Anchor Deezer Spotify

Mercado de créditos de carbono é instrumento importante contra emergência climática, defende especialista do IDS

Mercado de créditos de carbono é instrumento importante contra emergência climática, defende especialista do IDS

Incêndios em projetos de compensação de carbono e inconsistências em padrões do setor geraram críticas a este mercado nos últimos meses. Para coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade, há margem para aperfeiçoamento, mas instrumento segue sendo importante

Atividade sem padronização ou regulamentação internacional que seja vinculante para todos os praticantes, a geração e comercialização de créditos de carbono tem sofrido seguidos questionamentos nos últimos meses. O episódio mais recente envolveu um incêndio florestal que afetou um projeto de compensação no Canadá, jogando o carbono sequestrado pelas árvores de volta à atmosfera e gerando dúvidas sobre o que aconteceria com os créditos ali gerados.

Com as mudanças climáticas tornando os incêndios florestais mais constantes nas temporadas de seca (como se vê atualmente em várias partes do hemisfério norte e de forma dramática no Havaí), questionou-se nesse e em outros casos semelhantes se a geração de créditos de carbono a partir de árvores que a qualquer momento podem não estar mais de pé seria um modo seguro e eficiente de combater a crise do século.

Outros questionamentos aconteceram quando, em janeiro deste ano, uma investigação do The Guardian, Die Zeit e SourceMaterial encontrou “problemas generalizados” com o sistema da Verra – organização sem fins lucrativos com o padrão de certificação de créditos de carbono mais disseminado em todo o mundo. Apontou-se que mais de 90% dos créditos gerados em florestas tropicais nos projetos ligados à Verra não representavam reduções genuínas das emissões, superestimando as ameaças às áreas verdes nas quais os cálculos se baseavam e inflando seus benefícios ao clima.

Na ocasião, a Verra contestou veementemente as descobertas e reafirmou a credibilidade de seu sistema. No entanto, poucos meses depois anunciou que iria atualizar suas metodologias, além de ter ampliado sua equipe e revisado os projetos em andamento. A pressão acabou gerando a saída do CEO da companhia.

À medida em que o Brasil ganha importância no mercado de carbono – segundo a Carbonext, uma das empresas que gerenciam projetos de compensação no país, o mercado brasileiro emitiu cerca de 35 milhões de créditos em 2022, maior número já registrado em um ano com exceção de 2021, quando os 63 milhões foram inflados por um um represamento de anos anteriores – , os questionamentos ao mecanismo também repercutem por aqui.

Para Marcos Woortmann, coordenador de políticas socioambientais do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), muitas das críticas feitas ao sistema de créditos de carbono são válidas, mas não se pode descartar a prática por causa delas. “Esse mercado é um incentivo para uma mudança sistêmica rumo a uma economia de baixo carbono. E nós sabemos que são necessários incentivos econômicos, pois não haverá o atingimento de metas globais climáticas se não houver uma transformação da economia”, aponta.

No caso dos incêndios afetando unidades de compensação, Woortmann afirma que, dadas as mudanças climáticas já em andamento, eles são “algo que vai ocorrer independentemente das iniciativas do ser humano de adaptação”, afetando quaisquer instrumento de combate a elas que a humanidade venha adotar. Sua possibilidade precisa ser levada em conta na elaboração dos projetos, diz, mas “se nós abandonarmos uma dessas frentes por uma questão de limitações técnicas que podem ser contornadas, aí é certeza que a humanidade não vai conseguir cumprir suas metas [de redução das emissões]”.

Incêndios no Canadá afetaram unidade de compensação de carbono, jogando incerteza sobre os créditos ali gerados.  — Foto: Getty Images

Incêndios no Canadá afetaram unidade de compensação de carbono, jogando incerteza sobre os créditos ali gerados. — Foto: Getty Images

Já sobre os padrões de certificação dos créditos emitidos, o coordenador do IDS diz que “é muito meritório o trabalho de organizações como a Verra” para estabelecer mecanismos globalmente viáveis. Mas o ideal, diz, seria que uma organização internacional – como uma agência da ONU – centralizasse essa função, para evitar que a lógica de mercado acabe guiando um instrumento dos mais importantes para a adaptação climática. “Para atingir a necessária escala, confiabilidade e adaptabilidade dos processos, e dada a necessidade de absoluta transparência nesse mercado, é necessário que esse tipo de regulação e esse tipo de estabelecimento de padrões seja feito por organizações que não têm interesse econômico direto”, diz o especialista.

