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A paz no mundo passa pela transição ecológica. Artigo de Gaël Giraud

A paz no mundo passa pela transição ecológica. Artigo de Gaël Giraud

“Esperamos que as tensões induzidas pela guerra na Ucrânia permitam que todos entendam que, se nos recusarmos obstinadamente a descarbonizar nossos estilos de vida, o aquecimento global tornará inabitáveis áreas inteiras do nosso planeta durante a segunda metade deste século. Já não serão alguns milhões de refugiados que procurarão refúgio em regiões habitáveis e pacíficas – como os ucranianos hoje –, mas várias centenas de milhões de mulheres e homens. Da mesma forma, se nossa indústria não mudar rapidamente para um modelo circular e de baixa tecnologia, que consome pouca energia e minerais, para reduzir sua própria dependência das matérias-primas, surgirão outras guerras por metais raros e energia e provocarão mais cortes no fornecimento”.

Eis o artigo.

Nós já sabíamos disso, mas a invasão da Ucrânia pela Rússia veio para nos recordar da seguinte verdade: a enorme dependência das energias fósseis baratas torna as economias ocidentais gigantes com pés de barro. É essa vulnerabilidade que explica as primeiras procrastinações da Alemanha e da Itália, entre outros, antes que esses dois países finalmente resolvessem infligir à Rússia as sanções exigidas pela América. Foi necessária a comoção pública provocada pela descoberta de crimes de guerra em Bucha para que os governos europeus decidissem banir o carvão russo e depois, talvez em breve, o petróleo russo.

A Itália se destaca entre seus parceiros europeus por suas massivas importações de petróleo e gás natural, que são responsáveis por 42% de sua energia. O atual aumento dos preços do gás e do petróleo significa uma conta de energia que, apenas para a indústria italiana, deve atingir 37 bilhões de euros em 2022 contra 8 bilhões em 2021.

Além disso, hoje na Itália, o petróleo vem principalmente dos países do antigo bloco soviético, incluindo Azerbaijão (20%), Rússia (13%) e Cazaquistão (10%). Se, como muitos outros países, a península vier a perder o acesso à produção de Baku ou de Nur-Sultan, torna-se urgente que todos invistam em infraestrutura para fornecer a energia verde de que suas populações necessitam. De fato, no Oriente Médio, a situação também não é mais tão estável. Certamente, a possibilidade de um levantamento das sanções ao Irã em troca de um aumento das exportações iranianas deve impedir que o preço do barril de petróleo suba ainda mais. Mas essa clemência calculada da comunidade ocidental em relação a Teerã também gera tensão na Arábia Saudita (14,5% das importações italianas) e nos Emirados. A soberania energética e a transição para fontes de energia renováveis são, portanto, os únicos meios eficazes, a longo prazo, para reduzir a vulnerabilidade das nações industrializadas.

O aumento sem precedentes desde 2008 dos preços do petróleo e do gás, e, na sequência, de todas as matérias-primas, explica em grande parte a inflação que a maioria dos setores econômicos das economias ocidentais está experimentando agora. Alguns cidadãos europeus experimentam, em decorrência, que até as suas despesas alimentares dependem do mercado global de hidrocarbonetos – através do preço dos fertilizantes nitrogenados, por exemplo. Essa retomada da inflação, sem precedentes há mais de vinte anos, pode estar destinada a durar. Não necessariamente na forma de um aumento contínuo dos preços, mas de picos acentuados, depois quedas dos preços seguidos de uma nova febre inflacionária, etc.

As razões para esta maior volatilidade nos preços globais das commodities são três. Primeira razão: não parece provável que o conflito ucraniano encontre uma solução rápida. Mesmo se o atolamento do exército russo nas grandes planícies férteis da Ucrânia um dia trouxesse a queda de Vladimir Putin, isso não significaria de forma alguma que seu sucessor estaria mais disposto a retomar o comércio pacífico com o Ocidente e a África. Se a “rota da seda” que liga Moscou a Istambul passa pela Ucrânia, é porque a própria Ucrânia é um eldorado em um número muito grande de recursos: além de maior reserva mundial de urânio e uma das maiores reservas de titânio, manganês, ferro, mercúrio, gás de xisto, carvão e terra preta (tchornozem), Kiev também é um dos principais exportadores mundiais de girassol, cevada, milho, batata, centeio e trigo. Alguns estimam que a Ucrânia sozinha seria capaz de alimentar cerca de 600 milhões de pessoas. Na medida em que a própria Rússia é um dos principais exportadores agrícolas do mundo e as sanções que lhe são aplicadas prometem reduzir todo o comércio russo fora da Ásia, um país como o Egito está se preparando sem dúvida para uma escassez de trigo semelhante àquela provocada pelas primaveras árabes.

No futuro imediato, o rápido aumento dos volumes do ouro negro produzidos pelos EmiradosArábia e Irã não será suficiente para suprir as necessidades da Europa, especialmente em termos de gás. Nem é provável que os Estados Unidos sejam capazes de fornecer o equivalente em gás de xisto ao que Moscou estava fornecendo, apesar das promessas feitas por Washington a Berlim. Além disso, seria um desastre ecológico adicional, dada a natureza extremamente poluente da extração de gás de xisto. Um barril de petróleo a 200 dólares não deve mais ser descartado nos próximos anos. Por outro lado, a Agência Internacional de Energia estima que, em um país como a França, a diminuição da temperatura em um grau nas residências economizaria 10% das importações de energias russas.

