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Projetos levam água potável para indígenas

Projetos levam água potável para indígenas

Iniciativas contemplam soluções simples como filtros e cisternas, que podem proporcionar mais qualidade de vida e longevidade para os povos tradicionais

Muitos territórios indígenas no Brasil, principalmente na Amazônia, ficam em regiões ricas em recursos hídricos. Mas isso não garante acesso à água potável aos seus habitantes. E sem o saneamento básico adequado, a água, contaminada, aumenta o risco de doenças como a diarreia aguda, a segunda maior causa de mortalidade infantil no mundo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Entre os indígenas brasileiros, o índice de 31,28 mortes por mil nascidos vivos é mais que o dobro da média nacional, de 13,8, segundo dados do Ministério da Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias são a principal causa de morte entre crianças indígenas de 1 a 4 anos, afirma um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Unicef aponta que apenas o acesso ao saneamento básico e à higiene adequada podem mudar essa realidade.

Mesmo com a maior bacia hidrográfica do mundo, o Amazonas não oferece, a milhares de indígenas, o acesso a esses direitos básicos. Em São Gabriel da Cachoeira (AM), o município brasileiro mais indígena do Brasil, 93% da população não têm acesso à água tratada, segundo o IBGE. A cidade apresenta um dos piores índices de mortalidade infantil do país: 34,6 óbitos por mil nascidos vivos.

A cada 10 são gabrielenses, 9 são indígenas ou descendentes de 23 diferentes etnias. O extenso território, de 109.185Km2, que abriga a porção mais preservada da Amazônia, é ameaçado pelo garimpo, o desmatamento e a falta de saneamento. “As comunidades indígenas não têm acesso à água potável, gestão de resíduos sólidos nem tratamento e coleta de esgoto. A água do Rio Negro é muito ácida e escura. Estudos mostraram que até as nascentes estão contaminadas”, diz Bruno Barbosa, diretor de operações da CAUSE.

Indígena bebe água potável depois da instalação de filtros na aldeia — Foto: Paulo Desana

Indígena bebe água potável depois da instalação de filtros na aldeia — Foto: Paulo Desana

Água Segura

A consultoria, que conecta marcas e organizações às causas, orientou a empresa Sanofi Brasil a instalar no município uma iniciativa de combate à diarreia e mortalidade infantil. O projeto “Água Segura” levou filtros de alta capacidade para mais de 500 famílias indígenas da região em 2021. Cerca de 5 mil indígenas, número correspondente a 10% da população de São Gabriel, foram beneficiados com a tecnologia de tratamento de água e informações sobre saúde comunitária.

Os filtros foram instalados em três pontos da zona urbana, como casas de apoio e assistência social de indígenas, e em 19 territórios destes povos. Funciona assim: os indígenas abastecem o galão com água que retiram do rio, dos poços ou que armazenam da chuva e a tecnologia filtra vírus, bactérias, parasitas e microplásticos, mas não metais pesados utilizados no garimpo, como o mercúrio. Basta baixar uma alavanca para que a retrolavagem seja feita. A membrana responsável pela ultra filtragem processa entre 70 mil e 100 mil litros de água em seu tempo de vida, o suficiente para o consumo de 75 pessoas durante 3 a 5 anos. “A principal limitação é a questão da sustentabilidade a médio e longo prazo. A empresa não consegue garantir a reposição desses filtros daqui a cinco anos”, diz Bruno. “Aí entra o papel do poder público, fundamental para a sustentabilidade de projetos como esse. Como ele vai se envolver para garantir o acesso à água para essas pessoas?”.

Ponte local

A iniciativa contou com a participação da empresa argentina Proyecto Água Segura, do Instituto Socioambiental (ISA) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Foram as duas instituições locais que mediaram o diálogo com as comunidades indígenas, indicando onde a tecnologia era mais necessitada, avaliando sua real eficácia no contexto destes povos e apoiando a logística para a instalação dos filtros.

As entidades também ficaram responsáveis pela parte educativa, transmitindo informações sobre o funcionamento do filtro, orientações sobre higiene pessoal e como identificar sinais de desidratação. A partir de agora, elas vão acompanhar, junto às comunidades, os impactos do projeto e a necessidade de manutenção dos aparelhos.

“Decidimos instalar o filtro na escola de ensino fundamental, para que os alunos tivessem acesso à água filtrada. O projeto minimizou bastante a diarreia entre as crianças, problema que estava com altos índices”, diz Plínio Guilherme Marcos, liderança do povo Baniwa, que mora na comunidade de Tunuí-Cachoeira, uma das beneficiadas. “A água para o povo Baniwa Koripaco é vida. Sem água, o povo não resiste”, afirma.

Segundo o comunicador indígena, a iniciativa chegou de “surpresa”, mas foi bem recebida pela comunidade, que já é abastecida por um sistema de água encanada, feito em parceria com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). “Eu tenho certeza que esse tipo de projeto pode tornar viável que as pessoas que moram nas comunidades possam tomar água limpa e filtrada. Precisamos expandir em outras comunidades.”

Em sua segunda fase, o projeto promete chegar em outubro deste ano ao Pará, visando atender de 18 a 30 comunidades da Várzea de Santarém e da Terra Indígena Munduruku, na região do rio Tapajós. Os locais abrangem o município de Itaituba, conhecido como a “capital do garimpo”, de onde sai 81% do ouro ilegal do país, de acordo com dados de estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em cooperação com o Ministério Público Federal. “Vamos levar essa solução e tentar juntá-la com tecnologias locais para incluir a filtragem de metais pesados”, diz Bruno. A ação será realizada em parceria com o Projeto Saúde e Alegria.

