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Alessandra Korap e a luta pela preservação do território Munduruku

Alessandra Korap e a luta pela preservação do território Munduruku

Coordenadora da associação de AI Pariri Munduruku, a líder indígena fala sobre a defesa de sua cultura e território, impactos sociais e ambientais de seu ativismo, maternidade e a romantização de sua luta e esforços: ‘ou você está na universidade, cercada de livro tentando entender as palavras difíceis, ou você está no meio do seu povo brigando em defesa do seu território’

A trajetória de ativismo de Alessandra Korap Munduruku, de 39 anos, começa em 2014, na região em que nasceu, Itaituba, no Pará, às margens do Rio Tapajós. Percebendo que seu povo estava sendo pouco a pouco cerceado de sua liberdade com a chegada de máquinas para desmatar e demarcar loteamentos, entendeu porque os hábitos culturais naquele território estavam desaparecendo.

“Quando era mais nova, não tinha ideia dos impactos que estávamos enfrentando e o que estava acontecendo ao nosso redor. E, com o passar do tempo, entre 2014, 2015, observei que minha aldeia estava no centro do desmatamento e avançava cada vez mais para construção de casas e loteamentos”, lembra Alessandra.

Preocupada com o legado das gerações futuras no território Munduruku, começou a se questionar: “será que meus filhos vão ter espaço aqui ou vão conhecer o rio como era, qual tipo de fruto tinha aqui, a caça, a natureza?”. Sua aldeia, Praia do Índio, já era pequena, com a devastação do território , comprometeu a vegetação e fauna, diminuindo a capacidade de subsistência das famílias, que dependem de caça e pequenas plantações.

Foi investigando que ela entendeu que seu povo já estava na luta pela demarcação do território Sawré Muybu, de mais de 178 mil hectares, e esta foi a virada de chave para que Alessandra mudasse o curso de sua vida e passasse a atuar na luta pela proteção de seu território.

“Quando comecei a ter minhas primeiras reuniões com os caciques, só observava porque eu queria estar ali perto, mas queria falar e, por ser mulher, muitas vezes, a gente não tem esse espaço, porque são os caciques que decidem, por serem os mais velhos e a liderança”, relembra.
— Alessandra Korap Munduruku
Alessandra Korap Munduruku no Rio Cururu, afluente do Rio Tapajó — Foto: Acervo Pessoal

Alessandra Korap Munduruku no Rio Cururu, afluente do Rio Tapajó — Foto: Acervo Pessoal

Para mim, o rio sempre foi uma estrada, que eu teria toda a liberdade de ir para onde eu quisesse ir.
— Alessandra Korap Munduruku

Em 2015, com a possível construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós, Alessandra participou de uma audiência em Santarém (cidade onde o Rio Tapajós se encontra com o Rio Amazonas), a pedido dos próprios caciques. Ela viu em primeira mão os resultados das audiências: foi por causa de um protocolo de consulta do povo Munduruku formulado em 2014, que proíbe a entrada de pesquisadores no território de sua etnia, que não conseguiram continuar os estudos para alocar a hidrelétrica, o que levou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em 2016 a suspender o licenciamento para a construção da usina.

Quatro anos mais tarde, em 2019, na tentativa de denunciar a ilegalidade do garimpo em seu território, Alessandra se uniu a pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para ajudar a informar e investigar o nível de mercúrio que os indígenas de sua região carregavam no corpo.

Em 2020, este estudo com o povo Munduruku, no Médio Tapajós, em parceria também com a organização WWF-Brasil (World Wide Fund For Nature – Brasil), indicou que todos os participantes da pesquisa estavam de alguma maneira afetados pelo contaminante, apontando que de cada dez pessoas testadas, seis apresentavam níveis de mercúrio acima do seguro.

Em função desta ação, no mesmo ano, Alessandra recebeu o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos e o Taz Panter Preis, premiação alemã, ambas por sua atuação como ativista em defesa dos direitos indígenas e pela preservação ambiental. E, em abril de 2023, ela foi condecorada com o prêmio Goldman Environmental Prize, o maior da categoria, pelo trabalho realizado em suas comunidades, organizando, junto a entidades como Apib e a ONG Amazon Watch, uma campanha de mobilização em sua aldeia para evitar que a empresa britânica de mineração Anglo American extraísse cobre dentro do território indígena Sawré Muybu, no Pará.

