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Equilibrar economia, meio ambiente e sociedade. Artigo de Marcus Eduardo de Oliveira

Equilibrar economia, meio ambiente e sociedade. Artigo de Marcus Eduardo de Oliveira

“Equilibrar economia (sistema de produção), meio ambiente (matriz de tudo) e sociedade (comunidade social) é a condição, nada simples, como se sabe, exigida para uma vida digna de todos os seres vivos do planeta. Desse desafio, não podemos declinar”, escreve Marcus Eduardo de Oliveira, economista e ativista ambiental. Autor de Economia destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018).

Eis o artigo.

A carga pesada que impomos ao planeta, e isso está longe de ser simples, não apenas desorganiza os sistemas ecológicos globais, mas transforma a capacidade de suporte do planeta, ou seja, modifica a capacidade do ecossistema global, afetando todas as cadeias produtivas. Por trás disso, a lógica de sempre: para sustentar toda a humanidade, é preciso 1,7 planetas. O outro nome disso? Sobrecarga da Terra, ou dívida ecológica, vale dizer, o uso irracional de água, solo, matérias-primas, enfim, recursos da natureza indispensáveis ao projeto civilizacional.

Seja como for, por conta de nossos excessos afetamos a biodiversidade (nosso suporte vital), a preservação do clima, os habitats, o ciclo de nutrientes e assim por diante. Desde há muito, não é segredo, temos nos especializado em fazer o planeta arder. Sem meias palavras, “não estamos indo ao encontro do aquecimento global e da mudança de regime climático. Já estamos dentro”, resume Leonardo Boff. Por sua vez, Alberto Acosta, economista equatoriano, faz questão de dizer que “não é mudança climática, é colapso climático”.

Dito isso e partindo de um quadro mais amplo, à medida que o planeta arde de vez e compromete as funções e capacidades dos ecossistemas, atingimos as bases naturais para a nossa própria sobrevivência. Produto direto de nossas ações, agora somos ameaçados pela crise que nós mesmos provocamos e que temos agravado. O detalhe ardiloso é que tudo acontece em velocidade assustadora e em curto espaço de tempo. Perto dos quatro bilhões e meio de anos da Terra, nós, Homo sapiens-sapiens (vale lembrar que não temos nem meio milhão de anos de existência) já provocamos considerável modificação no Lar Planetário de tudo e todos os que vivem.

Pelo sim, pelo não, na batalha pelo amanhã (sempre um ingrediente preocupante), ao acomodar o dominante discurso econômico de que é preferível um crescimento acelerado num mundo finito, a degradação dos ecossistemas e o descompasso climático já afetam – e da pior maneira possível – o desempenho da vida de 40% da população mundial.

Ora, é o sistema-vida que está em risco. Observemos o relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS): [1] “mais de 12 milhões de mortes no mundo estão relacionadas à crise climática provocada pela ação humana no planeta”. A Health Effects Institute, [2] que igualmente emite constantes alertas para os níveis de poluição global, especialmente do ar, nos informa que mais de 95% da população mundial respira um ar que não é seguro, conforme as medições dos Padrões de Qualidade do Ar da Organização Mundial de Saúde (OMS). A pior parte, note-se, é verificar que a poluição do ar ainda mata (todos os anos[!]) mais de 7 milhões de pessoas em todo o mundo. [3] São inaceitáveis 15 mil mortes por dia. Na Europa, contam-se 300 mil mortes por ano (dados da EEA, European Environment Agency). No Brasil, cinquenta mil (conforme seguidos alertas da Organização Mundial de Saúde, OMS).

Embora seja desnecessário enfatizar, no fundo estamos falando de um mesmo e infeliz assunto: degradação ecológica, devastação ambiental, colapso ecossistêmico. E, claro, com uma série de efeitos: acidificação, contaminação, poluição, esgotamento, descarte, detritos. Tudo em grande escala. Nunca, antes, havíamos produzido tanto e variado lixo, por exemplo.

Fiel às evidências consistentes, Aílton Krenak [4] enfatiza em providencial tom de crítica que “o Antropoceno está acumulando tanto lixo, tanto estrago, que deixou o mundo adoecido”. Agora mesmo, para espanto geral, além desse lixo comum em escala exorbitante, conseguimos a proeza de desencadear um processo que culmina numa extensa nuvem de lixo espacial, a chamada sujeira espacial (detritos orbitais).

No todo, embora ignorado por influentes forças pró-mercado, é fácil perceber aí a mais relevante questão de fundo: há limites planetários (em essência, significa perguntar até onde podemos ir com o avanço da economia) que também servem para nos avisar que não podemos ultrapassá-los sob o risco de romper o equilíbrio natural e acentuar a mais grave crise do meio ambiente.

