 Production Gap Report, 20/10/2021. Disponível aqui.
ALVES, JED. Aula 11 AM088: Decrescimento demoeconômico e capacidade de carga do Planeta, IFGW, 11/04/21