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País da energia? Os desafios do Brasil na transição energética

País da energia? Os desafios do Brasil na transição energética

Apontada como crucial para enfrentar as mudanças climáticas, a transição energética foi o principal tema da COP28. Embora se posicione como país líder na adoção de fontes renováveis, o Brasil enfrenta obstáculos

No início de novembro, a cidade de São Paulo sofreu com fortes chuvas e ventos de mais de 100 km/h — a maior velocidade já registrada desde 1995, ano em que os dados começaram a ser computados. O resultado imediato foi um apagão histórico na capital paulista e partes de sua região metropolitana. Segundo levantamento da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no pico da crise, 3,7 milhões de pessoas ficaram sem luz.

Além de ter promovido um debate em torno da privatização do setor — visto que a eletricidade no estado paulista é gerida desde 2018 pela Enel, multinacional com sede na Itália — e levado a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta da concessionária, o apagão escancarou o ciclo alarmante da emergência climática. E evidenciou um de seus principais causadores: a matriz energética.

“O principal vilão do aquecimento global e da crise climática são as fontes de energia”, crava a cientista política e ambientalista Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. Não por acaso, a transição da matriz energética foi o principal tema debatido na COP28, a Conferência de Mudanças Climáticas da ONU, que reúne 196 países e a União Europeia, membros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC).

Em 2023, o evento foi realizado entre os dias 30 de novembro e 12 de dezembro, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos — país que é o sétimo maior produtor de petróleo do mundo. O acordo final, divulgado em 13 de dezembro, não mencionou diretamente a eliminação do uso de petróleo, mas determinou o comprometimento com o início da transição energética, triplicando a parcela de fontes renováveis ainda nesta década.

Além disso, estabeleceu a meta de atingir a neutralidade de carbono em 2050 e delimitou 1,5°C acima das médias pré-industriais como a temperatura limite para o aquecimento global (o Acordo de Paris, de 2015, previa a flexibilização para até 2°C). O teor do texto foi considerado brando por não falar em eliminar definitivamente o uso de combustíveis fósseis e não estabelecer ações claras para o que propõe, mas é inédito por sinalizar um fim para a era do petróleo.

O Brasil se destacou posicionando-se como país líder na adoção de fontes sustentáveis de energia. Por aqui, a participação de renováveis — isto é, aquelas que não se esgotam, como água e vento — chegou a 87,9% da matriz elétrica em 2022, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. No mundo, o percentual era de 29% em 2020, segundo os dados mais recentes da International Energy Agency (IEA). E, dois anos depois, a participação do carvão mineral na matriz elétrica global —altamente poluente — ainda correspondia a 35,8%, aponta o Statista.

Isso significa que para produzir 1 megawatt-hora (MWh), o setor elétrico brasileiro emite cerca de 34% do total de emissões de países europeus da OCDE, além de 24% do setor elétrico estadunidense e 12% do chinês. “O Brasil tem uma posição historicamente privilegiada em relação a sua matriz elétrica”, resume Araújo, que foi presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de 2016 a 2018.

Mas falar em matriz energética vai muito além da energia que chega aos interruptores quando acendemos a luz ou apertamos botões de liga e desliga. Envolve também o que o país consome para abastecer desde o setor de transportes, que inclui tanto os caminhões que levam nossos alimentos quanto os carros que usamos para nos locomover nas cidades, até a indústria. E aí o país tem um longo caminho a percorrer: as fontes não renováveis de energia correspondem a 52,6% da nossa matriz, com 35,7% vindo de petróleo e derivados.

Além de precisar reestruturar todo o setor de transportes, maior consumidor e emissor de carbono, o Brasil tem que lidar com algumas contradições internas — por exemplo, a pobreza energética, condição que atinge 11% das famílias brasileiras — e externas, como a insistência na exploração de petróleo para exportação.

