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Uso da propriedade deve considerar sua função social e ambiental, diz Leme Machado

Uso da propriedade deve considerar sua função social e ambiental, diz Leme Machado

Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, além de instituir o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Essa é a mais relevante norma ambiental depois da Constituição Federal de 1988, pela qual foi recepcionada, visto que traçou toda a sistemática das políticas públicas brasileiras para o meio ambiente. Por Política Nacional do Meio Ambiente se compreendem as diretrizes gerais e os mecanismos estabelecidos por lei que têm o objetivo de harmonizar e de integrar as políticas públicas de meio ambiente dos três níveis federativos.

Paulo Affonso Leme Machado, principal redator do projeto que resultou na Lei que criou a Política Nacional do Meio Ambiente
Reprodução/Unimep

São inúmeras as razões pelas quais essa lei é importante, sendo difícil fazer tal apontamento. Ela é o marco de afirmação do Direito Ambiental no plano nacional, porque pela primeira vez a questão ambiental passou a ser tratada de forma holística e a defesa do meio ambiente virou uma finalidade em si mesma.

Os conceitos básicos da área, como os de degradação, poluição, poluidor e meio ambiente, consistindo este na delimitação do objeto do próprio Direito Ambiental. A própria formatação da norma influenciou a redação de praticamente todas as normas ambientais relevantes. O objetivo geral de preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental propícia à vida foi estabelecido aí, bem como os objetivos específicos, os princípios e as diretrizes, e a relação entre meio ambiente e desenvolvimento socioeconômico, segurança nacional e dignidade da vida humana.

A ideia de tríplice responsabilização ambiental, que depois foi abarcada pela Lei Fundamental, surgiu dessa lei, que em sua redação original tratava da responsabilidade administrativa, civil e criminal. A adoção da responsabilidade civil objetiva, inclusive com a possibilidade de responsabilização do poluidor indireto e de instituição pública responsável pelo financiamento.

Foi essa lei que incumbiu o Ministério Público da proteção do meio ambiente na esfera cível e criminal, bem antes da Lei de Ação Civil Pública e da Lei de Crimes Ambientais, sendo ela um marco também no âmbito do processo coletivo. A instituição dos instrumentos de política ambiental, como avaliações de impacto, licenciamento e padrões de qualidade, também demonstram a preocupação com a efetividade desse direito, algo tão presente na Lei Fundamental.

A criação de um sistema nacional administrativo de meio ambiente capaz de articular a atuação dos três níveis federativos, inclusive com um conselho público de direito com caráter deliberativo e ampla participação social, o que era algo absolutamente incomum à época, ainda um regime ditatorial militar. Com efeito, mais do que recepcionada, é possível afirmar que a Lei 6.938/1981 foi a grande fonte de inspiração do Texto Constitucional em vigor, que em grande parte apenas constitucionalizou aquilo que já estava na Política Nacional do Meio Ambiente e em uma ou outra norma ambiental esparsa.

Diante disso, a coluna “Ambiente Júridico”, publicada nesta ConJur, convidou o professor Paulo Affonso Leme Machadoconsiderado o maior nome do Direito Ambiental brasileiro, para falar sobre os 40 anos da Política Nacional do Meio Ambiente. Vale a pena salientar que o professor foi o principal redator do projeto que resultou na lei em questão, bem como dos dispositivos da Constituição Federal de 88 que tratam da questão ambiental, dentre inúmeras outras contribuições dadas à temática.

