Anchor Deezer Spotify

‘Políticas de eficiência energética no Brasil são reativas’, diz pesquisadora do Climate Policy Initiative

‘Políticas de eficiência energética no Brasil são reativas’, diz pesquisadora do Climate Policy Initiative

Amanda Schutze avalia que é difícil descarbonizar a geração de energia até 2050, mas diz que o Brasil é um dos países com mais recursos para o desafio. Falta planejar

A economista Amanda Schutze fez uma reforma recente no seu apartamento, no bairro da Gávea, Zona Sul do Rio. No projeto, buscou aproveitamento da luz natural, uso pontual de lâmpadas de led e ar-condicionado com tecnologia inverter (mais eficiente).

Gerar energia limpa e promover eficiência energética são metas dela também como coordenadora de Avaliação de Política Pública com foco em energia no Climate Policy Initiative (CPI) Brasil, vinculado à PUC-Rio, onde concluiu seu doutorado e dá aulas sobre economia do setor público. Ela investiga como o Brasil pode compatibilizar a ampliação de sua matriz energética com o cumprimento de metas de redução de emissões gases do efeito estufa.

“Falta entender que a mudança climática causa perda de vidas e agrava a pobreza”, alerta. Em entrevista ao GLOBO, a pesquisadora afirma que o Brasil pode ser líder na transição energética e exportador de energia renovável, atraindo financiamento internacional e parceiros em acordos comerciais.

“Precisamos de um alinhamento do país ao consenso internacional quanto à mudança climática. Sem isso, perderemos oportunidades”, diz.

O relatório “Net Zero by 2050” (saldo zero até 2050, em tradução livre), divulgado pela Agência Internacional de Energia (AIE) em 2021 defende a descarbonização da geração de energia no planeta dentro de menos de 30 anos. Como está esse debate no país?

No caso do Brasil, é importante que tenhamos claro onde queremos chegar em 2050. Precisamos, de fato, transformar isso em metas de curto prazo, em objetivos. E isso está atrelado à política pública. O Estado é capaz de estimular a descarbonização, por exemplo, em termos de produtos, de serviços ou em ações para incentivar o aumento de fontes renováveis e a eficiência energética. Temos uma abundância de recursos naturais que pode nos levar à liderança na transição energética e precisamos aproveitar essa oportunidade para esse crescimento econômico verde. Precisamos de um alinhamento do país ao consenso internacional quanto à mudança climática para atrair financiamento internacional e fazer acordos comerciais.

Como a crise do petróleo afeta esses planos de desenvolvimento de fontes renováveis? Isso é um estímulo ou uma barreira?

Encontramos pesquisadores com opiniões opostas. Falando de maneira direta, quando há alta no preço de petróleo e gás, aumenta a competitividade de fontes renováveis para reduzir a dependência em combustíveis fósseis e estimula-se a transição energética, porque os países não estão interessados em depender de um combustível caro. Ao mesmo tempo, a alta de preços estimula a produção e oferta de petróleo e o uso do carvão, no curto prazo, para substituir a alta do gás, por exemplo, em térmicas. Por mais que se possa ter um atraso no cronograma da descarbonização, ela vai acontecer, pois essa necessidade, por conta das mudanças climáticas, é um consenso.

Qual seria um prazo realista para o mundo se ajustar a essa mudança?

Acho o prazo de 2050 apertado para um desafio tão grande. Teríamos que pensar em como avançar na eficiência energética e de energias renováveis, com tecnologias como o hidrogênio verde e a bioenergia, que ainda precisam ser desenvolvidas.

Há muito risco, como por exemplo, a questão de captura (de CO2), utilização e armazenamento de carbono, a CCUS (captura, utilização e estoque de carbono, na sigla em inglês). E existem muitas incertezas envolvidas. Tem que realmente se estabelecer uma ação de cada governo, com muita vontade política e uma coordenação internacional. É um grande desafio.

Quando se fala em mudança de matriz energética, como se insere o consumidor final, especialmente o de baixa renda, nessa equação?