Largada promissora

Se hoje temos uma posição confortável no abastecimento elétrico com fontes renováveis, isso é fruto da nossa posição geográfica e de escolhas feitas desde a época do Império. Em 1876, Dom Pedro II conheceu Thomas Edison na Exposição Mundial da Filadélfia, nos EUA. O monarca então convidou pessoalmente o inventor estadunidense a introduzir a iluminação pública elétrica no país: a primeira instalação foi inaugurada em 1879 na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

Em 1883, o Brasil inaugurou suas primeiras centrais termelétrica e hidrelétrica. A primeira foi construída em Campos dos Goytacazes (RJ) para abastecer o serviço pioneiro de iluminação pública no município fluminense. Já a segunda foi instalada em um afluente do rio Jequitinhonha, para atender os serviços de mineração em Diamantina (MG). Desde então, o foco dos investimentos públicos em geração de eletricidade passou a ser em hidrelétricas, com as termelétricas atendendo em períodos de seca.

O marco da diversificação da matriz de energia elétrica foi 1985, com a inauguração da primeira usina nuclear brasileira, Angra 1, no litoral fluminense. Mas a energia nuclear deixou de ser uma opção e, a partir da década de 1990, o foco da diversificação passaram a ser as matrizes eólica (com a primeira usina inaugurada em 1994, na cidade mineira de Gouveia) e solar (aberta em 2011, em Tauá, no Ceará).

“Décadas atrás, o Brasil teve um momento em que podia tomar a decisão de instalar mais termelétricas ou ir para outras fontes. Foi uma decisão técnica, geográfica e política, não tinha nenhuma relação com o clima, porque antes dos anos 1980 não havia tanto essa preocupação”, pontua o engenheiro Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). “Foi um pouco de sorte.”

“Décadas atrás, o Brasil teve um momento em que podia tomar a decisão de instalar mais termelétricas ou ir para outras fontes. Foi uma decisão técnica, geográfica e política”
— Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA)

Mas mesmo as energias consideradas “verdes” têm impactos sociais e ambientais. Entre as hidrelétricas, o caso da usina de Belo Monte é emblemático. A megaobra na bacia do rio Xingu, no Pará, durou oito anos (2011-2019) e custou aproximadamente R$ 20 bilhões. Estima-se que entre 40 mil e 50 mil pessoas da cidade de Altamira e região tiveram que ser removidas de casa.

Além disso, o represamento das águas provocou um desequilíbrio no ecossistema, afastando peixes do manancial e prejudicando o sustento de comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas. Os críticos apontam ainda que a energia produzida em Belo Monte não compensa os danos socioambientais, já que a usina nunca conseguiu entregar os 11.223 megawatts (MW) de capacidade instalada — a média atual é de 4.571 MW por mês, segundo a concessionária que administra a estrutura.

Energia para quem?

Embora os investimentos do país em energia renovável sejam exemplares, o mesmo não se pode dizer em relação à garantia do acesso da população aos serviços. Segundo levantamento de 2019 realizado pelo IEMA, quase 1 milhão de brasileiros vivem sem serviço público de energia na Amazônia Legal — embora 26% da energia consumida em todo o país venha da Amazônia, segundo apurou a BBC News Brasil em 2022.

Embora os investimentos do país em energia renovável sejam exemplares, o mesmo não se pode dizer em relação à garantia do acesso da população aos serviços. — Foto: Ana Kozuki
Embora os investimentos do país em energia renovável sejam exemplares, o mesmo não se pode dizer em relação à garantia do acesso da população aos serviços. — Foto: Ana Kozuki

E isso não leva em conta aqueles que não usam energia, principalmente a elétrica, por falta de condições financeiras. “A energia é um direito universal previsto por lei desde 2002”, explica Baitelo, em referência à lei 10.438/2002. “O governo tem a obrigação de conectar as pessoas, o problema é o que acontece depois: conseguir pagar a conta de luz. Isso ainda não foi endereçado.”

