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‘Advogado deve atuar como um mediador de interesses no território urbano

‘Advogado deve atuar como um mediador de interesses no território urbano

Em todo grande projeto ou empreendimento urbanístico, há uma disputa entre diferentes interesses no território da cidade. O processo administrativo é complexo e demanda o suporte de um advogado, que atua como um mediador e negocia medidas de mitigação e compensação entre o poder público e o setor privado.

O apontamento é da advogada Debora Sotto, que atua nas implicações de Direito Administrativo relacionadas ao Direito Urbanístico e Ambiental. Ela explica que, na discussão sobre projetos urbanos, os advogados podem representar os interesses dos empreendedores, de associações, ONGs, indivíduos ou da própria prefeitura.

Aos 46 anos, Debora possui experiência como procuradora do município de São Paulo desde 2003, e agora ingressa no escritório Tojal Renault (especializado em Direito Administrativo) para estruturar uma área especificamente dedicada a questões de Direito Urbanístico e Ambiental. No campo acadêmico, ela é pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e conta com pós-doutorados sobre o Direito aliado ao estudo das políticas públicas urbanas.

De acordo com Debora, o setor privado compartilha com o poder público a responsabilidade pela preservação e promoção da qualidade de vida nas cidades. As empresas podem propor projetos de intervenção urbanística e são chamadas a contribuir com estudos para implementação de políticas públicas relacionadas ao espaço urbano.

E, segundo ela, o advogado de Direito Urbanístico tem espaço para atuar em todas as etapas desses procedimentos. “É um mercado de trabalho incipiente, mas que tende a crescer em todos os âmbitos pelo aumento dos conflitos na cidade e pela sofisticação dos processos de licenciamento.”

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, a advogada explicou que “os municípios são os grandes protagonistas da implementação da política nacional de desenvolvimento urbano”, mas ressaltou que há legislações nacionais e estaduais a serem seguidas pelas prefeituras.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O Direito Urbanístico é um ramo autônomo do Direito ou uma disciplina mais específica do Direito Administrativo?
Debora Sotto — A própria Constituição Federal de 1988 já reconhece o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental como ramos didaticamente autônomos do Direito, porém sub-ramos do Direito Público.

No caso específico do Direito Urbanístico, a doutrina sustenta que ele foi finalmente sistematizado no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro com a edição do Estatuto da Cidade, no ano de 2001 — uma lei de caráter nacional, que estabelece as principais diretrizes, os princípios gerais de Direito Urbanístico, suas principais instituições e seus instrumentos. Com o Estatuto da Cidade, o Direito Urbanístico adquiriu corpo e condições para ser desenvolvido cientificamente e ser objeto de estudos específicos de doutrina voltados à sua implementação.

O Direito Administrativo fornece as bases para a implementação do Direito Urbanístico e do Direito Ambiental. Porque são dois ramos do Direito que implicam a todo momento um sopesamento da relação entre o particular no exercício de uma atividade econômica e o poder público como ente regulador e fiscalizador dessa atividade.

ConJur —  O setor privado hoje é levado a discutir melhorias para as cidades fora do âmbito do Judiciário (no âmbito administrativo)?
Debora Sotto — Sim, e em várias instâncias.

ConJur — Como o advogado ou a advogada que trabalha com Direito Urbanístico pode contribuir com a gestão da política pública quando representa um empreendimento privado?
Debora Sotto — Exemplo: um grande empreendimento vai trazer um impacto significativo ao sistema viário e ao fluxo do tráfego na região. Ele passa por um licenciamento. Vão se analisar as incomodidades que serão geradas por esse novo empreendimento e como mitigar ou compensar o impacto de vizinhança para acomodá-lo na cidade.

O processo administrativo é razoavelmente complexo e demanda o suporte do advogado como um verdadeiro mediador de interesses entre o empreendedor e a prefeitura. As medidas de mitigação e compensação são, em certa medida, negociadas entre o poder público e o setor privado.

Outro exemplo se dá no âmbito da apresentação de um projeto de intervenção urbanística (PIU), que pode ser iniciado não só por provocação do poder público, mas também por proposta do setor privado. O objeto desse PIU não é a construção de uma edificação em si. Ele vai redundar na transformação de um perímetro de território localizado dentro da cidade. O advogado, representando um grande empreendedor ou conjunto de empreendedores, vai mediar a apresentação dessa proposta, nas etapas de discussão com a sociedade civil e os seus diferentes atores.