Instrumentos usados para proteger as florestas geradoras de créditos

Na verdade, a maior parte dos projetos geradores de créditos de carbono já possuem um mecanismo para usar nos casos de danos à sua integridade. É o “estoque de amortecimento” (buffer pool em inglês), uma quantidade extra de créditos pela qual a empresa contratante paga para servir de “seguro” caso a área do projeto seja afetada por algum evento inesperado.

Os projetos possuem diferentes quantidades de créditos separados para esse mecanismo, mas é difícil garantir que eles deem conta de todas as eventualidades. Na Califórnia, que tem um mercado de carbono regulado e constantemente sofre com incêndios florestais, a CarbonPlan estimou em 2022 que ocorrências em seis projetos de compensação no Estado desde 2015 já teriam jogado à atmosfera algo entre 5,7 e 6,8 milhões de toneladas de carbono – praticamente todo o estoque de amortecimento previsto pelo governo local para o período de um século.

Por isso, e pela própria integridade dos projetos de geração de créditos, é necessário ter também mecanismos de prevenção ao fogo e a outras ameaças aos créditos, diz Marcos Woortmann, do IDS. Algo que, na opinião dele, ainda precisa melhorar bastante no mercado de carbono.

nos projetos REDD+, reflorestamento e preservação de florestas são usados para geração de créditos de carbono — Foto: Edson Lopes Jr/ A2AD / Divulgação

nos projetos REDD+, reflorestamento e preservação de florestas são usados para geração de créditos de carbono — Foto: Edson Lopes Jr/ A2AD / Divulgação

“É absolutamente necessário haver um nível de cuidado e prevenção muito maior do que existe atualmente. É necessário criar linhas de interrupção de incêndios, aceiros que são muito comuns nas áreas de pastagem por exemplo; e é necessária a formação de brigadas, tanto voluntárias quanto profissionais, de combate aos incêndios, para atuação rápida nos incêndios iniciais e não permitir que se espalhem e se tornem incontroláveis”, diz.

No Brasil, incêndios também são ameaça, mas com um perfil diferente. Na Amazônia, bioma onde estão vários projetos de geração de créditos de carbono, as queimadas cresceram 14% no 1º semestre de 2023, segundo a rede MapBiomas. Mas na floresta amazônica é menos comum que o fogo ocorra por fenômenos climáticos como a seca – ele está mais relacionado ao uso intencional do fogo em pastagens.

A Carbonext, desenvolvedora de projetos de compensação de carbono, tem 17 desses na Amazônia (todos do tipo REDD+, que gera e comercializa créditos por meio da preservação da floresta em áreas de risco). Segundo a co-CEO da Carbonext e engenheira florestal Janaína Dallan, os métodos empregados para monitoramento dos mais de 5 milhões de hectares sob supervisão da empresa envolvem treinamento de brigadistas nas comunidades que vivem nas regiões protegidas e monitoramento via satélite com inteligência artificial.

“Temos uma IA que confere as imagens do Prodes (sistema de monitoramento de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), MapBiomas, e identifica se há qualquer desmatamento ou fogo nas áreas em que atuamos. Se tem qualquer ocorrência, vemos se é o caso de acionar combate o incêndio, autoridades, locais, etc”, conta Dallan ao Um Só Planeta.

Janaína Dallan, co-CEO da Carbonext — Foto: Divulgação

Janaína Dallan, co-CEO da Carbonext — Foto: Divulgação

Para eventualidades que passem por esse cerco protetivo e acabem danificando algum projeto, a Carbonext usa o estoque de amortecimento, a exemplo dos projetos em Canadá e Califórnia. “Essa ferramenta leva em conta vários possíveis fenômenos, até correntes de ar que possam derrubar umas poucas árvores. Todas as questões específicas do bioma são analisadas e pesadas. [O método] tem que ser usado, porque há sempre alguma possível eventualidade”, aponta.

Além disso, conta a co-CEO, quando um contrato de comercialização de créditos é firmado com alguma empresa poluidora, eles são contabilizados ano a ano, com a conta sendo ajustada conforme imprevistos aconteçam e as condições da floresta sejam reavaliadas.

Mas, segundo a executiva, o principal risco aos projetos que a empresa avalia na Amazônia não é o desmatamento ou o fogo, e sim algo que os precede: a grilagem. “A cada 10 áreas que chegam para avaliarmos, 7 não passam no nosso crivo de documentação legal. E das 3 que passam, 2 vão pra área legal e diligência técnica, e muitas vezes não são aprovadas. Temos a política de negar no caso de qualquer dúvida”, afirma.