Como resultado, a empresa retirou os pedidos de pesquisa feitos à Agência Nacional de Mineração (ANM) para extração de cobre nos territórios indígenas nos estados do Mato Grosso e Pará. Hoje, Alessandra é coordenadora da associação de AI Pariri Munduruku, que trabalha com 13 aldeias, mas também atua no movimento da resistência pela luta para defender o território.

MARIE CLAIRE Qual é a memória mais importante que você tem do Rio Tapajós?

ALESSANDRA KORAP MUNDURUKU: Tenho várias lembranças, mas a maior delas era ir para o rio e saber que eu tinha todo o rio para mim. Olhar para o curso do rio e pensar “esta é a minha estrada, eu posso ir para onde eu quiser”. Hoje não é assim, todo canto tem dono, balsas, navios, não pode parar em qualquer lugar porque pode ser área particular. Para mim, o rio sempre foi uma estrada, que eu teria toda a liberdade de ir para onde eu quisesse ir.

Alessandra Korap Munduruku reunindo com mulheres Munduruku — Foto: Acervo Pessoal

Alessandra Korap Munduruku reunindo com mulheres Munduruku — Foto: Acervo Pessoal

como uma mulher, uma formiguinha, pequenina, vou incomodar muito, porque não estou sozinha e juntos somos muitas formiguinhas, e cada vez mais aliadas para expulsar estes invasores do território.
— Alessandra Korap Munduruku

MC: Quem te incentivou ou te inspirou a persistir na luta e no ativismo?

AKM: Tive incentivo da própria Maria Leusa Munduruku, uma grande guerreira do Alto Tapajós. Ela sempre me incentivava a falar, mesmo que muitas vezes eu tivesse medo. Eu conheci a Sonia [Guajaraja] e fiquei admirada com aquela mulher falando, mas não imaginava que eu também era uma das mulheres para falar ao mundo todo. Passei a falar do papel da mulher, me posicionar por elas, dizer que elas e as crianças precisavam ser consultadas. O pessoal dizia que eu ainda era muito nova no movimento, mas o conhecimento que eu estava adquirindo e a informação que eu tinha para passar das minhas reuniões com as mulheres, era grande.

MC: O incentivo a se posicionar também te motivou a estudar, certo? O que estudou?

AKM: Direito, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), que inclusive não me reconhece enquanto liderança indígena e sempre negou nossos direitos dentro da universidade. Passei no processo seletivo em 2018 para começar a estudar em 2019, que foi quando me mudei para Santarém e vi a dificuldade que era morar na cidade. Os vizinhos não me olhavam, não me davam bom dia. É como se o tempo fosse dinheiro. Não é o tempo para a vida, é para dinheiro mesmo. Em 2019, estava em uma organização para vir para Brasília com 50 lideranças, no mês de novembro, aí eu voltei, passei três dias em casa, tive a primeira invasão dentro da minha casa, em Santarém. Meu filho mais novo me abraçou e falou que tinha medo que me matassem.

Quando a gente salva nosso território, estamos salvando também a Mãe Terra
— Alessandra Korap Munduruku

MC: Você diria que a invasão foi pelo seu envolvimento com as lideranças em Brasília?

AKM: A minha fala já vinha incomodando. Não é de hoje, desde que entrei na luta pela defesa do território eu comecei a incomodar mesmo. As mulheres me contavam todos os ataques que estavam acontecendo no governo Bolsonaro e percebi que minha voz estava indo mais além, então eu não tinha que parar. E, quando veio a pandemia, achava que ficaria isolada – como todo mundo pedia – e foi o momento que fui para a minha aldeia e percebi que não chegava informação nenhuma. Ninguém sabia o que era COVID. As mulheres, principalmente, começaram a trabalhar com coletivos para levar a informação para o território, só que aí começou o problema, porque as organizações que nos ajudavam, como o Ibama e o ICMbio, começaram a ficar isolados, e nós tivemos que, com todas as nossas forças, lutar para defender o território, por isso houveram tantos ataques em 2020.

MC: Qual o cenário que vocês viviam?

