Anchor Deezer Spotify

Substância de rã da Amazônia, conhecida por poder antibiótico, tem patentes registradas

Substância de rã da Amazônia, conhecida por poder antibiótico, tem patentes registradas

Conhecida como rã-kambo, rã-cambô ou sapo-verde, a espécie Phyllomedusa bicolor é encontrada no topo das árvores das florestas amazônicas, sobretudo, no Brasil, Colômbia e Peru e em partes da Venezuela, Bolívia e Guianas. Seu nome vem do veneno que possui, o kambo, muito utilizado em rituais espirituais e de cura pelos povos indígenas.

Como escrevi nesta outra reportagem, em 2018, o veneno deste anfíbio tem sido estudado por cientistas para seu uso como antibiótico. Análises revelaram que essas rãs possuem mais de 300 peptídeos antimicrobianos, componentes do sistema imune, presentes na maioria dos seres vivos, que podem apresentar uma atividade antimicrobiana potente contra um amplo espectro de micro-organismos.

Apesar do grande potencial para o desenvolvimento de medicamentos a partir de uma substância encontrada em território brasileiro, o veneno da rã amazônica já possui patentes registradas em vários outros países, entre eles, França, Estados Unidos, Canadá, Japão e Rússia.

Marcos Vinício Chein Feres, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professor visitante do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisador de Produtividade do CNPq, acaba de publicar um artigo em que encontrou onze patentes da espécie Phyllomedusa bicolor registradas, na sua maioria, em países do Norte global.

Em artigo publicado na Revista Direito GV, o pesquisador detalha como a apropriação de recursos genéticos da Phyllomedusa bicolor é exemplo de como brechas na regulamentação internacional de sistemas de patentes e imprecisões de termos normativos podem contribuir para que países mais ricos explorem recursos e saberes tradicionais de povos indígenas sobre a flora e fauna brasileiras.

Conversamos com Feres e abaixo você confere nossa entrevista:

Como surgiu seu interesse pelo tema? Por que você decidiu pesquisar a patente desta rã em específico?
Esta pesquisa surge a partir de um estudo mais teórico e crítico do sistema de propriedade intelectual e de uma necessidade de compreender a relação entre propriedade intelectual e direitos humanos. Com isso, passei a verificar algumas situações específicas que envolvem o sistema jurídico de propriedade intelectual. Nesse sentido, o grupo de pesquisa CEPIR (Centro de Estudos em Propriedade Intelectual e Relações Humanas) da UFJF, com o apoio do CNPq e da FAPEMIG, tem se dedicado ao longo de alguns anos aos estudos referentes à ausência de depósitos de patentes para doenças negligenciadas (por exemplo, Chagas, Leishmaniose, Esquistossomose etc.), ao uso dos direitos autorais como forma de limitação ao acesso ao conhecimento e à possível apropriação de recursos genéticos naturais e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade amazônica, por meio do sistema de patentes.

O caso da Phyllomedusa bicolor surge de uma busca no site da amazonlink em que encontramos alguns exemplos de possível apropriação de recursos naturais da biodiversidade amazônica. A partir dessa notícia veiculada no site, procuramos realizar uma revisão de literatura e foi, a partir do texto de Peter Gorman, que constatamos a possibilidade de um acesso a esse tipo de conhecimento tradicional típico das comunidades indígenas da Amazônia Ocidental.

De posse dessa comprovação na literatura, iniciamos o processo de verificação de existência de depósitos de patentes com as propriedades químicas específicas da secreção da rã Kampô. No entanto, percebemos que, para se configurar a indicação de apropriação do conhecimento tradicional associado, era necessário não só as propriedades químicas da secreção da rã, mas também os usos tradicionais praticados pelas tribos indígenas. Dessa forma, tivemos de cruzar os dados do banco de patentes com alguns relatos etnográficos relacionados aos usos tradicionais.

Registros de patentes de substâncias podem ser feitos por várias empresas? Não é igual ao registro de uma marca, por exemplo, que seria apenas por uma empresa?
Todo o registro de patente deve ter os requisitos legais, a saber, novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Para que a invenção possa ser patenteável, ela deve apresentar algo distinto e novo em relação ao que já existe no estado da técnica no conhecimento científico. Não é possível mais de um inventor ou inventora patentear a mesma invenção. Somente uma empresa pode patentear a invenção. Todavia, é importante entender que o caso da secreção da rã envolve uma substância química a qual pode ser utilizada para vários propósitos e em vários tipos de inventos (produtos). No caso específico da pesquisa, trabalhamos com a relação dessa substância com conhecimentos tradicionais indígenas, o que demonstra o descaso da ciência convencional pelas práticas milenares dos povos originários.

Que empresas de outros países fizeram esses pedidos de patentes da substância da rã em outros países? Você tem acesso? São empresas farmacêuticas?
O artigo que publicamos na Revista Direito GV traz o resultado de uma coleta de depósitos de patentes no patentscope da OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) – o banco de dados oficiais da OMPI. Nem todos os depósitos envolvendo a chave de pesquisa Phyllomedusa bicolor foram identificados como relacionados aos usos tradicionais. Procuramos verificar aqueles que apresentavam alguma similaridade com as descrições existentes na literatura etnográfica sobre o uso tradicional da secreção da rã Kampô (como ela é tradicionalmente conhecida). A esmagadora maioria dos depositantes e inventores estão radicados em países do Norte Global, assim como a concessão dessas patentes já ocorreu em países desenvolvidos.

