Anchor Deezer Spotify

“A luta contra a extinção das espécies deveria mobilizar paixões alegres”. Entrevista com Vinciane Despret

“A luta contra a extinção das espécies deveria mobilizar paixões alegres”. Entrevista com Vinciane Despret

Filósofa e psicóloga, professora da Universidade de Liège e da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica), Vinciane Despret questiona, rotundamente, nossa relação com os animais em livros como Quand le loup habitera avec l’agneauPenser comme un rat, e Habiter en oiseau. Por meio de uma observação refinada do comportamento animalDespret se esforça para mudar nossa perspectiva sobre os seres vivos, inclusive por meio da ficção, como faz em seu último livro Autobiografia de um polvo (Bazar do Tempo, 2022).

Eis a entrevista.

Durante séculos, a tradição filosófica ocidental sustentou a ideia de que o homem é superior aos animais. Quando essa perspectiva começou a mudar?

Na filosofia francesa, predomina uma concepção de que os animais não têm alma e que o homem é um ser excepcional. Em grande medida, essa visão determinou nosso comportamento em relação aos animais, seja na forma de comê-los, seja em trancá-los ou obrigá-los a nos servir. Esta ideologia também se reflete na própria estrutura da língua.

Quando falamos de animais, há uma tendência a usar fórmulas sintáticas que os tornam seres passivos. Diz-se que estão sujeitos ao determinismo, que agem movidos por seus hormônios, seus impulsos e por fatores biológicos ou ecológicos. Em seu livro Mélodie-Chronique d’une passion, o autor japonês Akira Mizubayashi se questiona a respeito das palavras que deveria usar para falar com sua cachorra, já que ele usa uma linguagem, a de Descartes, que foi forjada contra os animais.

No que diz respeito à tradição behaviorista anglo-saxônica, ela transforma os animais em entes mecânicos. É particularmente evidente nos experimentos realizados com ratos. Quando se estuda o processo de aprendizagem deste animal, não se pretende determinar suas competências específicas, mas reproduzir uma aprendizagem tipicamente humana.

Um rato solto em um labirinto reproduz o modo de pensar de um aluno que busca memorizar uma lição, porque o animal é impedido de usar seus próprios métodos, que consistem em depositar seu cheiro em alguns lugares para dispor de pontos de referência. A mecanização dos animais realizada pelo behaviorismo teve consequências importantes, já que seus métodos podem transformar um animal inteligente em um brinquedo mecânico, quando é limitado a ter que apertar alguns botões.

Foi necessário esperar o início da década de 1990 para que essa perspectiva do animal-máquina começasse a ser questionada, sobretudo graças ao trabalho do filósofo francês Jacques Derrida. Em seu livro O animal que logo sou, Derrida critica a falta de curiosidade manifestada pela filosofia em relação aos animais. Denuncia o que chama de “ignorância interessada”, que levou os filósofos a elaborar textos sobre os animais sem realmente tentar conhecê-los. Sem essa falta de conhecimento, as relações entre animais e humanos teriam sido muito diferentes.

Seus trabalhos sobre os animais, que já ganharam amplo reconhecimento, foram inicialmente recebidos com algum ceticismo. Como explicar essa desconfiança da comunidade científica?

Os animais são objetos problemáticos para as ciências humanas. O antropólogo francês Albert Piette demonstrou que o estudo do fenômeno religioso e o dos animais, por mais distantes que pareçam, apresentam as mesmas dificuldades para aqueles que os pesquisam. Se você leva a sério a ideia de que Deus existe, está praticando teologia. Se você em vez de se interessar pelo próprio Deus, interessa-se por sua representação, está praticando sociologia.

O estudo dos animais levanta um problema semelhante: ou você fala dos próprios animais, e neste caso seus trabalhos pertencem ao campo científico – zoologia ou medicina veterinária, por exemplo –, ou você aborda a sua dimensão simbólica em uma perspectiva social ou cultural. Alguns de meus trabalhos foram recebidos com certo receio, porque eu queria trabalhar no campo filosófico sobre animais reais, não sobre sua representação.

Cabe destacar que muitas vezes foram as mulheres que estudaram as questões mais problemáticas como o animalismo e a religião, porque suas preferências não estavam orientadas para assuntos mais elevados. E como elas estavam em certa situação de marginalidade, possuíam maior margem de manobra.

Nos últimos anos, descobriu-se que os animais têm competências que não suspeitávamos. Quais podem ser as consequências destas descobertas?

É mais interessante considerar os animais como protagonistas, pois essa ideia nos permite entrar em um quadro conceitual diferente, que deixa espaço para a intencionalidade. Assim, os fenômenos observados dão lugar a novas interpretações. Se você considera os animais como seres movidos unicamente pela necessidade de sobreviver e se reproduzir, então você está ignorando o conjunto de competências sociais e cognitivas que dispõem.

Isso é ainda mais verdadeiro quando se comprova que muitos comportamentos animais são extremamente discretos. Eu tive a oportunidade de observar, por exemplo, o tagarela-árabe, um pássaro que vive no deserto. Se uma dessas aves, macho ou fêmea, decide acasalar com outra, o grupo não deve saber, pois, a princípio, apenas o macho e a fêmea alfas se reproduzem.

