Início da terceira dose da vacina em idosos ‘não pode passar de outubro’, diz ex-coordenadora do PNI

Com aumento de mortes por Covid-19 entre idosos, o Rio de Janeiro encara agora uma encruzilhada que o resto do Brasil deve enfrentar nas próximas semanas, à medida que o país avança na aplicação da primeira dose da vacina contra a Covid-19 em adultos. Enquanto a variante Delta emerge no horizonte como um elemento desconhecido e potencialmente perigoso, as autoridades se deparam, de um lado, com as crianças e os adolescentes, que seguem sem imunização, e de outro, com os mais velhos, que têm maior tendência a desenvolver casos graves da doença e, embora já estejam vacinados, sofrem com um processo natural chamado imunossenescência, que é a perda gradativa da proteção conferida pelos anticorpos. Em mãos, um estoque limitado de vacinas. O que fazer?

“É uma escolha de Sofia”, define a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Plano Nacional de Imunizações (PNI). Mas ela responde ao impasse sem titubear: “Entre vacinar adolescentes, que têm menor risco de adoecer e morrer, e vacinar os idosos, eu vacinaria os idosos, sem dúvida”.

Graduada em Ciências Sociais e doutora em Saúde Pública com especialização na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Domingues administrou a força-tarefa nacional de imunização contra a H1N1 durante sua passagem pelo PNI, que foi de 2011 a 2019. Crítica à condução da campanha contra a Covid-19 realizada pelo governo Bolsonaro, a epidemiologista salienta a necessidade da terceira dose de idosos no Brasil, que, segundo ela, poderia começar pelo Rio e “não pode passar” do início de outubro. Ela insiste ainda que a iniciativa de revacinar os mais velhos, anunciada pela Prefeitura do Rio nesta segunda-feira, não deve ser exclusiva de um estado ou município, mas deve vir do próprio Ministério da Saúde.

Confira a entrevista:

O número de mortes por Covid-19 entre idosos, em sua maioria já contemplados com as duas doses da vacina, começou a aumentar nos registros oficiais, confirmando projeções de institutos como a Fiocruz. Precisamos correr para dar a terceira dose da vacina a esse grupo?

Precisa haver um planejamento nesse sentido. Os dados mostram que há uma queda importante de anticorpos contra o coronavírus nos idosos. E agora os números começam a indicar uma tendência maior de agravamento e de mortes nesse grupo, mesmo entre vacinados. Então vamos precisar fazer planos, para que não sejamos pegos de surpresa, pois a terceira dose vai demandar uma grande organização do serviço de Saúde.

Cabe lembrar que ainda precisamos terminar de vacinar, em todo o Brasil, 40 milhões de pessoas com a primeira dose, além de fechar o ciclo vacinal de 106 milhões de pessoas. O ideal, claro, seria vacinar todo mundo ao mesmo tempo, mas isso não será possível, sobretudo porque não temos vacina. Por isso precisamos planejar já a próxima etapa da vacinação de idosos. Poderíamos convocar primeiro a população de 90 anos ou mais, depois a população de 85 a 89 e assim por diante, escalonando esse grupo, que é relativamente menor em comparação a outros. Isso deve ser pensado para meados de setembro ou início de outubro, no mais tardar. Não pode passar disso.

Depois de encerrarmos a vacinação da faixa dos 60 anos, temos de chamar também os profissionais de saúde, que estão na linha de frente e por isso mais expostos à variante Delta, com mais chances de adoecer. Em seguida, os grupos com comorbidades… Por isso deve haver uma estratégia unificada. No entanto, o que me preocupa é que a gente ainda vê cada estado tomando sua decisão, sem que haja um planejamento nacional. E, com isso, o que vamos começar a ver? A turma do turismo da vacina saindo para buscar a terceira dose.

Nesse sentido, o Rio de Janeiro é um caso particular, pois tem o maior número de casos identificados da variante Delta no país e é onde o aumento nas internações e nas mortes, sobretudo entre idosos, desponta com mais nitidez, conforme os especialistas projetaram. Diante desse quadro, a capital anunciou que o novo reforço de idosos começará no mês que vem. O comitê científico da cidade chegou a recomendar à prefeitura o envio de um ofício ao Ministério da Saúde para que a pasta se organize. É um plano factível?

Não deveria ser dessa forma, pois o Rio não pode elaborar esse plano sozinho. Isso deveria ser uma política nacional. Esse descompasso já aconteceu com Manaus, depois São Paulo e agora Rio de Janeiro. Cada hora a gente vê uma tendência de aumento de casos numa região, e o que acontece agora no Rio possivelmente vai acontecer em outros locais. O Rio pode dar início à revacinação de idosos? Pode. Mas não adianta vacinar só o Rio de Janeiro e não preparar uma política nacional, porque nesse caso você vai ver gente indo para o Rio para se vacinar.