AKM: Os garimpeiros começaram a nos atacar e entrar no território, era gente mandando áudio pedindo socorro porque não estava mais aguentando ver os filhos usando drogas e se prostituindo. Armas entrando no território. A gente falava para todos se cuidarem, tomar remédios, usar a floresta pela cura, para que assim pudéssemos continuar vivos, porque eles querem nos matar. Os garimpeiros e o COVID fizeram com que os caciques mais velhos conhecessem a internet, e nós soubemos usar muito bem a tecnologia. Ter como trocar informações foi o que nos salvou. Pedimos que a Fiocruz fizesse análise do cabelo do povo, fizemos a paralisação da Anglo American em 2021, mas no dia 21 de novembro desse mesmo ano entraram pela segunda vez na minha casa, queimaram a casa da Maria Leusa, perseguiram os caciques, ameaçaram por fogo no ônibus que os levaria a Brasília, foram diversos ataques. Nós realmente colocamos a nossa vida em risco para salvar o nosso planeta. Porque quando a gente salva nosso território, estamos salvando também a Mãe Terra.

MC: Como foi o processo da pesquisa com a Fiocruz, que lhe rendeu o seu primeiro prêmio internacional, Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos?

AKM: A Fiocruz nos auxiliou com a pesquisa dos fios de cabelo para mostrar que estávamos contaminados com mercúrio e como íamos nos tratar. Tivemos uma reunião no ano passado, em julho, com a fundação, DPU [Defensoria Pública da União], Funai, porque quando recebemos o resultado as mulheres não sabiam o que fazer, já que o leite estava contaminado com mercúrio e assim contaminando seus filhos. Quem ia nos salvar? Será que agora iremos parar de lutar? E mesmo assim continuamos, com nossos corpos doentes, com nossos filhos doentes, nós continuamos para cima. Fizemos aliança entre os três povos, Munduruku, Kayapó e Yanomami, para nos fortalecer e passar a mensagem: o povo que está sofrendo com o garimpo e o mercúrio, vai resistir.

Alessandra Korap Munduruku — Foto: Acervo pessoal

Alessandra Korap Munduruku — Foto: Acervo pessoal

MC: O prêmio Goldman de Meio Ambiente é sua segunda premiação internacional. Como foi o processo de barrar a mineradora Anglo American em seu território?

AKM: Quando saí do meu território para ir para a Brasília, foi que eu soube que a Anglo American queria explorar o território Sawré Muybu, tinham 13 pedidos para explorar este território. Quando vi o mapa não era para existir nenhuma aldeia. Depois, descobri que tinham 27 pedidos, tanto do Mato Grosso quanto do Pará, e eram dos próprios estados, as SEMAS [Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade], sem consultar se nós estávamos ali. Os estados negavam nossa existência no território e nós mostramos que ali era terra indígena. Juntei os caciques e – como não falo inglês – mandei escreverem para nós uma carta para a Anglo American dizendo que não a queríamos no território. Pedimos para a Apib e a Amazon Watch, para nos apoiar porque iríamos lutar. Nós passamos dias na mata, fazendo autodemarcação, enfrentando os garimpeiros e madeireiros, e foi quando eles disseram que não iriam prosseguir. Mas nunca pensei que isso iria render um prêmio. A empresa tem que respeitar quem tem este direito sobre o território, são eles que tem nos consultar se nós queremos ela no nosso território, e a gente não aceita. Vou dizer bem claro: como uma mulher, uma formiguinha, pequenina, vou incomodar muito, porque não estou sozinha e juntos somos muitas formiguinhas, e cada vez mais aliadas para expulsar estes invasores do território.

MC: As mulheres da sua comunidade te encorajaram e os caciques passaram a te consultar e dar espaço para que você pudesse representar seu povo. Como você enxerga este impacto?

AKM: Comecei a entender o tamanho da minha ação quando nas reuniões eles me chamavam para pedir minha opinião, mas sempre respeitando os mais velhos, as lideranças. Hoje, as mulheres me chamam para conversar, elas procuram se informar mais, o que me deixa muito feliz. Quando teve a marcha das mulheres lá em Brasília, as meninas mais novas me reconheciam e diziam que me admiravam, que eu as inspirava, que sempre acharam que eram os caciques que tinham que tomar decisões, mas que quando me viram falando, elas se sentiram encorajadas a assumir uma luta também. Sempre tive uma fala forte, é o meu jeito de reivindicar e estar ali na luta. Não podemos abaixar a cabeça para o pariwat, que são os homens brancos, foram diversos ataques durante estes 523 anos e a gente não pode abaixar a cabeça agora, se não nossas futuras gerações não estarão aqui.

