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Dia da Terra – a natureza e o direito de existir, prosperar e se regenerar

Dia da Terra – a natureza e o direito de existir, prosperar e se regenerar

Visão de que a natureza é um “bem” a serviço dos homens perde força, e países, estados e municípios concedem a rios, florestas e outros ecossistemas status de “sujeitos de direito”

Em dezembro de 2021, a Corte Constitucional do Equador, equivalente ao Supremo Tribunal Federal do Brasil, fez história ao proibir mineração na floresta de Los Cedros. A sustentação foi de que a exploração industrial violaria os “Direitos da Natureza”. Com cerca de 4.800 hectares de floresta tropical, a área protegida e de rica biodiversidade no nordeste do país concentra espécies ameaçadas, como a onça-pintada, o urso-de-óculos e o macaco-aranha-marrom.

A decisão foi aplaudida por representar uma grande vitória do ambiente natural. Em 2008, o Equador tornou-se o primeiro país do mundo a garantir em sua Constituição Federal os direitos da natureza. “A natureza ou Pachamama onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”, diz um trecho da Artigo 72 da carta magna equatoriana.

Apesar de gravada em papel na lei suprema do país, o governo fazia vista grossa para a decisão, e continuava outorgando concessões para exploração de petróleo e mineração. As atividades causaram danos pesados ao ambiente natural e acarretaram conflitos com moradores locais atingidos pelo avanço da perfuração e extração de recursos, tal como acontece no Brasil e em outras partes do mundo.

Tanto que a estatal equatoriana Enami tinha o direito de exploração de mais de 50% da área da reserva biológica. Ações judiciais contra os projetos ocorriam frequentemente, mas não eram admitidas ou eram ignoradas. Até que três organizações não governamentais mobilizaram um forte engajamento público para barrar os projetos. A Earth Law Center, o Global Alliance for the Rights of Nature e o Center for Biological Diversity – entraram com uma petição na Corte para garantir a efetivação do direito previsto na constituição.

De forma inédita, em 1º de dezembro, a justiça equatoriana ordenou que as licenças ambientais, concessões e uso de água da região para a mineração fossem canceladas. “Este tribunal declara como violados os direitos da floresta protegida Los Cedros, e violados também os direitos da natureza, da água, de meio-ambiente saudável”, cravaram os juízes.

Celebrada por ambientalistas, a decisão repercutiu negativamente entre o setor privado ligado a atividades extrativistas, temerosos das potenciais limitações à expansão dos seus negócios e ao que consideraram um golpe na segurança jurídica dos contratos de mineração. Vieram à tona, por exemplo, argumentos sobre a necessidade de se ter previsibilidade em relação ao arcabouço legal e sobre os prejuízos à imagem do país e aos investimentos internacionais na mineração no país.

Pesa o fato da decisão da Corte Constitucional do Equador ter se dado dias após o governo do presidente Guillermo Lasso conceder US$ 30 bilhões em projetos, incluindo 14 empreendimentos de mineração, a investidores estrangeiros no evento Ecuador Open for Business.

Mudanças de perspectivas e valores nem sempre são fáceis de assimilar, especialmente quando põem em xeque a ideia de que a natureza é um “bem” a serviço da espécie humana. Mas é a superação desse paradigma que tem motivado países, estados e municípios pelo mundo a conceder à natureza o status de sujeito de direito.

O antigo edifício do Antropocentrismo corrói

A perda de biodiversidade, a desertificação, as mudanças climáticas e a interrupção de vários ciclos naturais estão entre os custos de nosso descaso com a natureza e a integridade de seus ecossistemas e processos de suporte à vida. Esse histórico de danos e impactos provocados pela espécie humana de certa forma contribui para a ascensão do pensamento de que a natureza também tem direitos que vão além do valor monetizável, estético, cultural ou social que atribuímos a ela.

Esse é um debate que começou no circulo acadêmico da antropologia e filosofia mas que ganhou propulsão na comunidade do direito ambiental após países como Equador e Bolívia – países de forte tradição dos povos originários da América Latina – reconhecê-los. Em março deste ano, o Chile reconheceu no artigo 9 do anteprojeto da sua nova Constituição que “os indivíduos e os povos são interdependentes com a Natureza e formam um todo inseparável […] e que “a natureza tem direitos e que o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los”.