Treinamento de brigadistas em projeto de compensação de carbono da Carbonext — Foto: Divulgação/Carbonext

Treinamento de brigadistas em projeto de compensação de carbono da Carbonext — Foto: Divulgação/Carbonext

A Carbonext usa os padrões de certificação da Verra, tendo até o momento 3 de seus projetos já certificados – as demais iniciativas estão em diferentes etapas de desenvolvimento, auditoria e certificação. Segundo Dallan, a metodologia da certificadora, ainda que esteja sendo revisada, é “muito robusta”. “O problema é o uso que muitas vezes fazem dela”, diz.

Regulação e aperfeiçoamentos possíveis

Assunto discutido há anos no Brasil, a regulação do mercado de carbono é tema de interesse – ao menos declarado – do atual governo federal, que prometeu enviar um projeto de lei ao Congresso ainda em 2023. Segundo a minuta do PL divulgada ao mercado, a ideia inicial é endereçar os maiores emissores de carbono – empresas que emitem anualmente mais de 25 mil toneladas de CO2, como as grandes siderúrgicas e companhias de cimento e alumínio. As empresas precisariam informar suas emissões ao governo, e, quando passarem do limite estipulado, teriam de comprar crédito de outra que os tenha disponíveis.

O mercado regulado coexistiria com o voluntário, que envolve os projetos de preservação da floresta e reflorestamento. Mas não está descartado que este também seja alvo de novas normas para garantir a credibilidade da contagem de créditos.

Marcos Woortmann, do IDS, aponta que é um bom ponto de partida: “foi instituído que os pontos consensuais vão ser avançados primeiro, e outros pontos secundários serão matéria de negociação posterior. Isso é positivo, pois o importante é que o mercado de fato se inicie”, diz.

Janaína Dallan, que também preside a Aliança Brasil NBS, que reúne 25 organizações do setor de compensação de carbono, também elogiou a intenção de “construir uma ponte” entre os mercados regulado e voluntário, mas vê como um risco a possível ingerência sobre o mercado voluntário.

Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva prometeu enviar "em breve" projeto de criação de um mercado regulado de carbono no Brasil — Foto: José Cruz / Agência Brasil

Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva prometeu enviar “em breve” projeto de criação de um mercado regulado de carbono no Brasil — Foto: José Cruz / Agência Brasil

“Apesar de suas diferenças, os mercados regulado e voluntário devem ser tratados de forma complementar, na medida em que os créditos de carbono gerados no mercado voluntário podem ser utilizados pelos atores que participam do mercado regulado para alcançarem suas metas. Tal complementaridade não se confunde com a regulação”, diz o posicionamento oficial da Aliança sobre a regulação no setor.

Para Woortmann, é importante que qualquer processo de direcionamento do mercado de carbono leve para a diminuição das emissões, e não só para compensação financeira. Assim, afirma, será possível rebater as críticas (que ele diz considerar “necessárias”) de grupos ambientalistas que chamam as compensações de carbono de “licença para poluir”.

“Nós precisamos aperfeiçoar o sistema para que ele seja atrativos o suficiente para a iniciativa privada investir no sequestro de carbono, e também para não viabilizar o greenwashing, em que compensa mais a empresa continuar emitindo e compensar, do que ela diminuir as suas emissões. É necessário que o cálculo de uma empresa parta sempre da diminuição. E onde não for possível diminuir, então compensar. Esse é o grande desafio dos mercados de carbono.”

Considerar os povos da floresta

Outras questões ainda não resolvidas no mercado de créditos de carbono dizem respeito à participação de povos tradicionais e originários nesses planos de compensação. Afinal, sabe-se que onde esses povos vivem a floresta é mais protegida. No entanto, projetos para recompensá-los pelos serviços ambientais prestados ainda não decolaram no país.

Iniciativas desse tipo foram tentadas pela Carbonext junto a algumas comunidades indígenas, como a Terra Indígena Kayapó, no Pará. Mas, nesse em outros casos, o acordo de geração de créditos de carbono e compensação dos indígenas pela preservação da floresta foi rompido pouco tempo depois do contrato ser assinado.

A empresa afirma a Um Só Planeta que resolveu não avançar com os projetos porque “o ecossistema de organizações públicas e privadas que se relacionam com povos originários ainda tem dúvidas e precisa estar mais alinhado ao mercado de créditos de carbono para que os projetos tenham a fluidez necessária para atingir objetivos satisfatórios para todas as partes envolvidas”.

A Carbonext afirma que acredita no potencial de projetos REDD+ em parceria com povos indígenas “por entender a sua importância para a conservação, restauração e desenvolvimento sustentável da bioeconomia florestal”. No enquanto, preferiu “dar um passo atrás” enquanto esse ecossistema se solidifica.