Anchor Deezer Spotify

Como a Holanda quer ajudar o Brasil a diminuir o desperdício de comida e melhorar a gestão de resíduos sólidos

Como a Holanda quer ajudar o Brasil a diminuir o desperdício de comida e melhorar a gestão de resíduos sólidos

País europeu lançou documento com 28 boas práticas para ajudar outras nações a implementarem a economia circular em seus territórios

Enquanto 811 milhões de pessoas passam fome no mundo, um terço da comida é perdida ou desperdiçada. Os dados são do relatório “Waste management as a catalyst to a circular economy” (“Gestão de resíduos como catalisador de uma economia circular”), desenvolvido pelo Ministério de Infraestrutura e Gestão de Água da Holanda e pelo Holland Circular Hotspot. Segundo o material, o desperdício de alimento causa um prejuízo financeiro de US$ 1 trilhão de dólares.

O documento reúne 28 boas práticas de empreendedores e lições aprendidas com autoridades públicas e instituições ativas na gestão de resíduos na Holanda, abordando as áreas de infraestrutura de coleta e gestão de resíduos, triagem, reciclagem e aterro. Também é fornecido um kit de ferramentas para a implantação de um sistema adequado de gestão de resíduos, abrangendo aspectos regulatórios, organizacionais e instrumentos de direção econômica.

“Estratégias de economia circular podem promover soluções desde o começo da cadeia de valor”, diz Jessica Leffers, assessora de Economia Circular do Ministério do Meio Ambiente do Reino dos Países Baixos, em nota. Ela apresentou e entregou o documento durante a Waste Expo, em São Paulo, realizada em novembro.

Considerando que todos os países compartilham os mesmos desafios decorrentes da geração de resíduos e das mudanças climáticas, o objetivo da publicação é auxiliar outras nações, estimular o debate e a ação por meio dos materiais apresentados, promover a colaboração internacional e acelerar o desenvolvimento rumo a uma economia circular, que ainda é incipiente em termos globais – segundo o relatório Circularity Gap 2022, nosso mundo é somente 8,6% circular.

“A parceria, tanto no setor de resíduos sólidos quanto em diversos segmentos da cadeia produtiva, permite que tragamos um olhar diferenciado para o que está sendo feito no Brasil, um novo mindset de negócios. O caso da Holanda mostra que é preciso trocar uma visão de gastos por uma de investimentos, para aprender mais sobre o funcionamento do ecossistema e integrar toda a cadeia na gestão efetiva e sustentável dos resíduos”, afirma Beatriz Luz, fundadora da Exchange 4 Change Brasil (E4CB) e diretora do Hub de Economia Circular Brasil, em entrevista ao Um Só Planeta.

Jessica Leffers, assessora de Economia Circular do Ministério do Meio Ambiente do Reino dos Países Baixos, entrega documento holandês com recomendações de gestão de resíduos sólidos para Marcio Henriques, do BNDES, durante Waste Expo  — Foto: Exchange 4 Change Brasil

Jessica Leffers, assessora de Economia Circular do Ministério do Meio Ambiente do Reino dos Países Baixos, entrega documento holandês com recomendações de gestão de resíduos sólidos para Marcio Henriques, do BNDES, durante Waste Expo — Foto: Exchange 4 Change Brasil

A E4CB, organização que orienta a transição para a economia circular no país, será responsável por adaptar as soluções holandesas para o contexto nacional. “Aqui no Brasil, ainda faltam políticas públicas e infraestrutura, e temos questões importantes sobre diversidade e inclusão social. Falta uma governança mais qualificada, essa é a palavra mágica”, avalia Beatriz, citando a recomendação holandesa de haver um ator independente, chamado de agente da transição, para integrar as opiniões de variados atores, coordenar diferentes interesses e promover uma agenda comum – papel a ser cumprido pela E4CB. “A proposta é ir além de uma governança pública e provocar uma redefinição de papéis e responsabilidades.”

O trabalho será feito em parceria com empresas e instituições, que é uma das premissas da economia circular. “Este ano, nós lançamos o Manifesto para a Transição Circular, que já foi assinado pelas empresas que fazem parte do Hub-EC e está no radar de assinatura de várias entidades. Estamos fechando parcerias com a indústria e com produtores do setor agrícola, gestores de resíduos e institutos de ciência e tecnologia, para conseguir ampliar o conhecimento sobre o tema no Brasil e dar, juntos, escala às soluções”, diz Beatriz.

