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Síndrome de Down: tratamento inovador conseguiu reduzir pela primeira vez problemas cognitivos

Síndrome de Down: tratamento inovador conseguiu reduzir pela primeira vez problemas cognitivos

Um novo tratamento baseado na reposição de um hormônio melhorou o desempenho cognitivo e as conectividades cerebrais de pessoas com Síndrome de Down em um estudo recém-publicado na revista científica Science. Embora preliminares, os resultados inéditos são um sinal de esperança para o melhor controle de uma síndrome presente em aproximadamente 1 a cada mil nascimentos, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS).

— São resultados preliminares, mas nunca houve nada parecido com potencial para melhorar a parte cognitiva da Síndrome de Down. Existem muitas pesquisas, mas é a primeira vez que houve uma descoberta com embasamento científico — avalia o médico geneticista e diretor do laboratório Genetika, em Curitiba, Salmo Raskin.

Conduzido por pesquisadores do Laboratório de Neurociência e Cognição da Universidade de Lille, na França, e do Hospital da Universidade de Lausanne, na Suíça, o trabalho teve início com a identificação em modelos animais de que a disfunção do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) estava ligada aos impactos cognitivos da Síndrome de Down. De acordo com os cientistas, essa neurodegeneração leva 77% das pessoas com a condição a apresentarem sintomas semelhantes aos da doença de Alzheimer com o tempo.

— Existem vários níveis de comprometimento cognitivo, com quadros mais leves e outros mais graves, mas à medida que eles envelhecem, para todos existe uma piora da cognição basal, com um acúmulo de patologias de fato muito semelhantes aos do Alzheimer. Então qualquer medicação que consiga melhorar a cognição ou ao menos retardar a neurodegeneração é muito bem-vinda, o estudo é um passo bastante importante para isso — diz a neurologista da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Os pesquisadores desenvolveram um teste clínico piloto com sete homens com Down, de idades entre 20 e 50 anos. Os participantes receberam uma dose do hormônio GnRH a cada duas horas, durante um período de seis meses, por meio de um dispositivo colocado no braço. Antes e após o período, foram realizados testes de cognição e de olfato, além de ressonâncias magnéticas cerebrais.

Os resultados dos testes mostraram que a performance cognitiva aumentou em seis dos sete pacientes, com melhorias na compreensão de instruções, no raciocínio, na atenção e na memória. As imagens dos exames cerebrais confirmaram as mudanças, revelando uma elevação significativa nas conectividades funcionais do órgão. A terapia, no entanto, não teve efeito nas deficiências olfativas dos participantes.

Para os pesquisadores, os dados do estudo sugerem que o tratamento atua no cérebro por meio do fortalecimento da comunicação entre certas regiões do córtex – camada externa do órgão, rica em neurônios, e ligada ao desenvolvimento de habilidades como cognição e memória.

“A manutenção do sistema GnRH parece desempenhar um papel fundamental na maturação do cérebro e nas funções cognitivas. Na síndrome de Down, a terapia com GnRH parece promissora, especialmente porque é um tratamento que já existe sem efeitos colaterais significativos”, afirma o diretor de pesquisa do laboratório da Universidade de Lille, Vincent Prévot, um dos autores do estudo, em comunicado.

Ciência por trás dos efeitos do hormônio

Raskin explica que essa teoria ligada ao GnRH – que por sua vez tem a principal atuação estimulando a produção de hormônios sexuais – teve início a partir de outras síndromes, como a de Kallmann, que são causadas pela deficiência do hormônio e apresentam características semelhantes à de Down, como perda do olfato. Cientistas passaram a investigar então se a expressão do GnRH estaria ligada não apenas ao estímulo de outros hormônios, mas também a funções distintas no cérbero.

— O GnRH é chamado de neuro-hormônio, porque ele é produzido por neurônios do hipotálamo. O trabalho identificou que esses neurônios de fato têm também outras funções no cérebro, como no caso para a cognição, por isso a deficiência de GnRH foi relacionada ao comprometimento cognitivo — diz o geneticista.

Os pesquisadores do novo estudo decidiram testar então uma terapia com injeção do GnRH nos camundongos com um modelo animal da Síndrome de Down, que apresentavam deficiência cognitiva e olfatória, para entender se seria possível reverter os impactos das disfunções na expressão do hormônio. Após 15 dias, a equipe constatou que a estratégia havia melhorado os problemas nos animais, o que levou ao próximo passo: avaliar se esse mesmo efeito seria observado também em humanos.

Melhor qualidade de vida

A possibilidade de uma nova terapia direcionada ao comprometimento cognitivo é mais um passo em uma série de avanços que tem permitido alavancar a expectativa de vida de uma população que décadas atrás acreditava-se não crescer além do início da fase adulta. De acordo com o estudo publicado no periódico European Journal of Public Health que analisou a longevidade das pessoas com Down, nas duas últimas gerações a expectativa de vida subiu de 12 para 60 anos.

— Hoje a estimulação cognitiva e a física são muito importantes nas pessoas com a síndrome, são fatores que aumentaram muito a expectativa de vida. Existem outras questões, como problemas cardiológicos, que são altos nessa população, mas que hoje recebem mais atenção. Então nos últimos anos são pessoas que têm tido uma longevidade muito maior — explica Sonia, da ABN.

Os resultados do novo estudo foram promissores, mas o trabalho inicial ainda é apenas uma primeira etapa para que eventualmente a nova terapia seja incorporada na prática clínica. Os cientistas pretendem agora lançar um novo estudo, em maior escala, para avaliar o tratamento não apenas para um número maior de pessoas com Síndrome de Down, mas também com outras doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer.

— Os mecanismos da perda cognitiva da Síndrome de Down e do Alzheimer são muito semelhantes, então o estudo realmente abre também uma porta para novas pesquisas de tratamento do Alzheimer — afirma a neurologista.