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No lugar do peixe, pescadores da Ilha tiram do mar outro sustento: o lixo

No lugar do peixe, pescadores da Ilha tiram do mar outro sustento: o lixo

Há 25 anos, o pescador Samuel Bittencourt trocou a Baixada Fluminense, onde tirava o sustento da pesca em rios e açudes, por Bancários, na Ilha do Governador.

— Era a melhor região para pegar peixe — lembra o pescador de 61 anos, enquanto conduz sua pequena embarcação próximo aos manguezais no entorno do Galeão. — Hoje, a pesca na Baía de Guanabara está falida. Tem semana que não paga nem a despesa de ir para o mar. Na semana passada, não deu nem cem quilos. Então, parei. Só vou voltar a pescar em novembro, depois do inverno.

A queixa de Samuel é igual a de outros pescadores artesanais da Ilha do Governador, que hoje sobrevivem mais do lixo do que do peixe. Numa ironia do destino, famílias de Bancários e da Colônia Z-10, que viram o pescado quase sumir em menos de duas décadas do seu litoral — muito em parte por causa da poluição —, hoje ganham para recolher resíduos da Baía de Guanabara.

Pescadores da Ilha do Governador recebem diária para recolher lixo
Pescadores da Ilha do Governador recebem diária para recolher lixo Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

O trabalho faz parte de uma sofisticada engrenagem de compensação ambiental: através do Instituto BVRio, o projeto é financiado pela empresa social italiana Ogyre, especializada em lixo no mar e que atua no mercado internacional de créditos de logística reversa — adquiridos por fabricantes para comprovar que uma massa equivalente à de embalagens comercializadas retornou ao ciclo produtivo.

Os homens saem para o mar duas vezes por semana com a missão de, em 12 meses, retirar da Baía cem toneladas de lixo. Na última terça, mais de uma tonelada foi coletada dos manguezais da Ilha do Governador com o apoio de cinco pequenas embarcações, sendo três a remo e duas a motor. O material, após ser todo separado, segue para cooperativas de reciclagem. Na primeira etapa da ação, de dezembro a março, 20% tiveram reaproveitamento. O que não pode ser reciclado vai para o aterro sanitário.

— Antes, só pegava peixe de luxo, como robalo, badejo, linguado. Hoje, estamos aqui pescando lixo — resume o presidente da colônia de Bancários, Ronaldo Barboza, de 59 anos, que coordena o processo, monitorado on-line pelo aplicativo Kolekt, usado também em projetos da BVRio fora do país, como com catadores no Vietnã e no México.

Montanha de chinelos

 

Materiais recolhidos na Baía (por kg)
Materiais recolhidos na Baía (por kg) Foto: Editoria de Arte

O trabalho é pago através de diárias, o que dá mais de um salário mínimo por mês para cada pescador. A renda de Samuel e de outros da região — num total de 23 — vem hoje, basicamente, do projeto. Em 14 dias de ação, em abril e maio, o total de resíduos recolhidos passou de 17 toneladas. Se somada a quantidade coletada na primeira etapa do projeto, iniciado em dezembro, os pescadores já removeram mais de 30 toneladas de lixo do mar.

Na hora da pesagem chama a atenção a montanha de chinelos e o volume de sapatos e brinquedos. Pelos pequenos barcos, chegaram também na terça uma cama box e mais de uma TV. Numa área de mangue que margeia o aeroporto, Francinaldo Alves da Silva, o Naldo, um baiano de 47 anos que chegou com 10 à Ilha, prova que o local está todo tomado pela poluição: basta colocar a mão na água que pedaços de plástico vêm junto. Ele conta que, embora ainda muito rica, a vida na Baía vai morrendo com os detritos: microplásticos, por exemplo, tapam os buracos dos caranguejos.

Pescadores participam de economia circular recolhendo lixo de manguezais da Baía de Guanabara,
Pescadores participam de economia circular recolhendo lixo de manguezais da Baía de Guanabara, Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

— O que o projeto paga está salvando a gente. Já estava difícil, e com essa chuva agora vem muito lixo dos rios. Não dá para pescar — lamenta ele.

Ailton Rodrigues, o Catatau, de 67 anos, também pega no pesado. Na última semana, enfrentou as pedras de um rio sem botas e removeu um sofá. A profissão de pescador ele herdou do pai, Octavio, que foi um líder local. Ailton é um dos que vivem precariamente num dos quartinhos de um galpão de madeira à beira-mar, onde atrás corre um valão. Outro vizinho é o estaleiro Eisa, fechado há cinco anos e que abriga uma série de embarcações abandonadas, inclusive cargueiros.

— O lixo atrapalha muito a pesca, porque vem tudo que é porcaria na rede. Já tirei um saco cheio de agulhas e material cirúrgico. A gente tinha muita tainha, corvina, pescadinha, espada… Mas a poluição e a falta de fiscalização estão destruindo tudo. O marisco acabou — relata. — Esse valão era um rio com água limpinha. E se vivia muito melhor com a pesca.

Enquanto Catatau fala, aparecem no horizonte as temidas traineiras, apontadas pelos pescadores artesanais — que, sem renovação pelos mais jovens, correm sério risco de extinção — de atuarem de forma predatória com pesca de arrasto, levando os peixes pequenos da Baía. Outro vilão ali são os currais de pesca montados indiscriminadamente perto dos manguezais. Com o pescado desaparecendo e sem preço no mercado, a colônia de Bancários, que no começo dos anos 2000 tinha mais de 200 pescadores, hoje não passa de cem.

Economia circular

Experientes, eles ainda se espantam com o lixo sem fim da Baía. O trabalho de retirada dos resíduos começa sob os primeiros raios de sol e termina no meio da manhã, com os barquinhos, escoltados pela cadela Princesa, chegando abarrotados. Cada um suporta até 200 quilos.

— Esse trabalho é bom para a gente. Se conseguir limpar a Baía, tudo pode melhorar — avalia Jorge Luiz Machado, de 65 anos, que está na quarta geração de pescadores da família.

Antes da Olimpíada do Rio, em 2016, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) estimou que a Baía recebe 90 toneladas de lixo por dia. Mesmo representando uma gota nesse oceano, os pescadores da Ilha seguem com a coleta até abril de 2023, podendo o contrato ser renovado. Especialista em economia circular na BVRio, Pedro Succar explica que cada crédito de logística reversa no mercado equivale a uma tonelada de resíduos retirada da natureza. No caso do projeto com os pescadores, grandes empresas de fora do país estão pagando por ele US$ 1,2 mil (cerca de R$ 5,8 mil).

A ONG foi fundada pelos irmãos Pedro e Mauricio Moura Costa. Pedro, baseado na Inglaterra, integrou os estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, reconhecidos com o Prêmio Nobel da Paz. CEO no Brasil da BVRio, Mauricio diz que, desde o início, eles buscam conectar grandes empresas a quem está na ponta atuando com a coleta de resíduos:

— O crédito vem com a ideia de mensurar a atividade feita pelo catador, que traz em si uma ação ambiental positiva e que prestava um serviço não remunerado e não valorizado, até se estabelecer a responsabilidade das empresas de reverter esse material.