As associações de bairro, os moradores de assentamentos urbanos informais e o setor privado são chamados a participar e dialogar para a construção desse PIU. E nesse grande diálogo surgem oportunidades para os advogados atuarem nas diferentes frentes. Porque em todo grande projeto e empreendimento, o que se coloca é uma disputa de diferentes interesses no território da cidade.

ConJur — A prefeitura vai tentar ouvir qualquer empreendimento afetado pela medida? Ou só aqueles que se dispuserem previamente a contribuir?
Debora Sotto — A referência é sempre o lote em que o empreendimento vai ser instalado e o impacto que vai gerar no entorno. No caso do estudo de polo gerador de tráfego, o órgão responsável vai demarcar a área a ser impactada pelo empreendimento e promover, de acordo com normas técnicas, a análise do tipo de impacto a ser gerado. Esse é um estudo técnico que fica normalmente restrito ao empreendedor e ao órgão técnico da prefeitura.

No caso do estudo de impacto de vizinhança, que tem um escopo maior, o procedimento envolve a realização de audiências e consultas públicas, em que qualquer interessado é chamado a participar.

O advogado, no campo do Direito Urbanístico, vai participar desses momentos de discussão com a sociedade civil, vai ter a oportunidade de defender o ponto de vista do empreendedor e apresentar ponderações à prefeitura quanto às medidas de mitigação e compensação que serão exigidas.

Claro que, havendo impasse e conflitos intransponíveis, a tendência é a questão ser judicializada, mas as discussões judiciais são custosas. E o resultado delas é normalmente imprevisível. É sempre preferível acomodar os interesses antes de chegar ao Judiciário.

ConJur — Como o pedestre conseguiria contribuir para a implementação de alguma política pública relacionada ao tráfego?
Debora Sotto — As grandes cidades em todo o país têm observado o surgimento de associações ou ONGs voltadas à representação do pedestre. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a mobilização de ONGs voltadas à mobilidade a pé, junto com o movimento dos ciclistas, conseguiu a aprovação de uma lei bastante inovadora, que é o Estatuto do Pedestre.

O pedestre também tem se colocado cada vez mais como protagonista, justamente por ser a ponta mais vulnerável da mobilidade urbana. Isso pode ser pautado pela sociedade civil por meio de reivindicações organizadas junto ao poder público. E aí surge uma nova oportunidade de atuação dos advogados que militam na área de Direito Urbanístico, como representantes dessas associações e ONGs.

ConJur — O setor privado compartilha com o poder público a responsabilidade pela preservação e promoção da qualidade de vida do cidadão?
Debora Sotto — Sem dúvida nenhuma. Ele também é um ator do desenvolvimento urbano sustentável. E isso se estende tanto aos empreendedores privados como aos cidadãos.

ConJur — Em que medida se dá essa responsabilidade compartilhada?
Debora Sotto — Um exemplo bastante interessante é a Lei Lehmann, que rege o parcelamento do solo urbano. Afirma-se em Direito Urbanístico que a atividade de parcelar o solo é uma função precipuamente pública. Mas ela é passível de delegação aos empreendedores particulares por meio de uma autorização precária. Ela traz consigo uma série de deveres para o loteador, para garantir que o parcelamento acomode tanto o interesse privado, de obtenção de lucro, como também o interesse público, de garantir aos moradores do novo loteamento o mínimo necessário para a sadia qualidade de vida.

Em vez de pagar uma contribuição de melhoria, por exemplo, os adquirentes desses lotes entregam parte dessa excepcional valorização do solo na forma de terras para o poder público instalar parques, praças, escolas, UBSs, centrais de atendimento social e psicológico e um viário adaptado à circulação de veículos e de transporte público. É uma forma de o setor privado participar com o poder público na construção de uma cidade sustentável.

ConJur — Está em discussão no Congresso um plano nacional de arborização urbana. Seria uma medida eficaz? A arborização urbana não está mais relacionada às especificidades de cada município do que a um planejamento federal?
Debora Sotto — Faz todo o sentido haver uma lei nacional estabelecendo diretrizes para a arborização urbana, a partir das quais os municípios estruturem a sua própria política e os seus planos, de maneira adequada às suas peculiaridades locais. Não dá para esperar que uma cidade como Curitiba, que está localizada em uma zona de clima temperado, tenha o mesmo tipo de arborização urbana que Salvador, ou mesmo que Manaus.

