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Mar que alimenta: rotas para o Brasil explorar, com responsabilidade, o potencial de crescimento do mercado pesqueiro

Mar que alimenta: rotas para o Brasil explorar, com responsabilidade, o potencial de crescimento do mercado pesqueiro

Os entraves são muitos, mas há caminhos para que a pesca no oceano e o cultivo dos pescados em águas salgadas sejam atividades sustentáveis

O mapa do Brasil exibe impressionantes 8 mil quilômetros de litoral, mas de uma coisa não podemos nos orgulhar: estamos mergulhados em um oceano de desinformação. O Boletim Estatístico da Pesca e Aquicultura mais recente tem mais de uma década. Foi publicado em 2011, com dados de abrangência nacional (veja nos destaques). Não dá para precisar, portanto, como andam as atividades artesanais ou as industriais, sejam de pesca das espécies disponíveis no oceano ou de cultivo de crustáceos e moluscos em fazendas marinhas.

Dados que vêm de fora, do relatório Estado Mundial da Pesca e Aquicultura (SOFIA) de 2022, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ressaltam a grande contribuição dos pescados para a segurança alimentar e nutricional, mas indicam que apenas 64,6% dos estoques pesqueiros no mundo são explorados de forma sustentável.

“Um dos grandes desafios é combater a pesca ilegal, a não reportada e a não regulada, que têm consequências para o equilíbrio ecológico. É fundamental ter informação sobre os estoques pesqueiros e o que tem sido pescado, e assim criar instrumentos de gestão adequados e regulamentação”, diz Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).

É necessário limitar a quantidade do que se retira do mar para que as espécies se regenerem e, no caso da produção ou do cultivo dos pescados, promover práticas que não agridam o ambiente e zelem pelo bem-estar dos indivíduos. Além disso, a sustentabilidade só é garantida se comunidades e profissionais que atuam na pesca tiverem condições saudáveis de trabalho e alcançarem um equilíbrio econômico.

Existem fortes argumentos para consumir mais pescados, e eles vão além da recomendação do Guia Alimentar da População Brasileira, que os coloca no grupo de alimentos preferenciais, assim como legumes, verduras e frutas. A eficiência da produção de proteína animal nas águas está muito à frente das espécies terrestres. “No Brasil, produzimos no máximo 600 quilos de carne bovina em um hectare, ante 30 toneladas de peixe na mesma área”, explica Wagner Valenti, professor de pós-graduação em Aquicultura da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Segundo a Auditoria da Pesca 2021, realizada pela organização sem fins lucrativos Oceana, os chamados alimentos azuis, que têm sua origem no ambiente aquático, como oceanos, rios e lagos, são os menos impactantes nas emissões de gases de efeito estufa e no consumo de água e de energia.

Pesca artesanal - No Paraná, ela corresponde a 99,3% da atividade pesqueira, segundo o Projeto de Monitoramento da Atividade Pesqueira (PMAP, 2022) — Foto: Getty Images
Pesca artesanal – No Paraná, ela corresponde a 99,3% da atividade pesqueira, segundo o Projeto de Monitoramento da Atividade Pesqueira (PMAP, 2022) — Foto: Getty Images

No Brasil ainda é possível explorar, com responsabilidade, o potencial de crescimento do uso do mar. “Na ‘Amazônia Azul’, como é chamado o trecho de 200 milhas junto à costa sob jurisdição do Brasil, temos uma área equivalente à Amazônia”, aponta Valenti. Manter os ambientes marinhos preservados, no entanto, é uma preocupação que ultrapassa fronteiras. Em 2023, um acordo pactuado por 169 países com a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece que, até 2030, 30% da cobertura terrestre e oceânica do planeta seja transformada em reservas e territórios protegidos. O Tratato para Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional (BBNJ, na sigla em inglês) entra em vigor após a ratificação dos seus signatários, mas significa uma grande vitória: é o primeiro marco regulatório para uso sustentável do mar. Turra, da USP, afirma que áreas protegidas são essenciais para a manutenção da pesca: “Esses ambientes têm a função de favorecer que as espécies se reproduzam e cresçam, para que depois do deslocamento possam ser pescadas em outros locais”.