De acordo com as Nações Unidas, 37 países já incorporaram esta questão de alguma forma em nível oficial e institucional. Na Colômbia, Índia, Nova Zelândia e Canadá, rios e florestas também ganham status de “personalidade jurídica” e batem às portas da justiça para fazer valer seus direitos. No Brasil, cidades como Bonito (PE), Paudalho (PE) e Florianópolis (2019) reconhecem os direitos da natureza em sua lei orgânica. Há projetos semelhantes correndo no legislativo de São Paulo (SP) Fortaleza (CE), Salvador (BA), Caitité (BA), Palmas (TO), e Anchieta (SC).

Humanos e o Planeta Terra:  na perspectiva Ecocêntrica, a natureza tem valor intrínseco e existe para si mesma, não podendo ser reduzida a um objeto útil em benefício do homem. — Foto: GettyImages

Humanos e o Planeta Terra: na perspectiva Ecocêntrica, a natureza tem valor intrínseco e existe para si mesma, não podendo ser reduzida a um objeto útil em benefício do homem. — Foto: GettyImages

“Considerar a natureza como um sujeito de direito significa que um rio ou uma árvore podem ser um sujeito em uma ação judicial. Podemos usar o exemplo de um bebê, que, embora não entenda o que está acontecendo no mundo, tem uma série de direitos civis que podem ser demandados na justiça e alguém pode representá-lo para que esses direitos possam ser garantidos”, explica André Castro Santos, geógrafo, especialista em direito ambiental e membro da Latin American Climate Lawyers Initiative (LACLIMA).

Na prática, ao considerarmos a natureza um sujeito de direito, um rio, uma árvore, o solo e até o ar podem entrar na justiça para demandá-los. “Um dos casos clássicos é o rio que entra na justiça e a empresa é obrigada a pagar uma indenização ou fazer algo para reparar a poluição feita. A ação não é a favor das pessoas que foram impactadas pela poluição, mas o rio estar poluído em si faz com que alguém representando esse rio possa pedir uma reparação ou uma indenização para o corpo hídrico”.

Essa visão rompe com o paradigma Antropocêntrico predominante nas sociedades humanas e se aproxima da perspectiva Ecocêntrica, onde a natureza tem valor intrínseco e existe para si mesma, não podendo ser reduzida a um objeto útil em benefício do homem. “Agora, a própria natureza ser prejudicada já causa um direito de ação em si. O meio ambiente deixa de ser visto como um mero produto ou matéria-prima, e passar a ter valor em si e não só pelo que ele pode fornecer para o ser humano”, acrescenta André.

O olhar integrativo do Ecocentrismo

Apresentada durante a ECO-92 no Rio de Janeiro, a inspirada Carta da Terra, declaração da ONU com princípios éticos fundamentais para a construção de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica no século XXI, já bebia da visão ecocêntrica. O seu primeiro princípio aponta nessa direção: “Respeitar e cuidar da comunidade da vida”, o que implica “reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos”. Esse olhar mais integrativo para o ambiente tem sido incorporado em uma série de ações pelo mundo e mobilizado todas as gerações.

Em 2020, um grupo de crianças representadas por seus pais e pelas ONGs Fórum Ecológico do Paraná e Associação Civil de Justiça Ambiental (AJAM) ajuizou uma ação de proteção às áreas úmidas do Delta do Paraná perante o Supremo Tribunal de Justiça afirmando que “o Delta do Paraná vive, respira, se desenvolve, pulsa, sente”. O texto reconhecia a importância de um meio ambiente equilibrado para o sustento da vida humana na Terra, mas dava um passo maior: “Nossa petição vai além da exigência do direito de viver em um ambiente saudável, vai além do direito a um ambiente saudável dos cidadãos que habitam esses territórios, vai além das doenças que nos afetam em nosso ambiente, nossa vida, nossa saúde, o Delta tem vida própria e está sucumbindo”.

