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“O impacto da mudança climática é desigual. As pessoas mais pobres são mais vulneráveis”

“O impacto da mudança climática é desigual. As pessoas mais pobres são mais vulneráveis”

Com atuação em iniciativas de descarbonização da economia, Gustavo Pinheiro apresenta como o setor privado tem tratado a pauta climática no Brasil e no mundo

Elder Dias e Marcos Aurélio Silva

A pauta ambiental deverá ser tratada cada vez com maior frequência nas próximas semanas e meses, tendo em vista a realização da Conferência Internacional das Nações Unidas sobre o Clima, a COP26, em Glasgow, na Escócia, entre 1º e 12 de novembro.

O Brasil, com sua imagem arranhada em relação às políticas públicas ambientais, tenta afinar um discurso na defesa de que o País trabalha pela sustentabilidade e no combate ao desmatamento ilegal. Pelo menos é o que afirmou, na última semana, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que substituiu o contestadíssimo Ricardo Salles no comando da pasta. No entanto, o que se tem evidenciado, é que o setor privado tem muito mais avanços e propostas do que o governo.

O coordenador do Portfólio de Economia de Baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e conselheiro da Climate Ventures, Gustavo Tosello Pinheiro, concedeu entrevista ao Jornal Opção tratando principalmente das iniciativas do setor econômico e de empresas privadas que têm forçado uma agenda ambiental, com foco na questão climática, mais intensa que o setor público. Ele também aponta como os impactos das mudanças no clima afetam de formas diferentes sociedades pobres e como as migrações climáticas já são uma realidade.

 

Gustavo Pinheiro, sobre a COP26: “Infelizmente o setor público não tem dados positivos para mostrar” | Foto: arquivo pessoal

 

Marcos Aurélio Silva – Me parece que a questão climática foi sobreposta pelas ações emergenciais que o mundo precisou tomar em relação à pandemia. O senhor enxerga desta forma também? E acredita que pautas para o setor ambiental tiveram perdas neste período em que estamos enfrentando a pandemia do coronavírus?
Vamos por part

es. Eu não acho que ficou em segundo plano. Acho que o contrário. A agenda avançou este ano mais rápido do que ela vinha avançando antes, pelo menos no espaço privado, nas empresas e no setor financeiro principalmente.

Eu diria que avançamos uma década em um ano. tinha coisas que a gente esperaria ver só depois de 2025, ou lá para 2030, e vemos agora uma preocupação muito grande. São crises distintas. A pandemia é uma crise aguda, que se desenvolve muito rápido, e que uma vez superada acabou. A crise de 1918, a gripe espanhola, levou três anos. Isso porque na época não tinha vacina. Em tese a gente tá vendo uma crise que se espalhou mais rápido e que com vacinas deveria terminar mais rápido. Então é uma crise aguda que vem rapidamente acontece e passa.

Já a crise climática é crônica. Ela vai dando sinais devagarinho, no horizonte tem os cientistas e modelos climáticos apontando impactos crescentes, mas esses impactos eles vão dando a cara devagar e com o tempo eles vão se acelerar. Inclusive tem uma curva assintótica crescente porque a sensibilidade do sistema climático ao aumento de temperatura é crescente. Quanto mais aumenta, o aumento relativo passa a ter um impacto maior no sistema climático.

No setor financeiro, particularmente tinha um debate que vinha desde 2008, desde a crise dos subprimes americanos, muito forte sobre novos riscos. O setor climático sempre surge como um novo risco, mas o setor financeiro não dava materialidade para ele. A pandemia trouxe essa preocupação de tentar valorar a materialidade no preço dos ativos. Isso acelerou muito o processo de métricas climáticas, principalmente para os gestores de ativos, os fundos de pensão e seguradoras estão um pouco atrás. Mas gestores de ativos e bancos também têm essa preocupação – até porque o Banco Central anunciou um processo de aprimoramento regulatório – passaram a agir mais rápido do que vinham fazendo.

