Anchor Deezer Spotify

Autismo: uso do cordão de girassol cresce no Brasil; entenda o que é

Autismo: uso do cordão de girassol cresce no Brasil; entenda o que é

É um pedido de mais empatia’, conta mãe de criança autista que trouxe associação internacional responsável pelo projeto para o país

Flavia Callafange, moradora de Santiago, no Chile, estava habituada a enfrentar situações desagradáveis ao viajar com a filha para o Rio de Janeiro, onde vivem seus pais. Pelo fato de Felícia, hoje com 13 anos, ter autismo, algumas atitudes da menina fugiam ao esperado por outros passageiros, o que muitas vezes levava a reações agressivas e desagradáveis, e até mesmo a repreensões à Flavia pelo comportamento da pequena.

— Ela não tem muito filtro, então algumas atitudes podem parecer grosseiras. Ela às vezes corre, grita, pergunta coisas sem sentido. Então as pessoas reclamavam, xingavam, falavam “que menina mal educada, cadê a mãe dessa garota?” Já escutei de tudo que você pode imaginar, tive brigas dentro do avião para defendê-la. Porque, por ignorância, é muito fácil você julgar, mas ninguém sabe o que cada um vive — diz ela.

Porém, o simples uso de um cordão diferenciado pela Felícia mudou a vida de Flavia. Em uma dessas vindas ao Brasil, em janeiro deste ano, a companhia aérea ofereceu o chamado colar de girassol, que, com um fundo verde e estampa feita com desenhos da flor, tem crescido no mundo para simbolizar pessoas com autismo e deficiências ocultas – como Síndrome de Tourette, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), demência, entre muitos outros.

— A viagem foi totalmente diferente de todas que já fizemos, as pessoas foram mais empáticas. Acredito que gera um pouco de ternura por parte dos outros em compreender que a situação ali é diferente — conta.

É uma mensagem que diz ‘por favor, tenha paciência, me dê um pouquinho mais de tempo’. É um pedido para que as pessoas sejam mais empáticas, um detalhe para muita gente, mas que faz toda a diferença para quem vive

— Flavia Callafange, mãe da Felícia, de 13 anos, que tem autismo

O impacto foi tanto que Flavia buscou a organização responsável pela criação do colar, e por difundi-lo pelo mundo, a Hidden Disabilities (HD) Sunflower (Girassol de Deficiências Ocultas, em tradução livre). Conversa vai, conversa vem, e ela decidiu embarcar nessa jornada e trocar o emprego em uma empresa britânica pelo cargo de diretora para América Latina da organização.

 

Cordão do girassol cresce no mundo como símbolo de deficiências ocultas — Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Cordão do girassol cresce no mundo como símbolo de deficiências ocultas — Foto: Ana Branco / Agência O Globo

— O conceito do HD Sunflower é muito mais robusto, não é só o cordão. Nós abordamos empresas para aderirem ao projeto e distribuírem o colar, mas também oferecemos treinamento, um trabalho de conscientização, para explicar as mudanças no ambiente com o uso do item e como os funcionários devem agir. Aqui no Brasil temos parceria já com o Bondinho do Pão de Açúcar e o Parque da Turma da Mônica. E estamos em contato com o Galeão, com Guarulhos, os aeroportos do país — diz a diretora da HD Sunflower.

E mesmo antes de a associação ter entrado oficialmente em solo brasileiro, a estampa florida já avançava no país. Exemplo disso são estados como Rio de Janeiro, Espírito Santo, Amapá, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Sergipe e Distrito Federal, que já contam com legislações próprias que reconhecem oficialmente o símbolo como de deficiências ocultas. Em âmbito nacional, a Câmara dos Deputados aprovou, em março deste ano, um Projeto de Lei sobre o tema, que segue agora para o Senado.

Entre as pessoas com deficiências, o item tem sido bem recebido, tendo repercutido até mesmo por famosos que têm condições ocultas e falam abertamente sobre nas redes. O influenciador digital e ativista contra o capacitismo (preconceito com pessoas com deficiência) Ivan Baron, que ganhou notoriedade ao subir a rampa do Palácio do Planalto junto ao presidente Lula durante a posse, gravou um vídeo sobre o assunto no fim do ano passado.

— São direitos sendo respeitados e situações constrangedoras sendo evitadas. Por exemplo, a pessoa com deficiência oculta não vai ter que ficar se explicando sobre sua condição, além de receber todas as orientações necessárias e ter também o atendimento prioritário sendo respeitado, coisa que não acontece na maioria das vezes, já que sua deficiência não é visível — disse Ivan no vídeo.

Foi também o caso da miss Chile de 2022, Ambar Zenteno, que busca trazer visibilidade para seu diagnóstico de disautonomia, condição que afeta o sistema nervoso autônomo e pode levar a desmaios ou outras disfunções. Ela já fez postagens nas redes com o cordão, o que chamou de “maravilhosa iniciativa”.