Os Direitos da Natureza baseiam-se no reconhecimento de que a humanidade e a natureza compartilham uma existência com o planeta, tema que tem ganhado atenção em diferentes fóruns nacionais e internacionais. Em 2009, ao proclamar o dia 22 de abril como o Dia Internacional da Mãe Terra, as Nações Unidas afirmaram que o Planeta seus ecossistemas são a nossa casa comum e expressaram a convicção de que é necessário promover a chamada “Harmonia com a Natureza”.

Olhar que integra: visão da natureza como “bem” a serviço dos homens perde força, e países, estados e municípios concedem a rios, florestas e outros ecossistemas status de "sujeitos de direito" — Foto: Liia Galimzianova/GettyImages

Olhar que integra: visão da natureza como “bem” a serviço dos homens perde força, e países, estados e municípios concedem a rios, florestas e outros ecossistemas status de “sujeitos de direito” — Foto: Liia Galimzianova/GettyImages

De lá pra cá, a ONU publicou 12 resoluções para a construção de um novo paradigma não antropocêntrico, reafirmado no documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (2012), intitulado O futuro que queremos: “Reconhecemos que o planeta Terra e os seus ecossistemas são a nossa casa e que a ‘Mãe Terra’ é uma expressão comum em vários países e regiões, e notamos que alguns países reconhecem os direitos da natureza no contexto da promoção do desenvolvimento sustentável.”

Neste ano, em celebração ao Dia Internacional da Mãe Terra (22 de abril) a Assembleia Geral da ONU em NY realiza um painel para debater a evolução dessa visão dentro da jurisprudência mundial.

Direitos constitucionais nem sempre equivalem a direitos respeitados

A mudança de perspectiva do antropocentrismo ao ecocentrismo nos relembra a todo instante que as questões éticas surgem não apenas no nível do indivíduo, mas também no âmbito das instituições e práticas sociais. Inverter o eixo do sistema de valores centrado no ser humano para um centrado na natureza é um desafio e tanto, haja vista as atuais falhas na efetivação de direitos dos próprios humanos, incluindo aí a garantia ao meio ambiente equilibrado e saudável.

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, determina o artigo 225 da Constituição Federal do Brasil. A persistente série de violações a esse direitos e deveres, intensificada no atual governo, levou à iniciativa histórica do STF de julgar um pacote de sete ações contra práticas que negligenciam o meio ambiente, os povos indígenas e promovem o avanço do desmatamento e outras ilegalidades na floresta.

“O Brasil sempre dispôs de um amplo acesso à Justiça para defesa da natureza e nossa Constituição foi muito inovadora quando em 1988 atribuiu o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Desde então, Ministério Público, associações do terceiro setor, partidos políticos, defensorias públicas, todos esses órgãos são legitimados a ir ao judiciário defender o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, ressalta Rômulo Sampaio, Dr. em Direito Ambiental pela Pace University (EUA) e sócio do escritório de advocacia Mattos Filho.

Se o Brasil constitucionalizasse o direito da natureza, o ganho não seria em facilitar o acesso à defesa desses direitos, mas na interpretação da aplicação do direito em si, sem a necessidade de haver um link em entre natureza e bem estar humano, pois passaríamos a valorizar o equilíbrio natural de forma autônoma. Essa interpretação, segundo o especialista, já é adotada por muitos acadêmicos e juristas respeitáveis no país e também está ligada à ideia de que os animais são seres sencientes, dotados de sensibilidade.

“A Constituição de um país comunica valores à sociedade, então reconhecer os Direitos da Natureza é comunicar um valor”, define. Mas adverte: “Juridicamente falando, [o reconhecimento] pode até acrescentar uma camada extra de proteção ao ambiente, além de sinalizar uma política de estado, mas é importante ressaltar que o papel aceita tudo, o desafio é efetivar”, pondera. A ponderação é de que é possível, por exemplo, ter um país que reconhece a natureza como um sujeito de direito na Constituição, mas tem um ambiente mais degradado que um país que não tem o direito ambiental constitucionalizado.