“O setor público está avançando em normas, regras e sinalizações. Mas quem tem que se transformar é o setor privado”

Isso em consequência tem um efeito dominó sobre todo o setor privado. Porque os gestores de ativos são os acionistas das principais das empresas. Quando resolvem eles adotarem indicadores internos para avaliar seus portfólios de investimentos, eles passam a ter que cobrar informações das empresas e aí os executivos passam a ter que produzir essas informações e então vira um efeito dominó.

Então, no setor privado, a gente viu acelerar ações sobre o tema. Já no setor público, no caso do Brasil, é verdade ter ficado em segundo plano. A gente tem evidências observáveis como aumento do desmatamento e queimadas, tem a redução de orçamento para o setor do meio ambiente.

Elder Dias – Eu tenho visto muito uma preocupação cada vez maior dos empresários brasileiros, e notadamente do agronegócio, em relação às questões climáticas, como com a relação do país com o acordo de Paris. Vimos campanha publicitária da JBS falando de cumprir metas o mais rápido possível e forçar que seus fornecedores também tenham um ‘selo verde’.  Será que são os empresários que vão tocar esse movimento e não o setor público?
Creio que no mundo inteiro o que vai gerar renovação é o setor privado. Não são os governos. O setor público é importante para dar o sinal. O acordo de Paris é importante para construir esse alinhamento internacional para colocar para os países toda uma agenda, os países estão colocando suas metas e as nações começam a competir.

O que a gente vê com a race to zero (zero emissão líquida de carbono até 2050), é os países colocando isso como fator de competitividade. Isso vai ficar muito mais tangível quando entrar em vigor o mecanismo de ajuste de fronteira europeu, o tributo de carbono alfandegário.

A Europa já anunciou que a partir de 2023 começa a implementação e terminar a primeira fase em 2026, de uma tributação alfandegária para cinco setores, destes, dois afetam o comércio exterior com o Brasil: aço/minério de ferro e alumínio. Nesta primeira fase não entram os produtores agrícolas, mas vão haver outras fases, esta é só a primeira com cinco produtores chaves.

O setor público está avançando em normas, regras e sinalizações. Mas quem tem que se transformar é o setor privado. Isso porque as emissões do setor público são poucas. Quem tem que agir é o setor privado. Quem vai gerar transformação é o setor privado.

No caso da JBS o compromisso deles é se descarbonizar até 2040, antes de 2050 que é o que a ciência indica. Todas as empresas estão se posicionando entre 2030 e 2050. Fizemos um evento com o vice-presidente da Bayer e ele falou que o compromisso deles é a descarbonização líquida zero até 2030, daqui uma década. Ele falou: a gente acha que não vai conseguir reduzir as emissões da Bayer 100% até lá. Vamos fazer o máximo que conseguirmos e comprar créditos do que faltar para zerar o liquido.

Caminhamos para este cenário, onde o setor privado está tomando um protagonismo muito grande com as questões climáticas. Acho que realmente vai vir uma mudança do setor privado e dos consumidores, que estão começando a tomar pé das emissões daquilo que elas consomem. E vai começar também a cobrar produtos e serviços carbono zero. Essa é uma tendência contratada, tanto pelos compromissos políticos e públicos, quanto pelos compromissos e metas privados que começaram a ser implementados.

Elder Dias – Acaba que o país menos desenvolvido sofre as maiores consequências das alterações climáticas quanto também as questões mais básicas, por exemplo o controle da própria população que é mais difícil em países pobres…
O impacto da mudança climática é desigual. Pessoas mais pobres são as mais vulneráveis. Os países mais pobres são os mais vulneráveis. Os países de renda média, em desenvolvimento, onde há muita desigualdade, essa população desassistida sofre tanto quanto as pessoas mais pobres. No Brasil temos gente que vive em área de risco. Não à toa temos histórico recente muito negativo de desastres. Algumas cidades brasileiras, algumas mais costeiras e aquelas que têm o relevo bem acidentado, tem muita gente em encostas… são locais que já sofrem com o clima hoje.