Leia abaixo a entrevista:

Em 1972, ocorreu a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre Meio Ambiente em Estocolmo, na Suécia. Essa reunião teve influência na formulação do projeto de lei que se tornou a Lei 6.938?
Leme Machado 
 Os países presentes na Suécia adotaram a Declaração de Estocolmo/72. A primeira parte contém uma Proclamação, com sete períodos, e a segunda parte encerra vinte e seis princípios. Havia um sentimento de desconfiança entre os países subdesenvolvidos frente aos países desenvolvidos, receosos de que se lhes impusessem excessivas restrições em nome do meio ambiente. Note-se que houve a inserção na Declaração desse tema: os Estados deverão adotar uma concepção integrada e coordenada de planejamento do desenvolvimento, de modo que seu desenvolvimento seja compatível com a necessidade de proteger e de melhorar o meio ambiente, no interesse da população (princípio 13). A Conferência Internacional de Meio Ambiente de 1972 deu ensejo à instituição, no Brasil, da Sema (Secretaria Especial do Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do Interior).

O senhor participou ativamente da redação da minuta desse diploma legal. Como ocorreu essa preparação do projeto de lei?
Leme Machado — Em 1979, a Faculdade Internacional de Direito Comparado de Strasbourg (França) e a Universidade Metodista de Piracicaba realizaram o 1º Curso Internacional de Direito Ambiental em Piracicaba. Tive a oportunidade de ser um dos coordenadores do curso, juntamente com os professores Alexandre Kiss e Michel Prieur. Tivemos notáveis professores da Alemanha, Argentina, Estados Unidos da América, França, Marrocos e Nigéria no referido curso, de duas semanas. No evento apresentaram-se os fundamentos do novo ramo do direito — o Direito Ambiental. Assistiram às conferências pessoas vindas de todas as partes do país. Esse curso inegavelmente apresentou novas fronteiras para a elaboração final do projeto de lei que se transformou na Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981.

Como Secretário de Meio Ambiente da Sema foi nomeado dr. Paulo Nogueira Neto, que permaneceu no cargo por treze anos. Era graduado em Direito e em Biologia pela USP, lecionava no Instituto de Biociências da USP, em São Paulo.  Era proprietário de uma usina de açúcar no interior do Estado. Tinha cultura e vontade de dialogar, qualidades que utilizou para dirigir a preparação do projeto e a tramitação da Lei 6.938.

Os temas ambientais eram novidade para muitos políticos e muitas pessoas da administração pública, tanto que não se entendeu oportuno tratar da parte penal no projeto de lei. De outro lado, a legitimação processual das associações ambientais, incluída no artigo 19, apesar de ter sido aprovada no Congresso Nacional, foi objeto de veto presidencial. Esse artigo era do seguinte teor: “Art. 19: Toda pessoa física ou jurídica, domiciliada no país, tem direito público subjetivo à tutela ambiental, podendo postular judicialmente a adoção de medidas preventivas e atenuadoras da degradação ambiental, até a cessação da atividade agressora do meio ambiente”. Insisti no tema, conseguindo-se sua inclusão na Lei 7.347/1985.

Qual a importância da Lei 6.938 /1981 como marco legal do Direito Ambiental no Brasil?
Leme Machado — O Brasil passou a contar com um diploma legislativo abrangente, reunindo as diversas áreas que integram o meio ambiente. Além da maior amplitude normativa, a Lei 6.938 traz grandes inovações nos institutos jurídicos da prevenção, da reparação e da gestão do meio ambiente.

A Lei de política nacional do meio ambiente foi inovadora quando, já em 1981, afirmou o seu objetivo de preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental, visando assegurar a proteção da dignidade da vida humana. A Lei quis que a educação ambiental fosse ministrada em todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, visando capacitá-la para a participação ativa na defesa do meio ambiente.

No que a Lei 6.938/81 antecipou-se às normas ambientais da Constituição Federal de 1988?
Leme Machado — A Lei de 1981 foi bem marcante ao introduzir a noção legal de equilíbrio ecológico propício à vida. Vemos esse conceito no artigo 4º, em que consta o dever da política nacional do meio ambiente compatibilizar desenvolvimento econômico-social com a preservação do meio ambiente e do equilíbrio ecológico (inciso I); na difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, da divulgação de dados e informações ambientais e a formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico (inciso V). Portanto, a Lei 6.938 teve a primazia de afirmar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A Lei 6.938/81 tratou da responsabilidade do cometimento da poluição?
Leme Machado — A responsabilidade jurídica por causar dano ambiental foi enfrentada ao estruturarem-se os objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente. No artigo 4º da Lei 6.938 consta que a Política Nacional do Meio Ambiente visará: inciso VII — “à imposição ao poluidor e ao predador da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais para fins econômicos”.

