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“Nas lutas por justiça ambiental, a disputa pelo meio ambiente está ligada aos modos de vida”: Entrevista com Gabriela Merlinsky

“Nas lutas por justiça ambiental, a disputa pelo meio ambiente está ligada aos modos de vida”: Entrevista com Gabriela Merlinsky

Gabriela Merlinsky nasceu em uma pequena cidade na província argentina de La Pampa. Na adolescência, gostava de ler sobre história, geografia e economia. Alguns anos depois, sua curiosidade a levou a ingressar no curso de Sociologia, da Universidade de Buenos Aires – UBA. Então, percebeu que estava no lugar certo.

Os títulos acadêmicos – atualmente é doutora em Ciências Sociais e em Geografia –, junto com as experiências de trabalho com comunidades, foram se acumulando. Suas pesquisas se concentram no campo da sociologia ambiental, mas também busca estabelecer diálogos com outras disciplinas das ciências sociais e com as ciências exatas e naturais. Contudo, faz um esclarecimento: “Não é obrigatório que o científico tenha que ser incompreensível, ilegível, árido. Às vezes, este recurso retórico é usado para se manter isolado do mundo”.

Merlinsky escreveu vários livros. Toda ecología es política: las luchas por el derecho al ambiente en busca de alternativas de mundos é o mais recente. Também foi coordenadora e idealizadora de um estudo coletivo chamado Cartografías del conflicto ambiental en Argentina.

Eis a entrevista.

Qual é a relação entre os extrativismos atuais e o colonialismo?

É um debate de uma corrente de pensamento crítico, que se chama ecologia política. Possui uma corrente anglo-saxônica, outra francesa, mas também uma marca muito forte na América Latina, com autores como Enrique Leff [economista e sociólogo mexicano], Arturo Escobar [antropólogo colombiano] e Maristella Svampa [socióloga argentina]. Esta última corrente tem um peso muito forte na história ambiental e considera o trauma sociocivilizatório da conquista e da colônia.

Conta com dois debates muito importantes. Um deles está relacionado ao enfoque modernidadecolonialidade. Não considera apenas a Inglaterra e a Revolução Industrial como a origem do capitalismo, mas também os reinos ibéricos e as conquistas. Não haveria modernidade, nem capitalismo, sem a extração de recursos da América e inclusive sem a escravidão. O outro eixo do debate está em como isso reconfigurou as sociedades latino-americanas, a ponto de, mais à frente, os Estados serem constituídos baseados em disputas muito profundas, justamente territoriais.

O historiador colombiano Germán Palacios chama de “assincronias” o fato de haver regiões “exóticas” que permanecem sem ser incorporadas aos estados nacionais. Por quê? Porque possuem outras lógicas, outras formas de produção, de consumo. Por mais que o capitalismo seja um modo de produção dominante, nem sempre impera em todos os lugares.

De fato, ainda hoje, muitas disputas pelos territórios se devem a esses debates. Os povos indígenas, por exemplo, dizem: “Nós estávamos aqui antes, temos direito sobre esta terra”. É um debate muito profundo, envolve as narrativas com as quais entendemos o mundo, os mundos. O que passou a se chamar de “Novo Mundo” de novo não tinha nada.

Tudo isso está plenamente relacionado ao que estamos debatendo hoje: como as exportações aumentam para fechar a balança de pagamentos e como essas exportações dependem da monocultura, da mineração, do lítio, de diferentes extrações que têm um padrão semelhante. É claro que não é a mesma coisa, mas é um padrão em que grandes corporações internacionais possuem acesso discricionário aos recursos, porque também são favorecidas fiscalmente pela redução dos níveis de legislação.

Essa extração vai para fora e não permite investimentos locais, gera empregos – não é que não gere –, mas continuamos com os problemas cíclicos das economias. Somos muito dependentes dos preços desses bens que são extraídos e exportados, que são commodities.

Há uma crise do regime de acumulação do capital, como diz Jason Moore. Isso faz com que o dinheiro fique nos cofres das corporações, mas há um problema sério sobre onde colocar o dinheiro que gera muito investimento no mercado imobiliário, no mercado financeiro, a dívida e todas as coisas que nos afundam e tornam tão incrível, incompreensível, que permaneçamos sociedades tão desiguais, vivendo em territórios cheios de bens comuns.

