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‘O aumento nos casos de leishmaniose canina é um alerta, precisamos desenvolver um imunizante para humanos’, diz vacinologista

‘O aumento nos casos de leishmaniose canina é um alerta, precisamos desenvolver um imunizante para humanos’, diz vacinologista

Em entrevista ao GLOBO, professor da UFRJ explica o que é a doença, por que ainda não temos uma vacina para pessoas e defende que o Brasil, como um dos países mais afetados, deve tomar a dianteira nessa pesquisa

Embora seja endêmica em quase oitenta países, quatro nações concentram sozinhas mais da metade dos casos de leishmaniose visceral: Sudão, Quênia, Brasil e Índia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O cenário não é inofensivo já que, quando não tratada, a doença é fatal em 95% dos casos – e tem uma alta letalidade mesmo com os devidos medicamentos.

Não à toa, a leishmaniose visceral, assim como as outras formas da doença, está no radar de diversos cientistas brasileiros que buscam o desenvolvimento de uma vacina inédita contra os parasitas do gênero Leishmania para humanos. Hoje, apenas uma versão para cães está disponível.

Para o vacinologista Hebert Guedes, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IMPG/UFRJ), e pesquisador em saúde pública do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), aqueles que estudam imunizantes no Brasil entendem a responsabilidade que têm em tomar a dianteira dessa corrida por uma dose segura e eficaz.

— O Brasil é um dos principais países endêmicos, então é necessário uma liderança científica do país para produzir uma vacina. Nós brasileiros entendemos a responsabilidade que temos sobre essa doença, e agora o aumento nos casos da leishmaniose canina é um alerta para humanos. Precisamos nos dedicar para desenvolver esse imunizante — afirma o especialista.

Guedes tem uma candidata de seu grupo de pesquisa demonstrando resultados promissores em testes com animais. Em entrevista ao GLOBO, ele fala sobre o que é a doença, aponta as dificuldades em conseguir uma vacina para humanos e destaca a importância de se investir na ciência do país.

O que é a leishmaniose?

O certo é falar as leishmanioses, porque elas são espectros de doenças. Você tem duas grandes formas, que é a tegumentar, também conhecida como cutânea, que acomete a pele, e a forma visceral, que acomete as vísceras, principalmente fígado, baço e medula. Os parasitas do gênero leishmaniose são os responsáveis pelas doenças, mas existem até 22 espécies diferentes capazes de infectar os humanos. Diferentes parasitas causam diferentes doenças.

Uma coisa comum desses parasitas é que o hospedeiro deles dentro de nós é uma célula do sistema imune chamada macrófago. Ela é responsável por fagocitar, que é um mecanismo de matar e eliminar um invasor. Mas, como ela é a hospedeira do parasita, a leishmania consegue subverter essa resposta imune, ela desativa esse macrófago de dentro dele.

Por isso, no caso da visceral é tão grave. Se não tratar, morre. E, mesmo com o devido tratamento, parte das pessoas morrem. Já a cutânea, geralmente começa de forma localizada, que é uma lesão, mas existe a disseminada, a difusa e a que afeta a mucosa ou oral, ou nasal. São lesões feias, desfigurantes. Podem destruir o nariz, o palato, toda essa região

São os mesmos parasitas que causam as leishmanioses caninas? E como a doença é transmitida?

Sim, só que a manifestação clínica nos animais tem diferenças. A doença é transmitida pelo flebótomo, conhecido como mosquito palha. Ele pode levar a doença de homem para homem, de animal para homem, de homem para animal, todos esses cenários são possíveis. Então vemos como muito preocupante a leishmaniose canina, porque quanto mais animais são infectados, maior é a probabilidade de o parasita chegar ao homem.

Por que não temos vacinas para humanos?

Hoje existe apenas uma vacina para leishmaniose canina. Ela é feita de proteínas (partes do vírus que induzem a resposta imune), e usa um adjuvante para estimular a resposta. Só que esse adjuvante, chamado saponina, ainda não é aprovado para uso em humanos. Então essa é a primeira dificuldade que nós temos, embora tenhamos estudos que avaliam o uso em humanos para conseguir uma aprovação.