O princípio poluidor-pagador não é uma multa e é aplicável tanto para uma atividade licenciada como não licenciada. Interessa saber se há ou não prejuízo ambiental, não se cogitando da licitude ou ilicitude da atividade ou da obra.

De outro lado, visando possibilitar uma maior rapidez da apuração da responsabilidade civil do poluidor ou do predador, a lei 6.938 instaurou a responsabilidade civil ambiental independente de culpa (artigo 14, parágrafo 1º). Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que haja o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem incidência na indenização ou na reparação dos “danos causados ao meio ambiente e aos terceiros afetados por sua atividade” (art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981).

Foi inserida, também, no art. 14, § 1º da Lei 6.938 a legitimação do Ministério Público para promover a responsabilização civil do poluidor e do predador do meio ambiente.

No regime jurídico da responsabilidade civil ambiental objetiva não interessa que tipo de obra ou atividade seja exercida pelo que degrada, pois não há necessidade de que ela apresente risco ou seja perigosa. Procura-se quem foi atingido e, se for o meio ambiente e o homem, inicia-se o processo lógico-jurídico da imputação civil objetiva ambiental. Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano. É contra o Direito enriquecer-se ou ter lucro à custa da degradação do meio ambiente (MACHADO/2020, Direito Ambiental Brasileiro, 27ª ed).

Roger Findley, que foi professor de direito na Universidade de Illinois “at Urbana-Champaign”, disse que os Estados Unidos da América foram introduzindo a responsabilidade objetiva ambiental em cada lei específica — rejeitos etc. — e que o Brasil teve a capacidade de introduzir essa responsabilidade, de forma geral, numa só lei.

É de ser enfatizado que o Código Civil de 2002 afirma que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou […] (art. 927, Parágrafo único).  Vê-se que a lei 6.938, de 1981, anterior ao Código Civil, de 2002, continua plenamente em vigor, de forma autônoma, com relação aos “danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.

Como o senhor visualiza a participação social  na Lei 6.938?
Leme Machado — O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) foi uma criação da Lei 6.938. Olhando-se para o art. 8º da Lei vê-se que esse colegiado tem uma função de assessoramento do Poder Executivo Federal na formulação de normas ambientais. Fiz parte do primeiro grupo de conselheiros do Conama, de 1984 a 1986.

Somente após dois anos da promulgação da Lei é que se conseguiu instalar esse Conselho. Durante o meu mandato, como representante da Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente, saliento ter participado de três ações do Conama: uma discussão forte sobre o projeto de lei sobre agrotóxicos, sendo que o governo foi criticado por enviar esse projeto, sem a prévia consulta do Conselho; a deliberação aprovando um  pedido meu para se avaliar a utilização do “agente laranja” em áreas a serem utilizadas pela hidrelétrica de Tucuruí; e a elaboração da Resolução 01/86, que regulamentou o estudo de impacto ambiental. Conseguiu-se incluir no artigo  7º dessa Resolução a obrigação de independência dos especialistas que integrassem a equipe multidisciplinar. Estranhamente, onze anos depois, a Resolução 237 do Conama eliminou essa exigência.

É de ser pensada a forma como a sociedade civil integra o Conama. Com a Emenda Constitucional 71/2012, introduziu-se o art. 216-A, que introduziu o princípio da “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”. Esse princípio, a meu ver, não vale somente para o Sistema Nacional de Cultura, mas deve estar presente em toda a administração pública brasileira. O Comitê da Bacia Hidrográfica, na Lei 9.433/1997, artigo 39, § 1º, limita à metade a presença dos representantes do setor público no referido Comitê. Portanto, para mim, o Conama deve ser modificado, passando a ter uma participação paritária da sociedade civil em relação ao governo, pois, caso contrário, atuará somente como uma minoria simplesmente expectadora.