O patentscope dá acesso, sim, aos depositantes e aos inventores dos pedidos de patentes. As onze patentes que foram selecionadas nessa pesquisa, em função do escopo pretendido, foram depositadas por agentes, ao que tudo indica, radicados em países como Estados Unidos, Alemanha e França, para citar alguns exemplos. Como você pode verificar no artigo publicado, há universidades entre os depositantes. Essa é uma análise muito interessante, pois normalmente estes conhecimentos tradicionais chegam aos países desenvolvidos por meio de trocas acadêmicas. Isso ainda não foi explorado nessa primeira fase da pesquisa, mas pretende-se verificar qual a relação entre esse primeiro momento de trocas acadêmicas com as indústrias farmacêuticas e cosméticas, as maiores interessadas nos produtos naturais e nos conhecimentos tradicionais associados.

E o Brasil também possui alguma patente sobre a substância?
Pela busca realizada na época da pesquisa, não havia patente concedida pelo Brasil nem depositantes brasileiros. No entanto, como foi um trabalho de busca no patentscope, não se pode descartar que haja pedidos de patentes somente realizados no território nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Que tipos de brechas na legislação internacional existem para que os países mais ricos tenham vantagens sobre a biodiversidade das nações mais pobres?
O objetivo dessa pesquisa de longa duração consiste justamente em verificar as falhas do sistema jurídico de patentes, tendo em conta essa relação desigual entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Além disso, o artigo já traz um indicativo relevante no sentido de que o TRIPS (Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – sigla em inglês) tem um caráter dominante no cenário internacional se comparado com a CBD (Convenção da Diversidade Biológica – sigla em inglês).

Há uma maior valorização dos dispositivos do Trips que foram constitutivos dessa lógica do comércio internacional de excessiva proteção às patentes e outros tipos de propriedade intelectual. É como se os direitos privados de propriedade prevalecessem sobre os interesses sociais e coletivos, o que se contrapõe ao próprio artigo 7 do TRIPS. Em suma, há mais pressão internacional para legislações internas nacionais que salvaguardem os direitos de propriedade intelectual do que aquelas protetivas do uso sustentável dos recursos genéticos naturais e do conhecimento tradicional de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc.

Nações mais ricas podem alegar que não há pesquisa nesses países e que uma riqueza natural e importante não está sendo explorada. Como responder a este argumento?
O melhor argumento para se responder a essa afirmação é o de que os países desenvolvidos se construíram a partir de uma lógica de apropriação de recursos genéticos naturais e outras riquezas dos países hoje em desenvolvimento. No início da industrialização, como a literatura especializada explica, esses países desenvolvidos passaram ao largo da legislação protetiva dos direitos de propriedade intelectual com base na necessidade de se disseminarem o conhecimento e a técnica industrial. Hoje esses mesmos países impõem a legislação de propriedade intelectual aos países em desenvolvimento com um rigor que supera em muito o que eles tiveram de suportar no início dos seus próprios processos de industrialização.

Na pesquisa, um dos resultados preliminares demonstram que ainda vivemos sob a lógica do colonialismo, nos termos expostos por Aníbal Quijano. Trata-se de uma colonialidade do saber e do poder ao tentarem, por meio de direitos de propriedade intelectual, se apropriar de recursos naturais e de conhecimentos tradicionais de países do Sul Global. Por isso, acho importante em vez de apresentar respostas taxativas sobre essa questão, levantar boas perguntas.

As perguntas que cabem ser propostas são as seguintes: Estes países desenvolvidos estão dispostos a compartilhar sua tecnologia para que os países em desenvolvimento possam explorar, de forma sustentável, esses recursos? Será que a patente é o instrumento jurídico adequado para gerar desenvolvimento nesse caso? Até que ponto é possível validar esse monopólio, essa exclusividade de exploração de uma invenção atrelada ao uso tradicional, quando se sabe que o ponto central do conhecimento tradicional está na livre troca, no compartilhamento daquele saber?

Como seria possível fechar tais “brechas” e tornar a legislação mais rigorosa nessa área de biopatentes?
Esta é a pergunta de um milhão de dólares (risos). Não sei se o caso é o de tornar a legislação mais rigorosa. A legislação de patentes tem, até certo ponto, objetivos relevantes. No entanto, é preciso se pensar sobre os excessos e sobre as faltas. Os excessos consistem num superdimensionamento dos direitos de patentes com o objetivo de dominar mercados e de ter exclusividade de produtos para se diferenciar de outros competidores e, com isso, ter lucros, em alguns casos, extorsivos em detrimento do bem-estar social (como na área farmacêutica, por exemplo).

As faltas consistem no modo como a biodiversidade e o uso sustentável dos recursos genéticos naturais parecem não compor as pautas internacionais e nacionais de forma a valorizar o meio ambiente e os conhecimentos dos povos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares etc.).
A pesquisa que desenvolvemos têm por meta apontar essas falhas no sistema jurídico e, com isso, ser útil para agentes políticos e diplomáticos a fim de que estes possam se valer desses dados ao negociarem tratados e acordos internacionais os quais sejam mais justos e igualitários.

Que tipos de prejuízos o Brasil tem em casos como este?
Não teria como dizer isso de forma técnica, pois isso extrapola o objetivo e o objeto da pesquisa. No entanto, vale considerar que, quando um agente econômico monopoliza um produto derivado de um conhecimento tradicional associado ao recurso genético natural da biodiversidade brasileira, perdemos o domínio sobre aquele produto na forma como ele foi patenteado e acabamos, depois, nos tornando consumidores de algo existente em nossa biodiversidade e parte do conhecimento dos nossos povos originários. Enfim, qualquer semelhança com o processo colonial do qual ainda não nos livramos não parece ser mera coincidência. Mudam-se os atores internacionais, mas permanecem as práticas coloniais perversas.

*Pauta desenvolvida a partir de release divulgado pela Agência Bori

Suzana Camargo
Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.