O poder público também está envolvido na transição para a economia circular no Brasil. “Como parte do reposicionamento do BNDES como banco do desenvolvimento sustentável do Brasil, nosso planejamento estratégico passa a incorporar, a partir do ano que vem, a temática da economia circular, o que tende a ter reflexos em nossos produtos e serviços oferecidos”, disse Marcio Henriques, gerente do departamento das Indústrias de Base do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ao receber o documento holandês.

Realidade holandesa

Na Holanda, o processo rumo ao lixo zero começou na década de 1970, quando a gestão de resíduos foi colocada estruturalmente na agenda administrativa. “Na década de 1990, ocorreu uma transição no setor de resíduos, de uma atividade de pequena escala, ineficiente e organizada regionalmente para a prática atual: um setor profissionalizado, internacionalizado e cada vez mais inovador”, informa o documento.

Atualmente, cerca de 81% dos resíduos são reciclados, 16% são incinerados e apenas 2%-3% são depositados em aterros. Isso é possível porque “a Holanda aprendeu como reunir vários atores da cadeia produtiva para mudar o modo como lidam com os resíduos”, conta Beatriz.

Em um caso emblemático, o setor têxtil holandês se organizou para investir numa mesma tecnologia de reciclagem, possibilitando assim dar escala ao processo. “Não podemos alocar investimentos apenas na tecnologia, precisamos fortalecer a infraestrutura de coleta do material e criar incentivos para viabilizar o mercado de matéria-prima secundária”, explica a empreendedora. No setor de alimentos na Holanda, muitos resíduos do agronegócio são usados para fazer papel, fibras têxteis e materiais de construção, além de ser comum o processamento para produção de biogás. No setor da construção civil, há acordos assinados para reutilização de cimento e concreto.

Para o futuro, a Holanda tem dois grandes objetivos: reduzir em 50% o uso de matérias-primas não renováveis, como minerais, combustíveis fósseis e metais até 2030, e ter uma economia 100% circular em 2050.

Assine aqui a nossa newsletter

Li e concordo com os Termos de Uso e Política de Privacidade.

Cadastrar meu email

Próximos passos no Brasil

 

Beatriz comenta que a construção de soluções práticas para a economia circular no Brasil, reunindo diferentes atores, já está sendo feita, em parte, por meio do Hub de Economia Circular Brasil, que foi criado pela E4CB para integrar empresas de diversos setores e portes e romper paradigmas. Em 2023, a entidade pretende avançar com o hub, anunciar projetos, novas parcerias e divulgar os resultados do primeiro ciclo – recentemente, aliás, ela participou do estudo “Destravando o Financiamento da Economia Circular e Caribe”, da UNEP FI (Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). “Um dos nossos focos agora é auxiliar o mercado a pensar nos instrumentos financeiros que o Brasil precisa para acelerar a transição, bem como participar do desenvolvimento de políticas públicas nesse sentido”, conta Beatriz.

Ela avalia que o Brasil ainda está longe de ter metas quantitativas claras de gestão de resíduos. “A Europa tem mostrado que as metas de reciclagem e reúso não podem ser muito altas, porque é fundamental uma integração de vários atores para se chegar a uma mudança significativa. Eu diria que não podemos falar ainda de expectativas de redução, mas que é hora de termos uma expectativa de aumento da reciclagem, porque as empresas nunca estiveram tão ambiciosas neste sentido como agora. No entanto, só vão conseguir bater as metas se aumentarmos bastante a infraestrutura e estabelecermos uma visão sistêmica para as soluções.”

Outro desafio no setor de resíduos sólidos no Brasil é o dos municípios pequenos, que não têm escala nas soluções de gestão de resíduos. Uma discussão crítica é sobre o encerramento de lixões e como é possível unir vários municípios pequenos para compartilharem orçamentos e desenvolverem projetos de gestão em parceria.

Buscando avançar essa agenda no país, em 2024 o Brasil vai sediar o Brazilian Circular Economy Hotspot, iniciativa de promoção da transição circular que foi realizada pela primeira vez na Holanda, em 2016, e seguiu como forma de promover a troca de conhecimento e experiências práticas para vários países da Europa nos anos seguintes. Agora, com foco na América Latina, a E4CB foi a organização selecionada para realizar o evento pela primeira vez no Brasil, reunindo governo, academia e empresas. No momento, a entidade está avaliando as opções para a cidade-sede e reunindo parceiros estratégicos para o evento.