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Infertilidade cresce e atinge 1 a cada 6 adultos, diz OMS; por que está cada vez mais difícil engravidar?

Infertilidade cresce e atinge 1 a cada 6 adultos, diz OMS; por que está cada vez mais difícil engravidar?

Sobrepeso, poluição ambiental e estresse são alguns dos fatores que têm promovido um declínio da fertilidade humana, afirmam os especialistas

A designer Ana Paula Frade sempre quis ter filhos, mas o início de uma nova vida em Portugal, o trabalho e a mudança para uma casa maior entraram na frente e acabaram adiando os planos. Aos 35 anos, ela e o marido decidiram dar início às tentativas para engravidar, porém um processo que ela imaginava ser simples e rápido tornou-se um período de cinco anos até que finalmente chegassem ao momento atual: à espera da pequena Luiza, que deve nascer em junho.

— Depois de mais de um ano tentando naturalmente, descobrimos que eu tinha uma baixa reserva ovariana para minha idade e meu marido tinha baixa contagem de espermatozoides. Desde que eu era pequena sempre me disseram para tomar cuidado que engravidar é muito fácil, então aquela dificuldade me assustou. Na época foi uma situação difícil, não quisemos conversar com ninguém. Mas eventualmente observamos que outras pessoas do nosso grupo de amigos estavam passando por situações parecidas — conta Ana Paula, que hoje tem 40 anos e mora em Lisboa, capital portuguesa.

O cenário é realmente mais comum do que aparenta. Segundo um novo relatório sobre infertilidade, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta terça-feira, cerca de 1 a cada 6 pessoas (17,5%) no mundo enfrentam dificuldades para engravidar. O diagnóstico, definido por não conseguir uma gravidez após ao menos 12 meses de tentativas, afeta o “bem-estar mental e psicossocial das pessoas”, defende o órgão.

— Quando começamos a tentar engravidar, me lembro de familiares fazerem piadas para o meu marido do tipo “ah, você não consegue fazer gol, é muito fraco”. Então para muita gente expor essa dificuldade passa como uma fragilidade. É difícil você se sentir excluído desse mundo em que há a ideia de que engravidar é sempre muito fácil — conta a designer, que chegou a realizar quatro ciclos de reprodução assistida.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que a nova taxa de prevalência, estimada após a análise de 133 estudos, não surpreende e está alinhada com o que eles vivem no cotidiano da prática clínica. Porém, destacam que a infertilidade aumenta ano a ano. Uma análise de 2007, por exemplo, publicada na revista científica Human Reproduction, estimava que a prevalência seria de somente 9% da população há mais de 15 anos.

— Existe um consenso de que a fertilidade da espécie humana está diminuindo, e o interessante é que isso é mundial. No novo relatório, regiões muito distintas, como África e Europa, têm prevalências parecidas. Por isso a OMS quer colocar uma visão maior da sociedade sobre o problema — afirma o especialista em reprodução humana assistida Edson Borges Jr., diretor científico do Fertility Medical Group.

Motivos por trás da infertilidade

Entre os motivos para esse impacto, o principal apontado pelos médicos é a busca pela gravidez cada vez mais tarde. No caso das mulheres, a idade é crucial pois o indivíduo já nasce com com a quantidade de folículos, células que vão desenvolver os óvulos, pré-estabelecida, a chamada reserva ovariana.

— A partir dos 35 anos, a reserva ovariana passa a cair num ritmo gradativo. Para algumas isso ocorre de forma mais rápida, de outras mais lentas, mas acontece para todas. Mas a idade não é algo apenas ligado à mulher, também marca uma queda na qualidade seminal entre a população masculina — diz a especialista em reprodução humana assistida Mychelle Garcia, ginecologista e obstetra da Maternidade Escola Januário Cicco, vinculada à rede Ebserh, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (MEJC/UFRN).

O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Renato Fraietta, coordenador do Setor Integrado de Reprodução Humana da instituição, explica que a idade afeta ambos os sexos por ser mais tempo em que a pessoa é exposta a fatores da vida moderna que comprovadamente interferem na qualidade dos gametas.

— Obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool excessivo, uso de substâncias, poluição ambiental, poluentes do plástico, estresse, tudo isso tem efeito na qualidade e quantidade dos gametas. Por isso é importante que as pessoas saibam que esse impacto existe, e que fazer atividade física, não usar substâncias danosas, não fumar, não beber em excesso, dormir melhor são hábitos que ajudam a combatê-lo — orienta o especialista.

Ivan Penna, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e chefe do Serviço de Reprodução Humana do Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF, acrescenta que isso tem levado a uma queda consistente na qualidade do sêmen nas últimas décadas, um indicador mais fácil de se monitorar.

De acordo com um estudo publicado no ano passado na revista científica Human Reproduction Update, a concentração de espermatozoides entre os homens caiu 51,6% em todo o planeta nos últimos 46 anos. Além disso, essa queda acelerou a partir dos anos 2000, para quase o dobro do observado no final do século anterior.

— Hoje, diferente da década de 70, fala-se que a infertilidade do homem pode ser responsável por até metade dos casos totais, enquanto antes era por volta de apenas 30%, 35% — diz o professor, que destaca o impacto de fatores ambientais no quadro.