Só que também existem outras barreiras, como a dificuldade de se conseguir uma única proteção para um protozoário como a leishmania com apenas um antígeno (proteína). Porque são diferentes parasitas causadores da doença, e eles são microrganismos complexos.

Hoje no mundo as únicas vacinas que existem para protozoários são as duas para a malária que começaram a ser implementadas em países africanos nos últimos dois anos. Porque é tão mais difícil fazer um imunizante para eles do que para vírus, que já contam com doses há centenas de anos?

Existe a questão da proximidade evolutiva. Os vírus nem seres vivos são (já que são acelulares). Já as bactérias são procariontes (células que não possuem núcleo verdadeiro). Os protozoários e os fungos são eucariontes, como nós (células com núcleos). Então nós somos muito mais próximos deles, temos uma dificuldade clara aí porque não podemos imunizar contra partes que são parecidas com a gente, não podemos causar uma doença autoimune. Então precisamos encontrar proteínas presentes neles (protozoários), que não estejam presentes em nós e que, ao mesmo tempo, sejam boas para induzir uma resposta imune.

E no caso da leishmaniose, uma das grandes dificuldades é que os anticorpos não são protetores. Precisamos de vacinas que induzam uma resposta das células de defesa T. Porque a leishmania está dentro do macrófago, e a célula que mata ela é o macrófago. Então precisamos que a célula T converse com o macrófago e fale “mate a leishmania””.

Qual a importância de o Brasil tomar a dianteira no desenvolvimento dessa vacina?

A leishmaniose é uma doença que nós temos muitos casos aqui, os outros grandes países não têm. Então é grave o nosso quadro, o Brasil é um dos principais países endêmicos. É necessário uma liderança científica do país para produzir uma vacina. Nós brasileiros entendemos a responsabilidade que temos sobre essa doença, e agora o aumento nos casos da leishmaniose canina é um alerta para humanos. Precisamos nos dedicar para desenvolver essa vacina. Existem outros grupos no mundo que ficamos felizes que estão tentando também, mas entendemos que é uma responsabilidade nossa.

Você disse que são mais de 20 espécies de parasitas, as vacinas em desenvolvimento hoje são focadas em mais de uma?

No meu grupo, nós avaliamos nossos candidatos com a braziliensis, infantum e amazonensis (entre as espécies mais comuns). Nós buscamos doses que protegem contra diferentes formas da doença porque temos lugares muito próximos com parasitas distintos, ou até no mesmo local. Então o ideal é encontrarmos uma vacina que proteja contra diferentes formas, mas nós sabemos que é difícil.

Em relação ao Brasil tomar essa liderança no desenvolvimento da vacina, como estamos nesse processo?

Nós temos a capacidade científica e técnica para desenvolver vacinas, mas é necessário investimento na área. Porque a vacina é cara. Mas com investimento é possível desenvolver vacinas aqui no Brasil. Nós precisamos de apoio também para fazer essa translação da bancada para a clínica. Em levar os produtos que desenvolvemos nos laboratórios para estudos clínicos. As grandes universidades, institutos de pesquisa, estão cada vez mais olhando para isso. Hoje esses são os dois gargalos que nós temos: o investimento e os recursos para os estudos. As competências nós temos.

E como está o desenvolvimento das suas pesquisas?

Aqui no meu grupo nós temos um candidato vacinal feito de proteínas que estamos patenteando, que teve uma proteção contra as três espécies de leishmania. Agora queremos realizar um estudo pré-clínico em primatas não humanos. Porque testamos ainda somente em camundongos e hamsters.

Com a pandemia, acredita que estamos em um novo momento da vacinologia?

Uma coisa importante é que a cada um dólar investido em vacina, em média você economiza 14 dólares de encargos hospitalares e semelhantes. Então é investimento e termos as plataformas muito bem encaminhadas, a capacidade de produzir os diferentes tipos de vacinas, os estudos e o investimento melhoram muito a nossa resposta a uma futura epidemia e pandemia.

O desenvolvimento da vacina para Covid-19 foi rápido porque já tínhamos infecções por coronavírus e esses vírus já eram estudados. Esse investimento na ciência a longo prazo foi o que permitiu essa celeridade. Um país soberano é um país que investe em ciência, que tem capacidade de lidar com as suas crises.