“Meio ambiente precisa ser política de estado. Sem isso, há déficits de estruturas de gestão por falta de uma maior blindagem institucional. Quando a gente dá essa relevância institucional para temas que são importantes, a gente transforma a pauta em mais de estado e menos de governo, e passamos a pensar em políticas de longo prazo e que deem efetividade aos valores que temos na Constituição Federal”, diz, acrescentando que o Congresso brasileiro deveria refletir mais a diversidade cultural do país equivalente as suas dimensões continentais a fim de garantir discussões e decisões com mas seriedade e pluralidade.

Em termos práticos, constitucionalizar a natureza também pode fazer com que os projetos de infraestrutura e desenvolvimento que competem pelos ativos da natureza tenham padrões maiores para poder operar visando a responsabilidade socioambiental, segundo ele. “No atual cenário, elevar a barra é como um instinto de autopreservação, principalmente para países em desenvolvimento que vivem de venda da natureza. O Brasil, como não investiu em educação, só se tornou uma das maiores economias do mundo graças ao poder da nossa natureza. Mas se a gente não elevar a barra de efetividade de proteção e preservação, inclusive das nossas divisas, a gente vai encontrar barreiras”.

Ele também chama atenção para os “efeitos sistêmicos” das crises ambientais e climáticas, como o declínio acelerado da biodiversidade, que pode culminar em crises socioculturais e econômicas — até mesmo guerras – e aprofundar outra crise emergente de nosso tempo – a da Saúde, com a eclosão de novas pandemias. Lembra ainda que as regras de proteção ao meio ambiente eram praticamente inexistentes até o final das duas Guerras Mundiais. “Tá tudo mudando e mudando rápido, pois estamos percebendo que está tudo interconectado”, observa.

Quais as implicações disso para os negócios e governos? “Recentemente ouvi o Fábio Barbosa, um dos empresários pioneiros na valorização do meio ambiente, falando uma frase que não sai da minha cabeça: ‘Nós seremos julgados daqui a vinte anos pelo que fizemos hoje com as regras que existirão daqui a vinte anos’. O recado que ele dá aos empresários que aconselha é o de que cuidado com o que você faz hoje porque as regras que vão ser aplicadas no futuro ainda não existem”, responde.

Da letra à prática

Desde a revolução industrial, a natureza tem sido tratada como uma mercadoria que existe em grande parte para o benefício das pessoas, e os problemas ambientais têm sido considerados como solucionáveis através do uso da tecnologia. É necessário conceber um modelo mais sustentável de produção, consumo e economia como um todo. Garantir direitos da natureza na Constituição não é sinônimo de materialização dessas demandas, segundo os especialistas. Da letra de lei à prática que garanta a sua efetividade há um caminho longo, que os próprios direitos humanos vêm há tempos percorrendo.

“Com relação à justiça equatoriana, o reconhecimento dos direitos da natureza não resolveu o conflito entre a natureza-objeto e a natureza-sujeito, temos até mesmo registrado manipulação estatal desses direitos quando eles são usados para expulsar atividades de mineração irregulares em certos territórios, a fim de abrir o campo para grandes empresas de mineração”, avalia Alberto Acosta, ex-ministro de Energia e Minas e ex-presidente da Assembléia Constituinte do Equador, em artigo na plataforma L21, que reúne análises e opiniões sobre questões políticas, econômicas e sociais na América Latina.

Membro do Grupo Internacional para a Defesa dos Direitos da Natureza, Acosta afirma que a indignação diante destas “aberrações” não deve desencorajar mudanças. “Devemos sempre ter em mente que uma Constituição por si só não muda a realidade, mas pode ajudar a própria sociedade a fortalecer o que ela tem à sua disposição como uma ferramenta poderosa para a cristalização das mudanças que são indispensáveis”.

E destaca que, cedo ou tarde, “a globalização desses direitos seguirá o caminho dos direitos humanos, o que serviu para levar o ditador chileno Augusto Pinochet à justiça e prendê-lo na Europa por seus crimes contra a humanidade”. Como nunca antes na história, o destino comum nos convida a buscar um novo começo. E como em todo início, é preciso coragem para escrever uma nova história — ainda que comece no papel.