Em meio a toda essa situação, nasce o conceito de justiça ambiental. Há um momento particular em que as comunidades começaram a se apropriar deste conceito? Como você o definiria?

justiça ambiental questiona o fato de a maior carga de poluição, dano ambiental e desigualdade no uso de recursos pressionar mais fortemente os setores desfavorecidos. Setores populares, mulheres, comunidades afrodescendentes. É como uma clivagem que ilumina os debates sobre a desigualdade.

É uma poderosa narrativa vinda de baixo. O movimento dos direitos civis e o movimento afro-americano foram muito importantes nos Estados Unidos. Começaram a falar em racismo ambiental para mostrar como, por exemplo, em qualquer mapa, os locais de depósito de resíduos perigosos se sobrepõem, justamente, aos locais onde vivem as pessoas de cor.

No Brasil, o movimento de justiça ambiental se articula com o Movimento Sem Terra. Há ações muito fortes para evitar que certos resíduos perigosos exportados pela Europa para a América Latina cheguem aos estados com menor nível de proteção. As mobilizações não almejam que aquilo que é perigoso seja transferido para outro lugar e afete outro grupo. Este é um grande debate nos movimentos.

Na Argentina, a justiça ambiental se tornou muito importante a partir dos debates sobre a mineração, mas também com a questão do rio Riachuelo. Nas grandes metrópoles da América Latina, os setores populares têm acesso à moradia e ao solo urbano por meio de um processo de produção social do habitat popular. As terras que acessam possuem menor valor econômico no mercado, justamente por estarem ambientalmente degradadas. Então, o caso do Riachuelo começou com uma ação pela contaminação por chumbo e com a exigência ao Estado de uma recomposição ambiental da bacia.

O interessante desse caso é que não foi uma demanda apenas individual, mas exigiram coletivamente a reparação do ecossistema. Havia danos à saúde e danos ao meio ambiente, pois primeiro se danificou o rio, a bacia. Para mim, é um caso testemunhal da justiça ambiental, já que os movimentos reivindicam ações coletivas de reparação porque é uma questão de direitos. A questão ambiental está muito ligada aos direitos humanos.

Em uma apresentação, ouvi você citar uma frase do biólogo estadunidense Barry Commoner, que diz assim: “A dívida com o meio ambiente não pode ser paga com garrafas recicláveis, nem com estilos de vida saudáveis. Paga-se com a velha moeda da justiça social”. Esse pensamento está relacionado ao seu último livro, intitulado ‘Toda ecología es política’?

Os problemas ambientais começaram a ganhar visibilidade no século XX, tendo seu ápice nos anos 1970, quando na Conferência de Estocolmo, pela primeira vez na história, ocorre uma governança global do meio ambiente. O debate ambiental é um tema muito disputado pelos governos em termos geopolíticos, mas também pelos especialistas. Desde essa época, há tendências em relacionar o meio ambiente a um assunto de especialistas, que se resolve com inovação tecnológica e visões conciliatórias.

Uma delas é o desenvolvimento sustentável, a ideia de que será possível articular a economia com o que acontece no meio ambiente e que é uma questão de as empresas internalizarem comportamentos de responsabilidade social empresarial e normas de proteção ambiental. Mais ainda, não só de internalizarem, mas que o assunto também é concebido como um fator de rentabilidade econômica.

Sempre coloco tudo isso em discussão, pois acredito que existem outras visões de meio ambiente que surgem de baixo e têm a ver com o direito à vida. A ecologia de qualquer comunidade é política. Para podermos viver, para reproduzirmos, precisamos interagir com os bens naturais. Nas lutas por justiça ambiental, a disputa pelo meio ambiente está ligada aos modos de vida.

Uma autora do movimento afro-americano disse que o direito ao meio ambiente saudável ou à justiça ambiental tem a ver com o lugar onde você vive, o lugar onde você atua, onde trabalha. O que a frase de Commoner resume é que se queremos falar em dívida ecológica, não basta formas de consumo individual ou estilos de vida pessoais. Temos que ir à raiz do problema: a distribuição desigual dos recursos, da vida, do trabalho. Voltando à justiça social. Um leit motiv de meu livro é que é necessário conectar a agenda da justiça social com a agenda da justiça ambiental.