Ocorre que, das nove fronteiras fundamentais que regulam a estabilidade e a resiliência da Terra, definidas (desde 2009) com bastante precisão pelo Centro de Resiliência de Estocolmo, ao menos quatro delas [5], até o momento, já foram ultrapassadas. As consequências são igualmente conhecidas: para atender o modo de produção capitalista, o aumento da sobrecarga da Terra (Earth overload), quer dizer, a exploração direta e abusiva da natureza e dos recursos naturais, abala os sistemas naturais (ecossistemas terrestres e aquáticos).

Por estranho que pareça, romper com os limites planetários que dizem respeito à mudança climática, à diminuição da camada de ozônio, às mudanças do solo, ao consumo de água doce, ao ciclo do nitrogênio e do fósforo, à manutenção de biodiversidade, aos aerossóis, à poluição química, à acidificação oceânica, é deixar em situação-limite a ordem ecológica planetária, afastando para bem longe a articulação pela sustentabilidade.

Na dúvida, atente-se aos fatos contundentes. Está previsto que até 2100 50% de todas as espécies podem ser extintas, apesar de a biodiversidade ser essencial para a produção do ciclo de vida. De forma semelhante, é esperado que ondas de calor extremo e de inundações (tempestades severas) se multipliquem com certa frequência.

De forma ultrassimplificada, fica aqui a real moral da história: “No que diz respeito à crise climática, sim, chegou a hora de entrarmos em pânico. […] Estamos numa encrenca”, [6] sentencia Raymond Pierrehumbert, um dos principais autores (cientistas) do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2018.

No sentido mais comum do termo, boa parte dessa encrenca, ensina o próprio ambientalismo crítico, [7] se amplifica porque, em termos de escala de uso de recursos da natureza, atingimos uma situação desconexa que deixa a ideia de mundo ecologicamente suportável parecendo valor dispensável.

De novo: a partir dos interesses do capital e das gigantes oligarquias, tudo o que mais importa, ontem, hoje e sempre, é manter o dinamismo da economia, aliar a prosperidade ao crescimento e estimular o modelo de produção de vida capitalista. E como esse modus requer ainda mais exploração insustentável dos recursos da natureza (maior pressão sobre os ecossistemas, dá na mesma), não se pode perder de vista que “ainda não estamos prontos para admitir que a destruição da natureza é consequência não de erros de política, que podem ser remediados por meio de gestão mais inteligente, melhor tecnologia e regulamentação mais rigorosa, mas de um fracasso moral catastrófico, que exige uma mudança radical de consciência”. [8]

Frente ao nosso antropocentrismo dominador (sinônimo de nossas necessidades crescentes, admitamos), jamais podemos nos considerar como ecologicamente corretos. Logo, a fenda que se abre aqui é imensa. Ainda há um abismo a nos separar da ideia de consciência ecológica. E se é verdade que “para a economia, a natureza sempre foi o reino da abundância,” [9] seguir de perto essa lógica dominante apenas comprova que fomos doutrinados a pensar a economia global à base do quanto maior, melhor, ignorando no curso dos acontecimentos que os principais recursos do mundo vivo não são inesgotáveis.

Ecologicamente falando, é bastante óbvio que isso tem um custo (de deterioração do meio ambiente) elevado. A começar pelo solo que nos dá o alimento que costumeiramente recebe quantidade excessiva de substâncias químicas, principalmente nutrientes em forma de nitrogênio. Os números mostram que, entre 1961 e 2019, enquanto a produção global per capita de alimentos aumentou em 30%, o uso de fertilizantes à base de nitrogênio cresceu inacreditavelmente oitocentos por cento. Agrotóxicos, química pura usada para matar insetos, larvas, fungos e carrapatos, é a palavra que não sai de moda. Calcula-se hoje em dia que o mundo todo esteja usando aproximadamente 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos todos os anos. O Brasil, de acordo com relatório divulgado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), despeja em suas lavouras mais de um milhão de toneladas de agrotóxicos. De uma maneira mais grosseira, isso representa, em média, cinco quilos de veneno agrícola por pessoa.

Mas tem mais ainda. No sentido tradicional, o conhecimento científico aponta que “63% dos 89 recursos não renováveis que possibilita a existência da sociedade industrial de alta tecnologia já tinham se tornado globalmente escassos em 2008”. [10] Hoje em dia, “18 dos 31 ´sinais vitais´ do planeta, incluindo as emissões de gás com efeito estufa, a espessura das geleiras e o desmatamento, já alcançaram níveis recordes preocupantes”. [11] Isso quer dizer que, junto ao modelo econômico que determina destinos humanos, interferimos nos fluxos biogeoquímicos dos quatro elementos mais importantes na química da Terra, a água, o carbono, o nitrogênio e o fósforo.