Há um déficit de infraestrutura atual e isso vai ficar mais forte em locais mais pobres. A parte mais pobre da população já está vulnerável, e ela vai ficar exposta a eventos de magnitudes muito maiores, com muito mais força e com frequência muito maior. Vai acontecer frequentemente e muitas vezes não dá tempo nem de se recuperar de uma catástrofe já vai ter outra.

Registro da seca em Sobradinho (BA) | Foto: Wikimedia Commons

 

Aí se cria outro risco que é o de segurança, de migração forçada… É um cenário triste que está no horizonte se não fizermos nada.Na Europa os  especialistas em segurança colocam em debate o que são chamados de  fluxos migratórios. Começa a ter tanta catástrofe em algumas regiões, que os países se desorganizam e aí se vê fluxos migratórios para as economias mais avançadas, onde tem mais segurança para as pessoas viverem.

Elder Dias –  Eu me lembro de ter feito uma matéria em 2015 a partir Interestelar- um filme que trata das mudanças climáticas – é que pode ser um exemplo sobre as migrações climáticas. Esse já é um fenômeno comum hoje?
Alguns cientistas já associam a Primavera Árabe a uma grande seca que aconteceu no norte da África e que dizimou a produção local e encarece muito os alimentos. Isso fez com que a população dos países se revoltassem contra seus governantes porque estavam, literalmente, passando fome.

Desde então temos visto o acirramento desses conflitos, principalmente no norte da África e Oriente Médio, além das migrações e a crise de refugiados acontecendo ainda na Europa. Temos visto fotos com centenas de pessoas chegando na costa da Itália. Essa crise não terminou.

Os cenários que nós temos mostram que essa é uma situação que deve aumentar. Eu diria que já estamos tendo conflitos que estão direto ou indiretamente relacionados com a questão climática. Só a longo prazo é que a gente pode olhar para o passado e dizer quais as causas e consequências, mas temos evidências que indicam que já está acontecendo.

Elder Dias – Em uma publicação sua nas redes sociais, foi abordado um assunto importante para última semana, que é a discussão sobre o marco temporal das terras indígenas. É determinante para o Brasil, diante do mundo, esse posicionamento do STF? É algo importante mais externamente do que a gente tem considerado aqui dentro do Brasil?
Acho que em uma perspectiva de passar um sinal político de compromisso com a conservação da Amazônia, principalmente, é muito importante. A gente tem que colocar um pouco em perspectiva. A decisão diz respeito a uma terra indígena em Santa Catarina, uma terra bem pequena, que tem um pedido para aumentar a demarcação.

https://twitter.com/jnascim/status/1430927930889228289

Acho que a decisão não é o que importa em uma perspectiva de clima e sinalização para o exterior não é o que importa para Santa Catarina, mas a repercussão que pode ter para todas as outras e para os processos de remarcação.

E por ser uma jurisprudência, ela passa esse sinal de que, no futuro, o Brasil poderá continuar demarcando terras indígenas, reconhecendo a ocupação tradicional. Há até a tese jurídica de que os direitos dos povos indígenas em relação às terras que eles ocupam é originário, ou seja, está antes até da Constituição, e por isso não teria um marco temporal. A Constituição só vem reconhecer, ela não criou o direito. Há outras peças jurídicas no Brasil que já reconhecem o direito às terras desde documentos ainda do império e próprios reis de Portugal reconhecendo a ocupação de terras por povos indígenas.

É uma decisão que tem um caráter muito mais social, do que ambiental, só que ela tem uma repercussão direta ambiental, porque principalmente na Amazônia, e menos em terras indígenas no sudeste, elas têm papel importante na conservação dos ecossistemas. São as áreas com menor desmatamento. Um número atualizado, não chega a 1.36% do desmatamento. Aí tem todo papel da floresta estocando carbono e a preocupação do mundo de que se o Brasil converte a Amazônia para pastagem, o volume de carbono que é liberado na atmosfera, neste uso do solo, praticamente inviabiliza alcançar os objetivos do acordo de Paris.

É meio que um pressuposto que se o mundo quiser alcançar o que foi proposto em Paris, a maior parte da Amazônia tem que ser conservada. Aí o Brasil tem um desafio que é pensar um novo modelo de desenvolvimento para a região. Como que consigo desenvolver socialmente a região, com emprego, renda e índices de bem-estar sem desmatar. Valorizando os ativos florestais com produção em sistemas agroflorestais, extrativismo sustentável, extração mineral bem feita.