No entanto, se você diz à população: “vamos começar a terceira dose pelo Rio agora, mas em outubro vamos começar nas outras regiões, pois ainda não estamos tendo tantos casos fora do Rio”, a população entende e espera. Mas, se não há essa comunicação e simplesmente o Rio de Janeiro sai na frente, sem uma política nacional, isso favorece que a gente veja, de novo, o que vimos no início da campanha: desorganização. Não será possível saber quantos residentes do Rio e quantos viajantes vacinamos. Teremos a ilusão de que vacinamos toda a população, mas talvez não. Essa deve ser uma política nacional, que pode, sim, começar pelo Rio, diante da situação. Mas não adianta só o Rio de Janeiro fazer isso.

E outra coisa: é preciso combinar com os russos, como se diz. Não adianta o Rio dizer que vai começar a terceira dose sem garantir que o Ministério da Saúde vai mandar vacina para lá. Quem determina o envio de vacinas é o ministério, então isso tem que ser acordado de maneira tripartite (entre municípios, estados e governo federal). Um município sozinho não pode tomar essa decisão, a não ser que ele diga que vai comprar vacina. No entanto, se a vacina vem do nível federal, o planejamento precisa ser nacional. Mais do que dizer que vai começar a vacinar idosos, o Rio precisa cobrar que essa seja uma política e que tenhamos clareza de quando, como e onde vai começar a aplicação da terceira dose.

O Rio também anunciou que a terceira dose da vacina dos idosos será da AstraZeneca ou da Pfizer. Como a maioria dos idosos na cidade tomou a CoronaVac em primeiro lugar, o novo reforço nesse grupo será necessariamente heterólogo. O que acha disso?

Precisamos finalizar a segunda dose da vacina da AstraZeneca. Não podemos redirecionar as doses que seriam destinadas ao primeiro reforço dessa vacina. Estamos falando não só do Rio, mas de 25 milhões de pessoas em todo o Brasil, e o que acontece em um estado afeta outros. Estamos com o cobertor curto, e isso seria descobrir a cabeça para cobrir o pé. Em que vacina deveríamos investir para revacinar os idosos hoje? A da Pfizer. Por isso a política precisa ser nacional. Se eu usar a AstraZeneca para a terceira dose em um lugar, vai faltar segunda dose em outros.

Que é preciso iniciar a terceira dose, começando pelos idosos, isso está muito claro. Agora, como isso vai acontecer é a questão. Entre aplicar uma terceira dose heteróloga agora ou uma terceira dose da CoronaVac, eu preferiria a heteróloga, com base nos estudos que apontam a importância dela. Mas isso não quer dizer que uma terceira dose homóloga não funcionaria, não há por que pensar isso. Essa hipótese só não foi testada até agora. O que precisamos agora é pensar em termos de suprimento: com qual vacina posso vacinar idosos? Não podemos deixar isso no colo do município, porque possivelmente ele vai receber um número de doses menor do que sua população de idosos, deixando alguns de fora. O ministério precisa garantir o envio.

A Prefeitura do Rio pensa ainda em reforçar a vacinação de idosos enquanto dá a primeira dose a adolescentes. O que acha desse esquema?

Diante do quadro de escassez de vacinas, o que temos agora é um caso de escolha de Sofia. Entre vacinar adolescentes, que têm menor risco de adoecer e morrer, e vacinar os idosos, eu vacinaria os idosos, sem dúvida. Mas também precisamos pensar naquele adolescente com comorbidade ou deficiência, como o autista, que tem mais dificuldade de manter o distanciamento social e usar máscara e que precisa muito do convívio social, muitas vezes por necessidade do próprio tratamento da sua condição. Esse grupo precisa, sim, ser vacinado agora, mas não precisamos vacinar os adolescentes como um todo por enquanto. É claro que a gente gostaria de fazer isso, para que todos pudessem voltar à escola com segurança, mas a gente não tem vacina.

Precisamos fazer escolhas, pois temos um pequeno aporte de vacinas. Se o Rio acha que é importante vacinar idosos, então que não vacine adolescentes. Os dois juntos, não dá. E não é possível enviar doses extras para o Rio, pois não posso vacinar um estado ad eternum e deixar Tocantins, Piauí e Rondônia, por exemplo, com um monte de gente sem segunda dose. A equidade é um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, se a gente investe na vacinação de um estado e deixa outro descoberto, pode surgir uma nova cepa no local menos favorecido, levando por água abaixo todo o esforço de aplicar a terceira dose.

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