Especificamente sobre a questão de energia elétrica, o papel do consumidor mudou muito ao longo dos anos. Houve crescimento da geração distribuída, em que o consumidor passa a gerar a própria energia (com painéis solares, por exemplo), num sistema de compensação que permite a redução da conta de luz. O que ele gera como excedente e injeta na rede é um sistema que teve uma regulação específica, aprimorada ao longo do tempo.

Mas você tem razão sobre a inexistência de política pública voltada para a baixa renda. O biodigestor é uma estratégia que assegura o acesso a energia a um preço acessível, além dos benefícios ambientais. No caso da geração distribuída, não existe uma política específica para a baixa renda para a instalação de painéis solares, por exemplo.

Faltam investimentos em outras áreas, como a do sistema isolado de geração de energia elétrica?

No Brasil, por exemplo, tem os dois sistemas: o isolado e o centralizado. No sistema interligado nacional, em que há uma rede de transmissão que liga geradores, se falta energia em alguma região, todas as outras usinas ligadas ao sistema centralizado suprem a demanda. O sistema isolado é quando você tem uma região que não está conectada a um sistema centralizado, então ela pode ter até um sistema de distribuição, mas tem uma única usina. Na Amazônia, por exemplo, os sistemas isolados de geração são a diesel.

Quando se fala de desenvolver a região amazônica, que é importante para pequenos produtores explorarem de forma sustentável e harmônica a floresta, como fazer isso se você tem uma grande população sem acesso a energia de qualidade, num sistema exposto a muitas interrupções? Na Amazônia, existem 18 milhões de habitantes, distribuídos em três tipos de consumidores. Cerca de 14 milhões de consumidores estão no sistema interligado nacional. Outros três milhões, em sistemas isolados. E um milhão são moradores de áreas remotas sem acesso a eletricidade. Fala-se da Amazônia em muitos aspectos, mas não sobre energia.

Uma pesquisa internacional de cientistas feita em 2021, que inclui especialistas do Indian Institute of Technology Bombay e do Health Effects Institute, atestou que, na Índia, as emissões da queima de biomassa doméstica estavam associadas a 268 mil mortes, em 2015, mais do que a indústria, num total de 1,1 milhão de óbitos devido à poluição do ar naquele país. Ou seja, a pobreza é altamente poluente. Como equalizar as metas ambiciosas da AIE, a Net Zero by 2050m num mundo com realidades sociais tão desiguais?

Os países são diferentes nas possibilidades para o desenvolvimento para a transição energética. Vai depender de quais são as aptidões naturais, o que há de recursos. Por exemplo, enquanto o mundo todo está eletrificando carros, nós não estamos nessa direção porque há outras possibilidades no Brasil, como o biocombustível. Mas vamos ficar diferente do mundo? Então, essas decisões sobre a transição são específicas para cada país. Não basta ter uma transição energética, é preciso uma transição justa, em que os mais pobres tenham uma melhor qualidade de vida.

O governo Biden, nos EUA, reduziu em até 80% a concessão para exploração de novas fontes de petróleo e gás. A senhora acredita que uma proposta semelhante seria factível para o Brasil, uma vez que existem reservas do pré-sal ainda com grande potencial de alavancar recursos para o país?

A transição energética não pode comprometer a garantia de suprimento e acesso à energia. O combustível fóssil ainda vai existir por um tempo, mas precisamos desenhar o caminho, de longo prazo, para a menor dependência e para a total descarbonização.

Fala-se atualmente sobre a menor emissão de carbono por barril e o desenvolvimento da tecnologia de CCUS (que reduz a emissão de CO2 e o efeito estufa), pois ainda existirá o uso residual de combustível fóssil. A indústria de petróleo, inclusive, pode colaborar nessa transição.

Há necessidade um novo modelo de gestão econômica mais racional e responsável com o meio ambiente, uma vez que no modelo atual a intervenção estatal não é desejável?