Segunda razão: independentemente do conflito ucraniano, o petróleo pode atingir seu pico na extração não convencional já no final desta década: o pico convencional já foi atingido em 2005 e os sinais se acumulam de uma desaceleração na produtividade das técnicas não convencionais (fraturamento hidráulico de rocha, etc.). No entanto, o mundo continua a depender fortemente do petróleo, especialmente para a mobilidade. Caso isso se confirmar, a escassez gradual do ouro negro promete causar tensões ainda mais severas do que as que conhecemos hoje, tanto em termos de oferta quanto de preço.

Terceira razão: no tocante aos minerais, meus trabalhos sugerem que o cobre pode atingir seu pico de extração global antes de 2060. No momento, os produtores de produtos eletrônicos da Europa Ocidental estão passando por uma interrupção no fornecimento de cobre. Deve ser apenas temporária, felizmente, mas pressagia uma escassez muito mais séria nas próximas décadas.

Portanto, é urgente reduzir a dependência de nossas economias dessas matérias-primas, ao mesmo tempo

 

  • 1) aprendendo a sobriedade (“menos é mais”, como o Papa Francisco gosta de dizer),
  • 2) inventando substitutos para os combustíveis fósseis e os minerais críticos como o cobre ou o fosfato, e
  • 3) reciclando tudo sem o que não podemos viver.

 

No entanto, a transição ecológica esbarra na defesa de interesses que a crise ucraniana corre o risco de enfraquecer. A ENI obteve assim um lucro líquido de cerca de 6,3 bilhões em 2021, o suficiente para assinar um cheque de gás de mais de 200 euros para cada dono de carro italiano. Mas o que também alimenta a recusa dos acionistas desta empresa italiana de energia em mudar seu business model. Até agora, porém, a ENI é sem dúvida uma das poucas petrolíferas europeias a levar realmente a sério a necessária transição dos seus recursos para as energias renováveis. A situação é muito mais delicada para outros gigantes petrolíferos europeus e para todo o sistema financeiro.

Os ativos fósseis dos 11 maiores bancos da zona do euro representam um estoque acumulado de mais de 530 bilhões de euros diretamente vinculados aos combustíveis fósseis, conforme revelou o Instituto Rousseau da França. Isso representa, em média, 95% de seu patrimônio total, e trata-se apenas dos ativos que dependem diretamente dos setores de energia fóssil. A consequência de tal legado nos balanços de nossos bancos é que, se amanhã esses ativos fósseis não valessem mais nada, a maioria desses bancos estaria falida. Seria o caso, por exemplo, se decidíssemos levar a sério a transição energética, de não apenas substituir o petróleo ou o gás russo por hidrocarbonetos iranianos ou argelinos, mas de simplesmente banir o carvão, o petróleo e o gás das nossas economias. A situação é muito provavelmente a mesma para muitos fundos de gestão de ativos com idade suficiente para financiar nosso vício em combustíveis fósseis por várias décadas. Esse estoque de ativos financeiros marrons paralisa as finanças porque qualquer avanço em direção à sobriedade e à neutralidade de carbono significa, para esses atores financeiros, mais um passo para a falência.

Pior ainda: de acordo com o relatório Banking On Climate Chaos de 2021, os 60 maiores bancos globais concederam 3,8 trilhões de dólares (quase o dobro do PIB italiano) em financiamentos a empresas do setor de combustíveis fósseis entre 2016 e 2020. Esses bancos pioram sua própria dependência em relação aos combustíveis fósseis e fazem a aposta implícita de que as nossas sociedades não conseguirão superar o seu vício. As interrupções no fornecimento que a guerra na Ucrânia poderia causar prometem não apenas levar a Rússia ao default e o povo russo a uma miséria terrível, mas também infligir perdas substanciais às finanças ocidentais. Podemos nos dar ao luxo de viver um novo colapso financeiro?

Esperamos que as tensões induzidas pela guerra na Ucrânia permitam que uns e outros entendam que, se nos recusarmos obstinadamente a descarbonizar nossos estilos de vida, o aquecimento global tornará inabitáveis áreas inteiras do nosso planeta durante a segunda metade deste século. Já não seriam alguns milhões de refugiados que procurarão refúgio em regiões habitáveis e pacíficas – como os ucranianos hoje –, mas várias centenas de milhões de mulheres e homens. Da mesma forma, se nossa indústria não mudar rapidamente para um modelo circular e de baixa tecnologia, que consome pouca energia e minerais, para reduzir sua própria dependência das matérias-primas, surgirão outras guerras por metais raros e energia e provocarão mais cortes no fornecimento. Já não serão dois povos reféns de lógicas bélicas que fogem ao seu controle – como os russos e os ucranianos hoje –, mas talvez a maioria da humanidade.

Seremos capazes de tirar as verdadeiras lições da invasão da Ucrânia?