O direito à informação ambiental foi assegurado na Lei 6.938/81?
Leme Machado — O projeto de lei que resultou na Lei 6.938 teve modificações no Congresso Nacional. Por exemplo, no art. 6º, § 3º, o direito de solicitar informações sobre os exames efetuados pelos órgãos ambientais teve a inserção da exigência da comprovação de interesse do peticionário. Felizmente lei posterior liberou essa pedra no caminho da livre informação.

Importante a presença do dever de informar no licenciamento ambiental, em todas as fases desse procedimento. A Lei 6.938 foi ampliada na área da informação pela Lei 7.804, de 1989, com a garantia da prestação e informações relativas ao meio ambiente, obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes.

Qual o legado da Lei 6.938/1981?
Leme Machado — A Lei de Política Nacional do Meio ambiente conseguiu formar o conceito de meio ambiente, levando a uma posterior unificação de todas as suas áreas. Assim, o setor florestal e da fauna, que estava no IBDF, juntou-se ao setor da Sema, para formarem o Ibama. É verdade que, posteriormente, foi feita uma cisão na administração ambiental.

Quarenta anos decorridos, estão bem fincados os princípios do poluidor-pagador e da responsabilidade ambiental civil sem culpa. Essa Lei não foi extremada em seus posicionamentos, apontando no seu primeiro objetivo (art. 4º, I): a compatibilização do desenvolvimento econômico social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

A Lei protege a vida, em todas as suas formas, isto é, ao proteger-se o meio ambiente, cuida-se da vida (art. 3º, I).  Cabe aqui o preceito jurídico latino sicut utere tuo ut aliennum non laedas — use o que é seu, mas a ninguém prejudique. Com sobriedade e desapego, sem ganância e nem vaidade, a propriedade pessoal ou empresarial deve ser usada através de sua função social e ambiental. Então, as leis ambientais terão eficácia para construir um Planeta Terra justo, livre, harmonioso, sadio e feliz.

Currículo do Prof. Paulo Affonso Leme Machado
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pela Vermont Law School (Estados Unidos), pela Universidade de Buenos Aires (Argentina) e pela Universidade Federal da Paraíba.

Promotor de Justiça/SP (aposentado), doutor em Direito pela PUC-SP, mestre em Direito Ambiental pela Universidade Robert Schuman/Strasbourg (França).

Prêmio de Direito Ambiental Elizabeth Haub (Alemanha/Bélgica — 1985). Professor Convidado na Universidade de Limoges (1986-2004). Professor na Universidade Estadual Paulista (1980-2004). Professor na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep — 2001-2020).

Conselheiro do Conselho Nacional do Meio Ambiente(Conama — 1984-1986). Conselheiro do Conselho do Patrimônio Cultural (2004-2008). Chevalier de La Légion d´Honneur (França).

Livros: Direito à Informação e Meio Ambiente, 2ª ed., 2018 ; Direito dos Cursos de Água Internacionais, 1ª ed., 2009; Direito Ambiental Brasileiro, 27ª ed., 2020; Direito do Saneamento Básico, 1ª ed., 2021.

Autor de 38 livros e de 99 capítulos de livros (62 no Brasil e 37 no exterior).
Publicou 204 artigos: 97 artigos em revistas especializadas no Brasil, 34 artigos em revistas especializadas no exterior, 19 artigos em anais, 43 artigos ou notas em jornais de notícias no Brasil, 11 artigos em revistas (magazines). Autor de 57 prefácios. Concedeu 66 entrevistas.

Orientou 53 dissertações de mestrado em Direito e 37 monografias de graduação. Participou de 171 bancas de pós-graduação.