A intervenção estatal tem que ser a menor possível. Porém, nesse caso, tem que existir. O interessante é desenvolver uma estrutura de mercado específica, com leilões de eficiência energética, caminhar na direção de menos obrigatoriedade e mais estímulo à adequação.

Quais as principais barreiras que enfrentamos no Brasil para fazer a transição energética?

A barreira para eficiência energética pode ser contornada por meio do financiamento. Mas é difícil porque, quando você pega um financiamento para qualquer projeto, exige-se garantia. Como é que se dá garantia em relação à eficiência? Não há uma educação nem conhecimento ou cursos de eficiência para fazer com que todos os setores da indústria e serviços entendam que uma determinada política pública vai gerar um ganho. É por isso que é tão importante que você tenha incentivos.

A falta de planejamento de soluções para a mudança climática ainda é uma lição a ser cumprida pelo Brasil?

Nunca tivemos planejamento de longo prazo. No Brasil, todas as políticas de eficiência energética são reativas. Elas surgem por dificuldade de atendimento a uma demanda, como a crise energética no início dos anos 2000, por exemplo, quando tivemos de fazer racionamento.

Como mudar essa matriz energética sem criar problemas em termos de impacto ambiental, como o descarte da bateria de lítio, mais eficiente e duradoura, para os carros elétricos e eletrônicos? Como evitar o problema da exploração do minério e o descarte?

Esse problema também aparece com o descarte dos painéis solares, que duram 30 anos. Existem determinados componentes das torres de energia eólica que não usam fonte renovável. A questão do desenvolvimento tecnológico desempenha um papel central na aceleração da descarbonização para criar soluções, aprimorá-las ao longo do tempo.

As soluções de baterias, armazenamento de hidrogênio verde, energia eólica offshore (em alto-mar), tudo é resultado de inovação tecnológica, foco de pesquisas em universidades. Precisamos de um aprimoramento regulatório e desenvolvimento de políticas públicas para viabilizar a transição. Precisamos de pesquisa e desenvolvimento para atingir o objetivo da descarbonização até 2050.

Apostar tudo numa determinada fonte, corre-se o risco de perder o passo com o resto do mundo?

Deveríamos investir bastante em eficiência energética e energia renovável. Qual será exatamente a maneira em que vamos usá-la é que pode ser diferente. Como vamos descarbonizar determinados setores, pois alguns são mais difíceis que outros.

Cada tipo de transporte, como aviões, transporte pesado, carro leve, tem possibilidades específicas. Há solução de eletrificação para carro leve ou de biocombustível para transporte de carga. Vai depender de como as coisas vão evoluir. Como foi a própria questão do desenvolvimento da geração distribuída no país. Ela ocorreu porque criamos uma regulação apropriada com base no barateamento de uma tecnologia.

A estratégia deveria ser a diversificação ou haveria um passo anterior a essa tomada de decisão?

A estratégia seria estarmos prontos em termos legais regulatórios para assimilar todas essas novas tecnologia. Focar na questão de fontes renováveis e na eficiência, aproveitar as oportunidades que aparecerem. Então, por exemplo, se for possível, exportarmos energia renovável para o mundo, temos que estar prontos para isso.

Na produção brasileira do etanol, a captura do CO2 com quase 100% de pureza pode resultar em emissão negativa, o que melhora consideravelmente a exportação do biocombustível. Isso é uma vantagem competitiva no Brasil?

É difícil imaginar um leque de opções tão grande como o que existe no Brasil e as oportunidades de negócios. O Brasil tem vantagem em relação aos outros países na direção da descarbonização quando consideramos o ponto de partida. Enquanto o país tem 46% da sua matriz energética renovável, o mundo concentra apenas 14%, segundo dados de 2019, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

Em relação à matriz elétrica, essa diferença é ainda maior: 82% da composição da geração nacional de energia elétrica é renovável, enquanto a média mundial é de apenas 27%, segundo relatório de 2020 da Agência Internacional de Energia (IEA).