“Caminhamos para o cenário, onde o setor privado está tomando um protagonismo muito grande com as questões climáticas”

Acho que não é impossível. Temos bons exemplos no Brasil. Desde modelos de produção da própria Embrapa de Goiás –  tem modelos de LPF ( Lavoura-Pecuária-Floresta) – Tem excelentes exemplos de mineração. Acho que é importante sim por essa sinalização para o futuro, com graves impactos em como a comunidade internacional vai olhar para o Brasil.

Marcos Aurélio Silva – Ainda neste contexto de como a comunidade internacional vai olhar para o Brasil, teremos em novembro a Cop26. É uma oportunidade e como o Brasil pode mudar a imagem se tem lá fora e o que precisa ser feito para dar sinalizações positivas?
Vamos dividir em duas partes. Uma coisa a sociedade brasileira e o setor privado, que acho que estão fazendo muito e assumindo compromissos. Acho que as empresas brasileiras estão avançando rápido em assumir compromissos, estabelecer metas, construir planos de ação e começar implementar medidas que reduzem emissões. A gente está vendo um protagonismo muito forte do setor privado, também os entre os entes subnacionais –  estados e municípios –  que estão fazendo a lição de casa.

Mas a gente não tem visto o mesmo protagonismo no âmbito federal. Então eu acho que é esse o grande desafio para passar uma imagem melhor para comunidade internacional. O mundo olha para o Brasil e fala: a gente ouve das empresas um monte de coisas positivas, ao mesmo tempo vemos dados oficiais de deterioração da política ambiental-climática brasileiro, com destaque negativo ao desmatamento e queimadas na Amazônia.

Fazer isso no ambiente de políticas públicas atuais é quase impossível. Não tem comando e controle. Não tem controle ambiental. Não tem recursos para o Ibama, ICMbio e órgãos que fazem a fiscalização ambiental trabalharem.

As empresas vão ter que assumir as obrigações do estado de poder de polícia, de comando e controle? A ausência do estado coloca muito mais pressão e custos para o privado fazer e estar em conformidade com a legislação. Isso é o lado que passa a imagem negativa.

Idealmente o que a gente deveria ver é o estado brasileiro assumindo compromissos sério, e começar a mostrar serviço efetivamente. Os indicadores estão claros: é o número de multas ambientais, de ações de fiscalização e em última instância o índice de desmatamento medido e publicado pelo Inpe e de queimadas que vem depois do desmatamento –  um é próximo do outro, sempre que tem muito desmatamento, quando chega a seca, se queima a madeira que não tem valor para poder semear o campo e abrir pastagem.

Infelizmente o setor público não tem dados positivos para mostrar. O desmatamento segue em alta, teve uma leve variação para baixo neste último período, na casa de 5%, mas essa pode ser uma oscilação da própria qualidade de dados. Não dá pra dizer que houve uma mudança de política. A gente continua negligenciando o que seria função do estado e deixando os privados descobertos.

Elder Dias –  Acabamos falando de grandes empresas, grandes consumidores… como esse negócio chamado sustentabilidade e descarbonização do mundo vai chegar na pessoa comum?
Em cada lugar é de uma forma diferente. A gente precisa se localizar um pouco porque as emissões individuais variam de geografia para geografia. No Brasil a maior parte das emissões de um indivíduo estão relacionadas à mobilidade. A gente depende muito do transporte rodoviário que usa basicamente diesel. A gente começa a ter um pouco de eletrificação…

Outra coisa que vale destacar, é que um terço das emissões no Brasil está relacionado ao desmatamento e outro terço está relacionado a agricultura e agropecuária. Então está diretamente relacionado às nossas escolhas ao nos alimentar. Reduzir o consumo de carne bovina, ou escolher aquela de origem certificada que não está contribuindo para o desmatamento são coisas que podem ajudar.

Assista a entrevista completa aqui