Segundo dados estaduais, de 2022, Santa Catarina puxa a fila, com mais de 130 mil toneladas pescadas ao ano. “Se tivéssemos estatísticas em outros estados, veríamos possivelmente que Pará e Amazonas têm produção ainda maior do que a de Santa Catarina, o mais atuante entre os monitorados”, diz Roberto Wahrlich, professor do Instituto de Oceanografia da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). A pesca artesanal não é uniforme, pode ser feita tanto por pescadores isolados, que dependem da pesca para se alimentar e gerar renda, quanto por pequenas empresas.

Já a frota de embarcações industriais é voltada à produção de atum e sardinha em latas ou conservas. Em Santa Catarina estão as maiores indústrias de enlatados da América Latina, a Gomes da Costa e o Grupo Camil, e outras que produzem pescados congelados: “O Brasil consome muito mais pescados do que produz, tem um déficit na balança comercial de US$ 1 bilhão por ano. E a preferência de quem tem alto poder aquisitivo é por bacalhau e salmão”, explica Wahrlich.

Proteína do oceano - O camarão é um dos alimentos azuis, que nutrem e oferecem pouco impacto ambiental — Foto: Divulgação
Proteína do oceano – O camarão é um dos alimentos azuis, que nutrem e oferecem pouco impacto ambiental — Foto: Divulgação

Liliam Catunda, diretora de Relações Institucionais da Associação Brasileira das Indústrias de Pescados (Abipesca), diz que o principal impacto ambiental e econômico da pesca industrial é a captura acidental de espécies. Como representante de 70% das marcas comercializadas no país, ela indica que para reduzir esses impactos devem ser “adotadas regras de ordenamento e medidas de gestão, como a definição de áreas de exclusão, períodos de defeso, monitoramento das capturas e operações das embarcações, além de dispositivos e técnicas, como os que protegem tartarugas, raias e tubarões, e os que permitem o escape de indivíduos juvenis”. Para ser sustentável, a pesca extrativa precisa de governança, viabilidade social, econômica e ambiental, comenta Wahrlich. “Não é possível ganhar sempre em todas elas, mas balancear essas partes para chegar a um bom resultado. A gestão não é responsabilidade só do governo, mas ele precisa conduzir o processo com os diferentes envolvidos”, explica ele.

O Brasil está longe de conseguir uma certificação internacional de pescarias extrativas sustentáveis, como a MSC, Marine Stewardship Council – para isso, precisaria fornecer informações de sustentabilidade do estoque pesqueiro, nível de impacto do ecossistema e capacidade de governança. Mas Cintia Miyaji, da consultoria Paiche, não desanima e tenta construir uma espécie de selo de qualidade. Desde 2020, ela atua em Áreas de Proteção Ambiental (APA) no Rio Grande do Norte e no Espírito Santo, no projeto Parceiros do Oceano Atlântico. A iniciativa é do ICMBio, que faz parcerias com o governo dos estados para acompanhar e apoiar as práticas de sustentabilidade de pesca em larga escala.

Desde julho de 2022, câmeras em embarcações regularizadas para pescar atuns nas APAs filmam a captura e o armazenamento. A intenção é verificar o uso de equipamentos permitidos por lei e o correto tratamento dado aos atuns (e também a tubarões, tartarugas e aves), e sistematizar critérios para a pesca. Além disso, vender os produtos a preços mais altos permite que os pescadores sintam no bolso que essas boas práticas são valorizadas. “Queremos identificar a pesca de qualidade com um selo e realizar a rastreabilidade, como se colocássemos uma etiqueta no peixe. Sem isso, o trabalho realizado antes de chegar ao consumidor não ganha visibilidade”, explica Cintia.

 — Foto: Carlos Maranhão/Getty Images
— Foto: Carlos Maranhão/Getty Images

Uma inspiração vem da África do Sul. A Abalobi, organização que valoriza comunidades pesqueiras de pequena escala, produz dados sobre a pesca e rastreabilidade dos produtos. Em setembro de 2023, a iniciativa foi reconhecida entre 15 soluções inovadoras para o clima e o meio ambiente, sendo finalista do Earthshot Prize 2023, premiação assinada pelo Príncipe William, do Reino Unido. “Uma proposta como essa combina com a realidade dos pescadores artesanais brasileiros, com liderança forte das comunidades, possibilidade de processamento do que é pescado e ligação com mercado”, diz Cintia.