Uma das promessas do programa Luz para Todos, criado em 2003 e retomado no ano passado com a previsão de levar energia elétrica a 500 mil pessoas nas zonas rurais até 2026, é considerar novas demandas. Inclusive de famílias de baixa renda que, mesmo morando em municípios considerados universalizados, não têm acesso ao serviço. É o caso dos moradores de ao menos 15 comunidades pobres da região metropolitana do Rio analisadas na pesquisa Eficiência Energética nas Favelas, idealizada pelo Painel Unificador das Favelas (PUF) e pela Rede Favela Sustentável (RFS).

De acordo com o relatório, 31,3% das famílias vivem em condição de pobreza energética, e 69% afirmam que, caso a conta de luz fosse diminuída pela metade, gastariam mais com alimentação. “Como a tarifa de energia não tem aspecto de renda, todo mundo paga o mesmo valor, independentemente da renda, do lugar de residência e da qualidade do serviço. Isso acaba afetando as pessoas mais pobres “, aponta o cientista político Kayo Moura, que ajudou a produzir o relatório.

“Como a tarifa de energia não tem aspecto de renda, todo mundo paga o mesmo valor, independentemente da renda, do lugar de residência e da qualidade do serviço. Isso acaba afetando as pessoas mais pobres”
— Kayo Moura, cientista político e um dos autores da pesquisa “Eficiência Energética nas Favelas”

Uma família está em condição de pobreza energética quando gasta mais de 10% da renda com energia. “Quando falamos de justiça energética e acesso a energia elétrica, estamos falando de cidadania. É preciso entender como isso mexe com a autoestima da comunidade, o quanto as pessoas se sentem cidadãos de segunda classe quando são abandonadas pelo poder público.”

Tudo isso aprofunda ainda mais a desigualdade social. De acordo com um estudo publicado em dezembro de 2022 no periódico Energy Policy, famílias que não são consideradas pobres em energia tendem a ter uma renda pelo menos duas vezes maior que aquelas que entram nessa classificação. Não à toa, um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU é garantir o acesso universal a serviços de energia confiáveis e modernos até 2030.

O Índice de Pobreza Energética Multidimensional (IPEM) é uma das metodologias para aferir o nível de pobreza energética de um país. Em sua dissertação de mestrado, o pesquisador Rogério Silva Moreira, da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC), calculou o IPEM brasileiro em 0,107, nível considerado baixo (quanto mais perto de 1, a pobreza energética é considerada aguda).

Ainda segundo o texto, a ausência de computador é o indicador que mais contribui para o IPEM brasileiro (41,2%), depois da ausência de ventilador (27,9%) e do uso de combustíveis inadequados para cozinhar (24,7%). “Os resultados indicaram uma maior concentração da pobreza energética entre a parcela mais pobre da população”, conclui o autor em sua tese.

Isso se mostrou real no apagão de novembro em São Paulo. Moradores de bairros periféricos relataram que a recuperação do fornecimento de eletricidade demorou mais do que nas regiões nobres — a exemplo do Jardim Ângela, na zona sul da cidade, que segundo a Aneel foi o distrito com maior frequência de falta de luz na cidade no ano passado. “A transição energética é o termo mais discutido no mundo, mas países como Brasil, Índia e países na África ainda estão alguns passos atrás, pois a inclusão também faz parte da transição”, conclui o gerente de projetos do IEMA.

Desvio de caminho

Além de buscar soluções para a pobreza energética, principalmente no caso da eletricidade, o Brasil deve prestar atenção especial ao setor de transportes, que consome 33% da energia do país, pouco à frente das indústrias, com 32%. Só que, enquanto as indústrias emitem 76,7 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), os transportes lançam 210,4 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, conforme o Relatório Síntese do Balanço Energético Nacional de 2023, feito pela EPE.

Em 2022, o consumo de energia do setor aumentou 5% em relação ao ano anterior, com queda de 1% de fontes renováveis na matriz. “Nossa matriz rodoviarista e a insuficiência de transporte coletivo nas cidades levam ao uso forte de gasolina e diesel. Teríamos que incentivar veículos com emissão zero, como os elétricos. Tudo isso vai ser um processo de transformação pelo qual o mundo já está passando”, aponta Suely Araújo.