E estamos conseguindo?

Vê-se muito nos movimentos. Na Argentina, há muita mobilização dos jovens. Na última marcha da Juventude pelo Clima havia uma faixa bem comprida que dizia “justiça ambiental é justiça social”. Ocorre que nessa crise global do regime de acumulação, a disputa é muito forte. Até que não se extraia a última gota de petróleo, não se avance na última fronteira extrativa, as relações de poder serão muito desiguais. Isso é o que impera.

Qual deve ser o papel dos cientistas neste contexto?

Não gosto muito de oferecer receitas. Além disso, quem sou eu para dizer aos cientistas qual é o seu papel? [risos]. De minha posição, meu conhecimento situado, penso que temos uma grande responsabilidade. Primeiro, porque temos acesso a um conhecimento que outros atores por aí não têm. O Estado nos forma para aprender, pesquisar, produzir. Há um compromisso com o público que é central e não basta escrever artigos científicos que saiam em uma revista que pouca gente lê. É preciso participar do debate público.

Observe, eu não acredito no modelo moderno de ciência que é: “o cientista informa e o político decide”. Isto nos faz retroceder algumas casas. Penso que temos que participar como um ator a mais no debate público, contribuindo com livros de acesso aberto, trabalhos de extensão, tudo o que podemos fazer naquilo que se chama ciência aberta.

No debate mais atual sobre estudos sociais da ciência, fala-se cada vez mais em ciência cidadã, pós-normal, em controvérsias sociotécnicas. Ou seja, os atores comuns dos territórios também produzem conhecimento, e deve haver mais diálogo entre saberes. As ciências sociais, se conseguirmos aplicá-las com compromisso e humildade, podem oferecer uma contribuição no sentido de traduzir, articular, gerar redes que não são apenas de atores, são conexões entre problemas. É uma problemática global muito complexa.

Considera que existe um certo preconceito em relação ao conhecimento local?

As narrativas que dominam são de extração, pilhagem, modernização. O livro mais conhecido de Bruno Latour [filósofo, sociólogo e antropólogo francês] se chama Jamais fomos modernos. Ele diz que o grande problema foi ter considerado a modernidade uma teleologia. Quando você diz a alguém “seja moderno”, está dizendo: “modernize-se”. Está assinalando um caminho único do qual essa pessoa ficou de fora e no qual deveria se incorporar porque, caso contrário, pode perder algo em sua vida.

Na verdade, nossas histórias locais, ambientais, de crises e revoluções mostram outros caminhos. Não se trata necessariamente de “modernizar”. Além disso, “modernizar” não é uma receita que funciona para as maiorias, funciona para as minorias. Temos que colocar muitas coisas em debate acerca do que é desenvolvimento e a ideia de “crescimento sustentável”. É um oxímoro, não é possível que a economia cresça infinitamente. Isto se dá à custa de um único sistema que é a biosfera, o planeta Terra, que não é infinito.

Os cientistas falam da sexta extinção de espécies, falam de problemas com o fósforo e o nitrogênio do solo, da crise climática. São todas funções essenciais para a vida que estão sendo perdidas. O que vamos fazer com isso? Vamos continuar avançando e explorando recursos porque temos que ser modernos?

Você se considera uma pessoa com uma visão otimista ou negativa acerca do futuro?

Nisso sou muito Donna Haraway. Ela diz que temos que aprender a viver e a morrer em um planeta danificado. O dano já está feito, a vida que nos cabe viver será diferente, já é. Então, mais do que pensar em um futuro de êxitos, temos que aprender a conviver com o que existe, a reparar, não provocar mais danos, a promover éticas do cuidado.

Como cientista, não tenho que cair no fatalismo de dizer que o fim está chegando, porque isso é desmobilizador. Contudo, não gosto do otimismo ingênuo e perigoso das tecnologias, com o “fique tranquila porque virá uma tecnologia que irá resolver, não faça nada”. Essa ideologia é muito perigosa. Eu estou em um caminho que não é o facilismo, nem o fatalismo. É a decisão complexa, dura, difícil, às vezes dolorosa, de viver e participar academicamente, como cidadã, politicamente e como cuidadora, em um planeta danificado.