Para alcançar seus objetivos, o tagarela-árabe precisa desenvolver uma estratégia muito complexa, que consiste em pegar um pedacinho de palha com o bico e apontá-lo levemente em direção à sua futura parceira, para iniciar a comunicação. Mas esta relação passará completamente despercebida, caso você não consiga imaginar que os pássaros podem ser capazes de tal comportamento.

A destacada primatologista britânica Thelma Rowell, que mudou nossos conhecimentos sobre os babuínos, aumentou o interesse que sentimos pelos símios e suas capacidades cognitivas. Rowell se fez a seguinte pergunta: formulamos perguntas interessantes sobre os macacos e buscamos destacar sua inteligência por serem nossos parentes mais próximos? No entanto, ao contrário, acreditamos que os carneiros são tolos, mas talvez seja simplesmente porque não buscamos pesquisar sua inteligência. Os bons cientistas avançam por meio de várias hipóteses.

Em seu último livro, Autobiografia de um polvo, você caminha pela ficção e imagina que vombates, aranhas e polvos nos enviam mensagens codificadas. Para você, a ficção é um meio para avançar na reflexão filosófica?

Eu associo a ficção à brincadeira. A brincadeira liberta as coisas do seu ser. Minha caneta pode se tornar uma espada, minha cachorra pode se transformar em um cavalo e um pedaço de papel pode virar um avião. Na ficção, é possível se emancipar de determinadas limitações do mundo real e fazer as coisas de outra forma, é possível liberar possibilidades que borbulhavam sob a superfície e que antes não víamos.

A ficção também nos permite levar as coisas mais longe e examinar situações que ainda não ocorreram. Cerca de vinte anos atrás, os cientistas rejeitavam completamente a ideia de que existisse uma cultura animal e sustentavam que a cultura era uma realidade exclusivamente humana. Atualmente, olhando retrospectivamente, nós nos perguntamos como pudemos ser tão tolos.

Da mesma forma, ninguém acreditava na possibilidade de que as aves pudessem fazer um uso semântico e sintático da linguagem. Acreditava-se que os pássaros empregavam onomatopeias emocionais e se descartava a possibilidade de que houvesse sons diferentes para designar diferentes tipos de predadores. A linguagem era um assunto exclusivamente humano. Agora, poderíamos rir daquela nossa ignorância.

Para mim, a ficção é um meio para imaginar do que riremos daqui a cinquenta anos. Por meio desses relatos de antecipação sobre o vombate (um marsupial australiano) ou o polvo, tentei dar a esses animais um grau a mais de intencionalidade. Talvez a ciência não avance nessa direção, mas é uma forma de abrir possibilidades. E é também uma forma de me antecipar ao riso que a nossa atual ignorância provocará, não para fugir dela, mas para dizer que sabemos que um dia alguém rirá de nossos erros atuais.

Ano após ano, os relatórios científicos contam a triste crônica do declínio da diversidade biológica. Por que continuamos insensíveis à extinção das espécies?

Falar sobre extinções em termos numéricos é algo extremamente útil. É preciso que as extinções sejam documentadas. É um requisito indispensável para que sejamos alertados sobre a situação, mas não é o suficiente, já que os números não nos comovem. É assim.

desaparecimento de espécies inteiras não nos afeta diretamente porque chegamos a um grau tão alto de urbanização que não temos mais tanto contato com outros seres vivos. Por exemplo, há alguns anos, observamos que os para-brisas dos automóveis não estão mais cobertos de insetos, mas não compreendemos as implicações dessa mudança. Não relacionamos esse fato com outros fenômenos.

Como explicou o filósofo e sociólogo francês Bruno Latour, a carência essencial da nova classe ecológica é de tipo afetiva. Tradicionalmente, a esquerda se apoiou nas emoções vinculadas à liberdade, justiça e progresso, que foram muitos vetores de mobilização. A direita também soube cultivar emoções ligadas aos conceitos de valor e grandeza. Contudo, cabe perguntar: quais são as emoções da classe ecológica, que deve lutar contra o antropoceno?

Hoje, alguns pesquisadores buscam responder a essa pergunta. Por exemplo, o filósofo ambiental australiano Glenn Albrecht criou o conceito de solastalgia para descrever o sofrimento causado pelo fato de não ser possível reconhecer o lugar onde vivemos no passado, porque foi excessivamente danificado. É uma emoção poderosa.

Jovens pesquisadores como a historiadora de arte francesa Estelle Zhong e o filósofo francês Baptiste Morizot buscam, atualmente, entre nossos instrumentos afetivos, os elementos que nos permitiriam entrar em maior sintonia com o estado atual do mundo. A dificuldade está no fato de que é preciso transcender as paixões negativas, que são paralisantes, e também de ser capaz de identificar paixões alegres e positivas.

Em seu livro Garder l’espoir, a escritora estadunidense Rebecca Solnit nos anima a resgatar a memória das lutas passadas, para não cair na desesperança. Temos a tendência de esquecer que muitas vitórias foram conquistadas graças a muitas lutas. Reviver a memória desses combates também é uma forma de gerar paixões alegres.