— Muitos produtos utilizados hoje carregam substâncias que chamamos de disruptores hormonais, que simulam o papel do hormônio e levam a uma redução da qualidade do sêmen. Além disso, levam a uma quantidade menor de óvulos, reserva ovariana, aumento dos casos de endometriose e de ovário policísticos, todos quadros que impactam na fertilidade feminina.

De mudança de hábitos à fertilização in vitro (FIV)

Os tratamentos mais conhecidos hoje são os considerados de média e alta complexidade, como a inseminação intrauterina – antes chamada de artificial – e a fertilização in vitro (FIV). Porém, Mychelle destaca que essas não costumam ser as primeiras alternativas oferecidas ao paciente.

— O tratamento vai depender da avaliação do paciente, do tempo que a pessoa tem a dificuldade e da idade. Se for possível corrigir fatores clínicos, como estilo de vida, isso sempre será buscado primeiro — explica.

Há ainda a estratégia do coito programado, quando os médicos monitoram a ovulação da mulher e indicam os dias mais propícios para se ter a relação sexual. Porém, para casos de maior dificuldade são indicadas a inseminação e a FIV.

A primeira é uma técnica na qual o sêmen é injetado diretamente dentro do útero. Em alguns casos, ocorre uma estimulação hormonal para aumentar a produção de óvulos. Há também a possibilidade de o médico selecionar antes da os espermatozoides mais ágeis, para elevar a chance de gravidez.

Já a fertilização é a técnica mais complexa em que a fecundação ocorre fora do corpo. Para isso, o óvulo e os espermatozoides são coletados, e os especialistas realizam o processo em laboratório. Em seguida, o embrião é inserido no corpo da mulher. O processo tem uma taxa de sucesso maior, porém é mais caro.

— Inseminação é principalmente quando a mulher não ovula ou ovula pouco. É um procedimento bem simples, pode ser feito no consultório sem anestesia. Infertilidade sem causa aparente, endometriose mínima ou leve são outros casos em que pode ser indicado. Já a fertilização é normalmente para casos mais complexos, quando existe um problema nas trompas, quando o sêmen é muito alterado, quando precisa fazer biópsia de embrião, endometriose moderada ou grave. Então são situações mais difíceis — diz Fraietta.

A biópsia mencionada é indicada nos casos em que pelo menos uma das partes do casal possui uma doença genética que pode ser passada para o filho. — É indicado fazer a FIV pois é possível estudar o embrião em laboratório para selecionar um saudável — explica.

Além disso, como prevenção, Borges recomenda que tanto o homem, como a mulher, procure um urologista e uma ginecologista no início da vida adulta para verificar se há questões desde já que podem impactar a fertilidade. E, em casos de mais de um ano tentando sem sucesso, também é importante procurar ajuda.

— Muitas vezes a pessoa só faz isso mais tarde e aí descobre que tem uma maior dificuldade que poderia ser menor. Hoje fazemos muito congelamento de óvulos, por exemplo, mas é indicado que o procedimento seja feito até no máximo por volta de 32 anos para melhores resultados. Então se a pessoa quer engravidar com 38 anos, já congelamos com 30 para preservá-lo — afirma o especialista.

Desafios no acesso

No Brasil, segundo o Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), plataforma da Anvisa que monitora a reprodução assistida, existem 193 centros onde são realizados aproximadamente 40 mil ciclos de tratamento ao ano. Porém, enquanto São Paulo sozinho conta com 66 centros, quatro estados não contam com nenhum estabelecimento, todos na região Norte – Amapá, Rondônia, Roraima e Acre.

Além disso, poucos fazem parte da rede pública. A disponibilidade no Sistema Único de Saúde (SUS) passou a ser instituída em 2005 com a criação da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida. Porém, de acordo com um repasse de verbas do Ministério da Saúde de 2012, apenas oito centros faziam parte do SUS. Questionada, a pasta não informou quantos locais existem hoje, embora não tenham sido feito esforços na última década para ampliar o total. O alto custo para manter as unidades foi sempre um desafio que limitou a oferta.

— Você lida com possibilidades, não envolve a correção do problema do paciente. Envolve um procedimento que vai tentar gerar aquela expectativa. E na maioria dos casos o paciente não engravida no primeiro procedimento, ele precisa repetir. E é preciso de profissionais muito qualificados e uma estrutura muito moderna e custosa. Então são fatores que influenciam para a dificuldade em criar e manter centros de reprodução assistida públicos no Brasil — afirma Mychelle, que trabalha no único centro do SUS que atende as regiões Norte e Nordeste.

Os planos de saúde também não são obrigados a cobrir os tratamentos, segundo decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o que leva a grande maioria das pessoas a arcarem com as despesas dos procedimentos. Elas podem variar de R$ 5 mil a até mais de R$ 50 mil, dependendo do método e da situação da paciente.

— A acessibilidade é a principal barreira hoje. Segundo a constituição, o direito da reprodução está junto com o planejamento familiar, então a fertilidade é um direito de cada cidadão brasileiro. E a infertilidade é uma doença como outra qualquer, essas pessoas precisam de acesso a tratamento. Levando em consideração a prevalência de 1 para 6, nós estamos muito longe de oferecer, mesmo com a rede privada, tratamento para a grande maioria dos casais que têm dificuldade para engravidar — diz Penna, professor da UFF.