Nem sempre os pequenos produtores conseguem atingir os padrões indicados pela vigilância sanitária pelos custos e processos envolvidos (leia o exemplo da Olha o Peixe!, na página anterior). O modelo das reservas extrativistas (Resex) marinhas também pode ser uma forma de organização da atividade de pesca, já que tem uma governança estabelecida, comunidade organizada e território ordenado (para saber como se organizam as Resex marinhas do Pará e do Maranhão, leia acima).

Da água para a mesa: qual a origem do pescado nacional?
Os dados nacionais mais recentes são de 2011 e indicam de onde vêm os pescados:
– 39% pesca extrativa no mar e estuários
– 38% aquicultura continental (cultivo de pescados em rios, lagos e represas)
– 17% pesca extrativa continental (em rios, lagos e represas)
– 6% aquicultura marinha (maricultura, que ocorre no mar e estuários)
Fonte: Boletim Estatístico da Pesca e Aquicultura (Ministério da Pesca e Aquicultura)

Olha o peixe! - A empresa de Bryan leva a produção de pescadores artesanais do litoral paranaense direto para os consumidores — Foto: Divulgação
Olha o peixe! – A empresa de Bryan leva a produção de pescadores artesanais do litoral paranaense direto para os consumidores — Foto: Divulgação

Elo entre o produtor e o consumidor

“Queremos que a pesca artesanal seja valorizada, assim como o produto orgânico ou a cerveja artesanal”, exalta Bryan Müller, fundador e diretor-executivo da Olha o Peixe!, empresa sediada em Curitiba que há cinco anos faz a ponte entre pescadores artesanais do litoral paranaense e consumidores da região metropolitana e do litoral. Funciona assim: a equipe identifica semanalmente os pescadores que gostariam de vender seus produtos e os compradores interessados. As mercadorias, como pescadinha, cavala, camarão, porquinho e siri, chegam de barco na praia e são levadas para um centro de beneficiamento para serem limpas, cortadas, embaladas e congeladas pelas profissionais, normalmente mulheres da comunidade. Nome do pescador, data e embarcação constam na etiqueta, assim como o selo de inspeção sanitária. O caminhão frigorífico e os motoboys cuidam das entregas na casa dos clientes, que compram itens avulsos ou participam de um clube de assinaturas.

“Notamos que os pescadores têm produtos de qualidade, mas, além de estarem distantes dos consumidores, não têm como divulgar, beneficiar ou armazenar os pescados corretamente. Atuamos nessas frentes e aumentamos a renda desses profissionais”, diz Bryan, que hoje atinge 112 famílias em 11 comunidades pesqueiras. O trabalho foi reconhecido com primeiro lugar no Prêmio de Natureza Empreendedora 2020 e em premiações como a SESI ODS 2021 e 2022 e a Rocket Startups 2023.

A Olha o Peixe! prioriza produtos sazonais, respeita o defeso, não comercializa espécies ameaçadas de extinção (como cação) e paga melhor o pescador. Também elabora cartilhas, cadernos de receitas e materiais informativos para pescadores e consumidores, com o objetivo de conscientizar sobre a conservação das espécies e o valor do produto artesanal. “O preço final não é maior que o do supermercado, porque há menos intermediários entre quem pesca e quem compra”, diz Bryan, que já começa a fornecer consultorias para compartilhar a experiência.

No Maranhão - Existem quatro reservas extrativistas, como a de Cururupu, com modelo de exploração que protege a biodiversidade da região — Foto: Divulgação
No Maranhão – Existem quatro reservas extrativistas, como a de Cururupu, com modelo de exploração que protege a biodiversidade da região — Foto: Divulgação

Reservas extrativistas: modelo sustentável para o ambiente e as comunidades

Proteger a cultura de populações tradicionais e zelar pelo uso sustentável dos recursos naturais é a razão de ser das reservas extrativistas (Resex) marinhas. No Pará existem oito delas, e no Maranhão quatro, que protegem grande parte da costa equatorial e amazônica brasileira. “Essas unidades de conservação têm regras de pesca, povos que valorizam seus territórios e ambientes preservados. Considero um modelo de exploração sustentável, que pode gerar valor ao que é pescado e favorecer o sustento das populações”, diz Karina de Oliveira Teixeira, analista ambiental e gestora do ICMBio São Luís, responsável pelas Resex do Maranhão.