Cisternas agora fazem parte da paisagem da aldeia Arroio Korá, em Paranhos (MS) — Foto: Reprodução - Humana Brasil

Cisternas agora fazem parte da paisagem da aldeia Arroio Korá, em Paranhos (MS) — Foto: Reprodução – Humana Brasil

Guarani Kaiowá

A denúncia da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o extermínio da população Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, em 2016, movimentou o poder público. Para resolver a questão do acesso à água potável, causa de desnutrição e mortalidade infantil entre membros da etnia, o governo federal lançou, no ano seguinte, um edital para o fornecimento de água em áreas homologadas mas com deficiência de atendimento por parte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

A ONG Humana Brasil venceu a chamada pública com o Projeto Tekohá y Porã (Terra e Água, no idioma guarani). A iniciativa incluiu a implementação de tecnologias de captação de água da chuva por meio de cisternas, com base na experiência da entidade no semiárido nordestino. O projeto foi realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, em parceria com a ONG e a Funai (Fundação Nacional do Índio). A construção das cisternas ficou por conta da ABMinas e da Cáritas Brasileira.

Sistema instalado na comunidade Pyelito Kuê, em Iguatemi (MS) — Foto: Reprodução - Humana Brasil

Sistema instalado na comunidade Pyelito Kuê, em Iguatemi (MS) — Foto: Reprodução – Humana Brasil

As mais de 600 cisternas de 25 mil litros cada foram instaladas em comunidades indígenas dos municípios de Paranhos, Eldorado, Iguatemi e Bela Vista entre 2018 e 2020. Um total de 510 famílias foram beneficiadas. A cisterna abastece as aldeias nos quatro meses de seca no ano, e evita que os moradores precisem percorrer os sete quilômetros de distância até o rio mais próximo, conta Ubaldo Fernandes, liderança indígena da aldeia Paraguaçu, em Paranhos. O projeto também incluiu a entrega de filtros de barro, onde a água da chuva passa por um processo de purificação.

Acesso a direitos

Metade das cisternas incluíam uma estrutura de telhas, conhecida como telhadão, incluindo canos por onde escorre a água da chuva para ser armazenada nas cisternas. Parte desses telhados foram aproveitados pelos indígenas para a construção de casas. Segundo Idvandro Brito, coordenador de Projetos da Humana Brasil, a iniciativa também aumentou a inclusão cidadã ao estimular o registro dos indígenas, necessário para ter acesso à tecnologia, mas também a outros programas sociais, como o Bolsa Família.

O projeto levou ainda à formação de comissões municipais, onde os indígenas discutiam sobre o acesso à água e outros temas com representantes do poder público, trazendo avanço no acesso aos direitos dentro das comunidades. “A comunidade no município de Iguatemi, por exemplo, passou a ter escola e acesso à energia elétrica depois do projeto. Já a comunidade Cerrito, em Iguatemi, ganhou uma ambulância”, elenca Idvandro.

Porém, como no caso do “Água Segura”, a conservação é uma limitação para a continuidade do programa. A cisterna, de concreto, chega a durar 50 anos, mas os fortes ventos sul mato grossenses arrancaram calhas do telhadão em alguns dos sistemas instalados. “Falaram que viriam fazer manutenção depois de dois anos, mas até agora não foi feita. A Defesa Civil trouxe calhas pequenas que mal deram para cobrir os buracos”, diz Ubaldo, que teve a telha do barracão da sua casa arrancada pelo vento.

Durante a pandemia, o governo Bolsonaro vetou a obrigação do governo de garantir acesso à água potável aos povos indígenas prevista no Projeto de Lei que reunia medidas de apoio a essas comunidades em razão da Covid-19. Outra medida foi uma portaria da Funai proibindo o acesso às aldeias nesse período. A decisão da Funai inviabilizou a entrada da Humana nas aldeias durante o período, e a manutenção agora estaria a cargo da Sesai, segundo Idvandro.

“Imaginamos o projeto como um pontapé inicial para a sua expansão ou para a criação de projetos mais robustos”, diz. Segundo ele, apenas no município de Paranhos, seriam necessárias 800 cisternas para resolver o problema do acesso à água. Também há demanda pela tecnologia em comunidades indígenas de Dourados, Amambai e Antônio João.

Nesses locais, a implantação de outros sistemas já estudados pela Sesai, como poços artesianos, também poderia ser uma solução para a questão da água. Na aldeia capitaneada por Ubaldo, liderança Guarani, o poço existente está há dez anos sem funcionar e, apesar dos documentos encaminhados para o município, governos do estado e federal, exigindo a perfuração de outro poço, nada foi feito, diz ele. Segundo a liderança indígena, também é preciso ampliar o acesso a água encanada na comunidade, já que o número de famílias subiu de 162 para 223 em uma década.

“O poder público sabe o que deve ser feito, a questão é que não tira os projetos do papel. Ficamos aguardando o governo federal se pronunciar, mas há um silêncio completo sobre questões de água para o estado”, afirma Idvandro.

Governo federal

Procurado pela reportagem para responder às críticas e esclarecer sobre as ações do governo federal no acesso à água em comunidades indígenas, o Ministério da Saúde enviou uma nota oficial sobre o Programa Nacional de Acesso à Água Potável em Terras Indígenas (PNATI). Segundo o texto, a iniciativa irá propor “projetos e ações necessários para atingir a universalização do acesso à água”.

Um dos eixos do programa se baseia na implantação de novas estruturas de abastecimento em locais sem fornecimento e na reforma de sistemas já existentes. “O outro visa monitorar de forma consistente a água entregue às comunidades indígenas garantindo que as etapas de tratamento e distribuição ocorram dentro dos padrões de qualidade necessários”, informou o órgão. O governo federal não detalhou prazos, tecnologias a serem empregadas, comunidades beneficiadas nem os valores previstos no programa.