Alessandra Korap Munduruku  — Foto: Acervo pessoal

Alessandra Korap Munduruku — Foto: Acervo pessoal

A nossa esperança são as mulheres que estão nos representando lá em cima, porque o governo anterior sucateou a Funai, o ICMBio, o Ibama, eles queriam nos deixar vulneráveis como fizeram com os Yanomami para nos matar.
— Alessandra Korap Munduruku

MC Você acredita que as pautas do governo atual estão alinhadas com os interesses e questões dos povos originários do Brasil?

AKM: Lula ainda nos deixa preocupados, porque são muitos no Congresso que nos odeiam. Apesar disso, fiquei feliz que o presidente assinou seis homologações de terras indígenas, isso é uma vitória. Mas ele está se redimindo por algo que ele não fez nos mandatos anteriores e deveria. Agora, ele se ateve ao compromisso de criar um Ministério dos Povos Indígenas, que ainda estão construindo, e não tinha outra pessoa para ser ministra, senão a Sônia Guajajara. Nós aqui da base temos que dar mais força para ela, porque sabemos que nem todos os ministérios pensam igual a Sônia, a Joênia Wapichana, que é presidenta da Funai, a Célia Xakriabá, que é deputada federal. Tem muita gente que se diz nosso parceiro mas está negociando com as mineradoras, agronegócio, ferrovias, e nós sabemos que estas mulheres em Brasília estão enfrentando essa porrada. Fico preocupada com Lula fazendo acordo com o Mercosul, porque é o nosso território que está no meio e vai sofrer com o avanço do agronegócio, a gente sabe do julgamento do Ferrogrão – megaprojeto de ferrovia para escoamento de soja e grãos, suspenso em 2021, por alterar os limites do Parque Nacional do Jamanxim, que pretendia ligar Sinop (MT), maior cidade produtora de grãos do país, e o porto Miritituba (PA) – a gente sabe do Marco Temporal, das hidrelétricas, dos portos, das mineradoras. A nossa esperança são as mulheres que estão nos representando lá em cima, porque o governo anterior sucateou a Funai, o ICMBio, o Ibama, eles queriam nos deixar vulneráveis como fizeram com os Yanomami para nos matar.

MC Você acredita que foi uma ação arquitetada do governo anterior o sucateamento destes órgãos públicos?

AKM: Com certeza, todas as falas dele [Jair Bolsonaro] eram sobre garimpo nas terras indígenas, parece que aqui só existia ouro, e aqui existe vida. E esse foi o caso dos Yanomami, que avisaram várias vezes que estavam sofrendo, sendo atacados, suas crianças desnutridas, mortas, e o governo fingia não ouvir.

Sei que minha liberdade eu não tenho mais, mas a do meu povo e a dos meus filhos é muito maior.
— Alessandra Korap Munduruku

MC: Você é vista como símbolo de luta e resistência, e, como chegou a falar da sua saúde mental, queria saber se isso não é uma romantização do seu sofrimento. Como você se sente atualmente?

AKM: Falando do lado emocional, muitas vezes me sinto presa. Não tenho mais aquela liberdade que eu tinha antes, de pegar meus filhos e ir na praça, de ir para o território, de não poder mostrar fotos dos meus filhos nem no aniversário ou dia das mães, você acaba se prendendo para você mesmo. Às vezes, olho para os meus filhos e digo “desculpe por não fazer mensagem na rede social, mas o mais importante para mim é chegar em casa e ver vocês vivos, com saúde”. Preciso que ninguém saiba quem são eles para que eu possa vê-los sorrir e brincar. Isso significa toda a minha felicidade. Muitas pessoas acham que é fácil ser liderança, estudante, mãe, dona de casa, você tentar melhorar de vida e muitas vezes não consegue, acaba adoecendo. Eu falo para a juventude, aproveite para estudar, porque se tornar liderança e querer estudar ao mesmo tempo, não dá. Porque ou você está na universidade, cercado de livro tentando entender as palavras difíceis ou você está no meio do seu povo brigando para defender seu território. Meu sonho agora é me formar, para ir na frente do STF, dos ministros, e falar pelo meu povo, pontuando leis e artigos. Sei que minha liberdade eu não tenho mais, mas a do meu povo e a dos meus filhos é muito maior.