“O formato das reservas é organizado para apoiar as formas de pensar ou trabalhar, os modos de cuidar do ambiente, histórias e ‘causos’ das comunidades”, diz Dioniso de Souza Sampaio, professor do Instituto de Estudos Costeiros (IECOS) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Quem vive da pesca tem cultura similar, valoriza a solidariedade, a comunidade e se organiza em rede. No Pará, a preservação dos manguezais mantém o ecossistema, impactando diretamente a produção de pescados, entre eles siris, corvina, pescada-branca e amarela para consumo interno, além de pargo e lagosta, que são exportados.

As Resex do Maranhão estão entre as três maiores do país. Cerca de 17,4 mil famílias moram nelas, que ocupam cerca de 60% do litoral do estado e são a principal área de ocorrência do peixe-boi marinho da costa. A região conta com arquipélagos, manguezais, baías, rios e estuários, guarás (aves com plumagem vermelha) e população de quilombolas, pescadores artesanais e produtores da agricultura familiar. “O ‘maretório’, como apelidamos o território marinho, garante a reprodução social e cultural das comunidades tradicionais, que são as guardiãs da vida e da sociobiodiversidade das Resex”, conta Karina.

EXCESSOS NA PESCARIA
Dos 135 estoques pesqueiros analisados na Auditoria da Pesca – Brasil 2022, realizada pela Oceana, 66 têm avaliações quantitativas e indicam que:
– 27% estão em sobrepesca, isso é, a quantidade de animais pescados é maior do que a capacidade de reprodução da espécie
– 67% dos estoques avaliados apresentam volume inferior ao necessário para sua manutenção
– 4% dos estoques pesqueiros têm limite de captura definido
Fonte: Boletim Estatístico da Pesca e Aquicultura (Ministério da Pesca e Aquicultura)

30 anos de olho no setor pesqueiro
Entrevista com Roberto Wahrlich

Professor do Instituto de Oceanografia da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e coordenador de Santa Catarina do Projeto de Monitoramento da Atividade Pesqueira, o PMAP, ele e sua equipe acompanham o trabalho de 10 mil pescadores e 120 empresas de pesca, entre proprietários de embarcações e indústrias de processamento, e geram um relatório anual sobre a produção pesqueira catarinense, a maior do país

Como é o cenário da pesca no país?
O governo enfrenta carências básicas, como não saber o número de pescadores e o quanto se produz. O setor pesqueiro busca resolver problemas existentes sem prevenir os futuros, em um clima de defensiva sobre as regras, muitas delas desatualizadas e inapropriadas. O Brasil nunca teve gestão de pesca nos conceitos atuais de sustentabilidade. Para sermos sustentáveis, precisamos de governança.

E como organizar a governança?
Ela depende de um instituto nacional de estatística e pesquisa pesqueira, algo que não temos. Aqui as universidades cuidam dos levantamentos, mas dependem da participação voluntária de pescadores e indústrias. Países com foco na pesca extrativa, como Uruguai, Argentina e Chile, têm centros de estatística. Já a maricultura é controlada por órgãos ligados aos governos estaduais, como a Epagri, em Santa Catarina.

Qual o papel de Santa Catarina?
Aqui a pesca é um meio de vida, faz parte da cultura e cresce como negócio. A tradição pesqueira veio junto com os colonizadores e, na década de 1960, houve investimentos importantes da indústria baleeira e de outras, originando o maior polo pesqueiro do país, em Itajaí e Navegantes. Para acompanhar o que é pescado, a equipe do PMAP percorre espaços de empresas e pescadores em todo o estado e faz registros semestrais.

Como é possível cumprir a agenda ambiental?
Ela impõe enormes desafios, que dependem de gestão e informação. Como não temos essa estrutura, a pesca está sendo posta de lado e o espaço marinho tem sido ocupado por grandes empreendimentos, como o da indústria petrolífera ou de novos parques eólicos. Há mais de uma década vemos conflitos entre as áreas desenvolvimentistas de pesca e a ambiental. Nem sempre as recomendações científicas são levadas em conta porque as questões políticas são mais fortes, prejudicando a sustentabilidade do setor.

GLOSSÁRIO

– DEFESO: Período do ano em que é proibido pescar
– ESTOQUE PESQUEIRO: Grupo de peixes de uma espécie que habitam uma mesma área e estão dentro da faixa etária (ou do tamanho) permitida para pesca
– PESCADO: O termo se refere a peixes (de água doce ou salgada), crustáceos (camarão, caranguejos e siris) e moluscos (polvos, lulas, ostras, mariscos)