É preciso espaço para acomodar as peculiaridades de cada cidade brasileira, porque o país é gigantesco. Mas é interessante que haja uma lei nacional estabelecendo diretrizes, inclusive para incluir a pauta na agenda pública das cidades — sobretudo das cidades menores, que têm menos capacitação técnica —, para que elas possam ter espaço e informação para estruturar as suas próprias políticas.

ConJur — O Direito Urbanístico está essencialmente ligado à esfera municipal? Ou também há espaço para sua aplicação na esfera federal?
Debora Sotto — É certo que os municípios são os grandes protagonistas da implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, porque concentram as principais competências relativas à concretização do Direito Urbanístico. É a legislação municipal que estabelece os parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo com base nas diretrizes dos planos diretores.

Só que os planos diretores e a legislação urbanística municipal têm de seguir diretrizes postas por lei nacional. E existem também leis estaduais — relativas à proteção de florestas, por exemplo.

Em termos legislativos, sobretudo a União tem um papel fundamental, porque é competente para editar normas gerais de Direito Urbanístico — que estabelecem padrões mínimos a serem seguidos por todos os municípios na edição dos seus planos diretores, por exemplo.

Por outro lado, há uma etapa importante de licenciamento ambiental para a instalação de novos loteamentos em áreas de expansão urbana, que normalmente fica a cargo dos órgãos estaduais. Em São Paulo, destacam-se a Companhia Ambiental (Cetesb) e o Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais (Graprohab).

ConJur — Que lugar ocupa o Direito Urbanístico no mercado de trabalho da advocacia brasileira atualmente? O número de demandas envolvendo questões urbanísticas é alto?
Debora Sotto — É um mercado de trabalho incipiente, mas que tende a crescer em todos os âmbitos, pelo aumento dos conflitos nas cidades e pela sofisticação dos processos de licenciamento.

Na medida em que a população brasileira é cada vez mais urbana, os conflitos de vizinhança tendem a aumentar. E são conflitos que não se resolvem só com base no Direito Civil. Estão surgindo cada vez mais demandas que colocam o poder público como um colitigante — relativas à poluição do ar, à poluição sonora, à aprovação de novos empreendimentos.

Isso abre espaço para o advogado atuar não só na representação de grandes empreendedores, associações de moradores e ONGs, como também na representação do interesse de indivíduos. Um conjunto de moradores perturbado por festas irregulares em uma zona estritamente residencial, por exemplo. Essas pessoas normalmente acabam tendo de procurar o Judiciário, pela dificuldade do poder público de coibir esse tipo de situação.

Cada vez mais escritórios atuantes na área de Direito Administrativo e da Infraestrutura estão abrindo áreas especificamente dedicadas ao Direito Urbanístico. Inclusive porque a expansão da rede ferroviária e portuária, por exemplo, vai impactar as cidades e demandar a estruturação de PIUs. A transformação vai gerar demanda por advogados especializados.

A própria OAB está abrindo, nas suas diferentes seccionais, comissões especificamente dedicadas ao Direito Urbanístico. Há também uma Comissão Nacional estruturada na OAB já por duas gestões. Essa área deve adotar um protagonismo nas grandes bancas e abrir oportunidade de trabalho para as pequenas.

ConJur — Para uma cidade implementar políticas públicas de melhor aproveitamento e gestão do espaço urbano, a prefeitura deve contar com profissionais de Direito Urbanístico nos seus quadros? Isso é uma prática padrão entre os municípios?
Debora Sotto — Sim, existe a necessidade de uma especialização grande do advogado público municipal. Sobretudo porque os municípios a partir de 20 mil habitantes são obrigados a ter planos diretores e, portanto, legislação urbanística especializada. Mas mesmo os municípios menores são responsáveis por aprovar as novas edificações do seu território.

A tendência é municípios de médio e grande portes terem setores ou departamentos da Procuradoria especializados em questões urbanístico-ambientais. Nos municípios menores, que ainda não têm Procuradoria especializada, essa circunstância é mais difícil. O advogado público atuante nos municípios de pequeno porte é um grande generalista, que é chamado a atender questões de Direito Público variadas.