Parceria com doenças raras e necessidade de campanhas

A ativista por direitos das pessoas com deficiências e doenças raras Andrea Medrado, conta que o HD Sunflower firmou uma parceria com o Aliança Rara, grupo que reúne cerca de 90 associações com mais de 500 mil pessoas com diagnósticos de rara incidência no país, para aumentar a visibilidade do acessório no Brasil.

— Em outros países, o colar já é uma realidade, mas aqui no Brasil esse movimento ainda está crescendo. Mas é importante porque, diferente de pessoas com cadeiras de roda, síndrome de Down, existem muitas pessoas com condições invisíveis, mas que também precisam de um cuidado maior, de um olhar mais atento e prioridade — diz ela, que é membro do grupo.

Andrea também é mãe da Maria, de seis anos, que tem autismo e uma síndrome rara chamada Pitt-Hopkins, diagnóstico com apenas 59 casos no Brasil e cerca de mil no mundo. Ela conta que a filha utiliza o cordão no dia a dia, e que a experiência é positiva. Mas destaca que ainda falta uma maior conscientização da população.

— O colar ajuda para as pessoas terem um olhar mais empático com a situação e não questionarem a nossa presença numa fila preferencial, por exemplo. Mas não é só existir o colar, aqui em Brasília tem uma lei estadual que reconhece, mas a sociedade comum ainda não sabe o que é. Então precisamos de campanhas, não basta a lei — diz Andrea.

É um direito de todas as pessoas andarem pelos espaços públicos, e pessoas com deficiências invisíveis são pessoas como todas as outras

— Andrea Medrado, ativista por direitos das pessoas com deficiências e doenças raras, membro do Aliança Rara

Além disso, Carla Regina Furlani Pereira, gerente responsável pelo programa Autismo e Realidade do Instituto PENSI, pondera que existe uma parcela de pessoas que temem que o símbolo possa trazer um “rótulo” indesejado aos indivíduos.

— É importante reconhecer que ambas as opiniões possuem pontos válidos. Por um lado, a utilização de símbolos pode contribuir para tornar as deficiências mais visíveis e estimular a sensibilização e a empatia da sociedade. Por outro lado, é necessário ter cautela para que isso não resulte em estereótipos ou preconceitos que limitem o potencial das pessoas. É fundamental buscar um equilíbrio entre mostrar as deficiências e respeitar as diferenças de cada pessoa — diz.

Aumento do autismo no mundo

O cordão avança no Brasil junto ao crescimento dos diagnósticos de Transtorno de Espectro Autista (TEA) no mundo. O monitoramento considerado como bússola dos números globais é a análise dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), que de dois em dois anos analisa um conjunto de crianças de oito anos em 11 estados e estima a prevalência do quadro.

A última edição, divulgada neste ano sobre os dados de 2020, aponta que 1 a cada 36 indivíduos na faixa etária têm autismo. É um salto em relação ao levantamento de duas décadas antes, quando a proporção era de 1 a cada 150. No Brasil, não existem números oficiais, mas o censo demográfico incluiu pela primeira vez o número de pessoas com o diagnóstico na última edição, ainda sem resultado. Mesmo assim, dados do censo escolar também apontam um crescimento: de 2017 a 2021, o número de crianças matriculadas na educação especial com TEA saltou 280%.

— De fato essa proporção vem aumentando. Mas o que a ciência nos mostra hoje é que a maior parte desse aumento não é um aumento real, mas sim uma série de fatores que fazem com que os números oficiais cresçam. O principal deles é o que chamamos de ampliação dos critérios de diagnóstico. No passado, os critérios eram muito rígidos, e somente eram diagnosticadas crianças com quadros graves. Com o passar do tempo, viu-se que as características clínicas são muito mais diversas, existe autismo leve ou moderado, e grande parte de crianças que não entrariam no diagnóstico, hoje entram — explica o neuropediatra Hélio van der Linden, da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

Ele cita que essa ampliação dos critérios é algo positivo e acrescenta que outro fator que influencia no número é algo chamado de substituição de diagnóstico. Pessoas que têm autismo e deficiência intelectual antes, por exemplo, daria-se uma ênfase maior ao quadro intelectual. Hoje são indivíduos que estão inseridos nos números do TEA. Há ainda o aumento da informação sobre o transtorno, diz Hélio, tanto por parte da sociedade civil, como pelos médicos que estão mais qualificados.

— Mas, embora esses fatores justifiquem boa parte do aumento, pode haver também uma tendência real de crescimento. Nós sabemos, por exemplo, que as pessoas têm filhos hoje em idades cada vez mais avançadas, e está provado que pais mais velhos, principalmente no caso do homem, influenciam no risco de desenvolvimento do autismo na criança — pontua o neurologista.