Em outras palavras, ao contrário do que diz a dominante ideologia do capitalismo que desdenha dos limites ecológicos, fica claro que o atual modo econômico global se tornou ferrenho adversário do clima equilibrado. Além do mais, é uma ilusão pensar que com esse sistema, contrário à recuperação ambiental, sairemos da crise ambiental global. Não, não sairemos! Mantidas as condições do momento, esse sistema, adverso à governança da vida, tende a aprofundar a situação de crise. Convém não esquecer que foi com esse mesmo sistema que até hoje se degradou 15 de 24 serviços ambientais (água, ar limpo, climas regulados, solos e assim por diante) essenciais para a vida, conforme a Avaliação Ecossistêmica do Milênio. Também não é segredo, nessa mesma perspectiva, que o atual modelo de produção capitalista dominante não funciona para a esmagadora maioria. À luz dos paradigmas dominantes, “40% da população mundial ainda usa lenha como principal combustível” [12]. Num mundo que produz comida suficiente para o conjunto humano, quase 2,5 bilhões de pessoas, especialmente em diversas partes do Sul Global (onde reside 79% da população do mundo), têm dificuldade em se alimentar corretamente.

Considerando as evidências, a organização humanitária Oxfam estima 11 mortes por minuto, no mundo todo, devido às consequências da fome. [13] Mais de 1 bilhão de pessoas vivem em favelas no mundo inteiro; [14] mais de 2,5 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável; [15] mais de 4,2 bilhões de pessoas vivem sem acesso a saneamento básico. [16]

A partir dessa perspectiva, soa a inevitável conclusão de que “a sorte da humanidade está ligada à integridade de seu meio de vida”. [17] Em outros termos, vida humana e qualidade ambiental são valores inseparáveis. Um depende do bom comportamento do outro. Aliás, o Conselho de Direitos Humanos da ONU já reconheceu que ter o meio ambiente limpo e saudável é, conclusivamente falando, um direito humano.

Para todos os efeitos, resta, a priori, a mudança mais profunda em nossa velha sociedade, em nosso histórico e insustentável estilo de vida ocidental: equilibrar nosso nível de consumo com a capacidade de suporte do planeta.

Equilibrar economia (sistema de produção), meio ambiente (matriz de tudo) e sociedade (comunidade social) é a condição, nada simples, como se sabe, exigida para uma vida digna de todos os seres vivos do planeta. Desse desafio, não podemos declinar.

Notas

[1] Disponível aqui.

[2] Disponível aqui.

[3] Conforme estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), que atualiza suas diretrizes para a qualidade do ar desde 2005.

[4] Cf. Aílton Krenak, Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 85.

[5] A saber: as fronteiras de mudanças climáticas, de perda de integridade da biosfera, de mudança do sistema terrestre e de alteração de ciclos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio).

[6] Recolhido de Noam Chomsky & Robert Pollin. Crise Climática e o Green New Deal Global. Rio de Janeiro: Roça Nova, 202, p. 21.

[7] E injustamente sobre eles, os ambientalistas críticos, têm recaído a pecha de serem portadores de um discurso apocalíptico.

[8] Cf. William Ophuls, A vingança de Platão. São Paulo: Edições SESC, 2017, p. 39.

[9] Cf. René Passet, Elogio da globalização por um contestador assumido, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 69.

[10] Cf. Sylvia Lorek. “Desmaterialização”, (Verbete 17), in Decrescimento – vocabulário para um novo mundo. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2016, p. 124.

[11] Cf. publicado em BioScience, jun. 2021.

[12] A OMS declara, sem cerimônia, que a queima de madeira e carvão em casa mata 2 milhões de pessoas por ano. Segundo o Grupo de Intermediação do Desenvolvimento Tecnológico (ITDG, na sigla em inglês), a fumaça dentro de casa mata mais gente do que a malária e quase tantas quanto à água contaminada e a falta de saneamento básico

[13] Segundo o relatório “O vírus da fome se multiplica”, de 2021, elaborado pela própria Oxfam, cerca de 155 milhões de indivíduos vivem atualmente sob níveis extremos de insegurança alimentar. Disponível aqui.

[14] Destaca a ONU: um a cada oito habitantes do planeta Terra vive em favelas ou casas inadequadas, feitas de materiais poucos resistentes, sem acesso a água e esgoto e com mais de três pessoas por cômodo. Atualmente 8% dos brasileiros, ou 17,1 milhões de pessoas, vivem em moradias precárias, sem infraestrutura. Segundo o projeto MapBiomas, de 1985 a 2020, a área de favelas no Brasil aumentou 11 vezes a área de Lisboa, capital de Portugal, que possui 100 km quadrados.

[15] Relatório divulgado conjuntamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o UNICEF, com base de dados de 2017.

[16] Todos os dias, em diferentes partes do mundo, morrem mais de 800 crianças, geralmente entre 0 e 5 anos, devido à falta de esgoto tratado.

[17] Cf. Bernard Perret, O capitalismo é sustentável?, 2008, p. 13.