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Direito à água potável poderá ser incluído na Constituição

Direito à água potável poderá ser incluído na Constituição

Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que inclui o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais da Constituição Brasileira. No mês de março, quando se comemora o Dia Mundial da Água (22), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por meio de sua Comissão de Meio Ambiente, intensifica sua campanha pela aprovação da PEC 6/2021 – a “PEC da água potável” – que convoca o engajamento de jornalistas e instituições da sociedade civil.

A emenda segue o rastro da Resolução 64/292, da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de 28 de julho de 2010, que instituiu o direito à água como um direito humano e contou, inclusive, com o voto favorável do Brasil. A perspectiva é de que o Brasil se junte a outros países da América Latina que já incorporaram esse direito em suas legislações nacionais, como Uruguai, Equador, Bolívia, Costa Rica, Cuba e México.

De acordo com o Censo 2022, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à rede geral de distribuição de água tratada no País, o equivalente a 17,1% da população. Soma-se a isto a desigualdade na distribuição, sendo as regiões Norte e Nordeste as menos atendidas com o abastecimento de água tratada. Enquanto Sudeste, Sul e Centro-Oeste têm, respectivamente, 90%, 91% e 89% da população com acesso, no Norte e Nordeste são 64% e 76%.

Inicialmente apresentada por senadores em 2018, a PEC recebeu aprovação unânime do plenário do Senado em 2021 e segue em tramitação na Câmara dos Deputados, já tendo parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania desde outubro de 2023.

No fim de fevereiro, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Octávio Costa, enviou carta a 20 lideranças partidárias da Câmara dos Deputados na qual solicitava o apoio e a máxima urgência na apreciação da matéria, como parte das ações da campanha pela aprovação da PEC, que já recebeu apoio de associações e organizações como o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), a Associação Cearense de Imprensa (ACI), a Associação da Imprensa de Pernambuco (AIP), o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Segundo o engenheiro e professor Léo Heller, essa mudança na Constituição significaria o compromisso com a “reparação de uma dívida histórica” que o Brasil tem com o tema, já que em 2020, quando foi aprovada a Lei Nº 14.026, que alterou o marco regulatório do saneamento básico, o Congresso Nacional foi omisso quanto à incorporação efetiva desse direito que o País já havia reconhecido ao subscrever a Resolução da ONU dez anos antes.

colocar em prioridade as populações que vivem em maior vulnerabilidade, como as populações rurais, de favelas, em situação de rua, indígenas, quilombolas. Significa tratar água e saneamento como direitos humanos e priorizar o atendimento a essas pessoas historicamente invisibilizadas

Léo Heller
Engenheiro e professor

Heller, que foi Relator Especial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas entre 2014 e 2020, prevê que, com a emenda constitucional, as políticas públicas passem a se orientar mais pelos direitos humanos, quando na realidade atual elas ainda são muito voltadas para uma visão tecnicista e economicista.

Essa nova abordagem traz a diferença de “colocar em prioridade as populações que vivem em maior vulnerabilidade, como as populações rurais, de favelas, em situação de rua, indígenas, quilombolas. Significa tratar água e saneamento como direitos humanos e priorizar o atendimento a essas pessoas historicamente invisibilizadas”, complementa.

Disputas e divergências

Outro ponto sensível sobre o tema é a contaminação das águas no País, apontada como “ecocídio” por Maiana Maia, do Núcleo de Políticas e Alternativas da Fase – Solidariedade e Educação. Ela argumenta que o fato cria uma crise hídrica que vai muito além da falta de chuvas. “Estamos lidando com contextos ampliados, generalizados de contaminação das águas por agrotóxicos e metais pesados, tanto nos corpos hídricos quanto na água que chega nas nossas torneiras para consumo humano”, explica.

Conforme Maia, a elaboração de propostas como a PEC 6/2021 “faz parte dessa luta em defesa das águas e da exigência de respostas mais eficazes, reconhecendo não apenas o direito à água, mas à água potável, limpa, que leve saúde e não como vetor de doenças. É esse o efeito que se pretende ter quando se solicita uma mudança na Constituição: um desejo de que essas lutas sociais sejam reconhecidas, porque isso é uma manifestação e uma forma de dar concretude a outro direito já reconhecido constitucionalmente, que é o direito à vida”.

Por outro lado, embora trate de um elemento essencial à vida humana, há quem possua divergências quanto ao projeto. Heller explica que os grupos mais conservadores e de extrema direita no Congresso Nacional “rejeitam qualquer narrativa que fale em direitos humanos”. Além disso, “existem aqueles que defendem uma visão mais tecnocrática, mais economicista das políticas de saneamento e não vêem como positiva uma afirmação clara de saneamento como direito social”, revela.

Entre os dois lados, há o que Maia aponta como perigo de “constitucionalização simbólica”, isto é, o esbarro nas limitações do texto constitucional diante do desafio de fazer valer esses direitos na prática. “A luta não se resolve com a PEC. Não vale estar na letra da lei se não estiver no corpo dos territórios”, conclui. Dessa forma, o problema estaria menos em conseguir aprovar a emenda e mais na disputa em garantir a realização desse direito diante de poderosos atores econômicos imbricados na gestão das águas no Brasil.

Isso porque, explica, existe uma “captura” corporativa de responsabilidades que deveriam ser públicas, dispondo a gestão das águas no Brasil ao atendimento de interesses particulares por meio de um lobby que flexibiliza legislações ambientais, inclusive a de potabilidade da água. “Ano a ano, as normativas vão se tornando mais permissivas à contaminação da água que é considerada própria para consumo humano, podendo ter quantidades cada vez maiores de agrotóxicos e metais pesados”, exemplifica.

Água potável nas escolas

Iniciativa semelhante foi apresentada à Câmara dos Deputados em novembro de 2023 pela deputada Duda Salabert (PDT-MG), que coordena o Grupo de Trabalho (GT) sobre Água, Gênero e Segurança Climática da Frente Parlamentar Ambientalista. O Projeto de Lei 5696/23 visa garantir o acesso à água potável nas escolas.

O texto da proposta argumenta que, segundo levantamento da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), a partir do Censo Escolar 2021 ao menos 14,7 milhões de estudantes brasileiros enfrentam problemas de infraestrutura nas escolas, como falta de banheiros (3,78%), esgoto (5,53%) e água potável (5,84%). Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também revelam que ainda há no Brasil pelo menos 3.000 escolas municipais sem água e outras 21 mil com acesso inadequado.