Para o economista Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro, é preciso colocar uma lupa no setor para estabelecer medidas possíveis e realizar a transição. “O Brasil quer tornar o carro popular mais acessível, mas a grande agenda deveria ser entender como melhorar o transporte coletivo para incentivar seu uso”, pontua Lisbona.

Supondo que nossa matriz elétrica seja principalmente renovável, eletrificar rotas passíveis de eletrificação — como frotas de última milha ou ônibus urbanos — são nichos que ele considera fáceis de “atacar” de imediato.

Matriz energética brasileira (à esquerda) em comparação com a matriz energética mundial (à direita). — Foto: Ana Kozuki
Matriz energética brasileira (à esquerda) em comparação com a matriz energética mundial (à direita). — Foto: Ana Kozuki

Mesmo assim, nem tudo poderá ser substituído por fontes renováveis. “Tem usos que são difíceis, especialmente os que envolvem carga pesada”, afirma. Nesses casos, criar o que ele chama de “corredores azuis” — rotas com infraestrutura para garantir o abastecimento de veículos movidos a gás natural (a cor azul remete à chama gerada pelo combustível) — ou substituir derivados do petróleo pelo gás natural veicular (GNV) já traria ganhos significativos neste momento de transição.

A dependência de petróleo — e a consequente insistência do país em explorá-lo — é talvez o ponto mais contraditório quando o assunto é transição energética. Em um dossiê elaborado pelo Observatório do Clima com propostas para a política ambiental brasileira em 2023 e 2024, organizado por Suely Araújo, a entidade pontua que “é preciso restringir ao máximo possível a expansão da produção petrolífera, que se choca com a realidade da crise climática e as recomendações da Agência Internacional de Energia.”

Também coloca como proposta urgente o veto à expansão de exploração offshore de petróleo e gás em áreas de reconhecida sensibilidade ambiental. “Não dá para ser um líder climático e um ‘petroestado’ ao mesmo tempo”, critica Araújo.

Mas esse parece ser o objetivo. Em agosto, o governo federal apresentou uma nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em que prometeu deixar no passado a visão que opõe o crescimento econômico à proteção ambiental. Entretanto, um quinto dos R$ 1,7 trilhão de investimentos previstos devem ser alocados para áreas de petróleo e gás.

Enquanto o orçamento para combustíveis de baixo carbono é de R$ 26,1 bilhões, os fósseis devem receber R$ 335,1 bilhões. Na COP28, o Brasil anunciou a adesão à Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados (Opep+), que reúne 13 nações aliadas ao grupo principal da Opep, o que foi fortemente criticado por entidades como Greenpeace e o próprio Observatório do Clima.

Atualmente, um dos principais planos do país é explorar petróleo na foz do rio Amazonas. A Petrobras, que desde 2014 busca o licenciamento junto ao Ibama para a empreitada, estima que as reservas, localizadas a 175 quilômetros da costa do Amapá e a 2.880 metros de profundidade, contenham 30 bilhões de barris.

Já os ambientalistas críticos ao projeto apresentam modelagens e simulações que apontam que um possível vazamento levaria óleo a pelo menos outros oito países da região: Barbados, Granada, Guiana, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago e Venezuela, além dos territórios da Guiana Francesa e Martinica.

Caso isso se concretize, as emissões de gases de efeito estufa anulariam os ganhos obtidos com a redução do desmatamento da Amazônia, conforme apontam cálculos de pesquisadores do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) feitos a pedido da Agência Pública em dezembro.

“É uma contradição que, domesticamente, a energia seja limpa, mas o Brasil pretenda vender petróleo para o mundo até quando for possível, para depois de 2050, sendo que relatórios internacionais deixam claro que não existe esse orçamento de carbono que comporte os investimentos em petróleo”, critica o especialista do IEMA, que descreve a situação como “um jogo de cartas onde ninguém quer sair da mesa.”

Em encontro com organizações da sociedade civil e movimentos sociais na COP28, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou justificar a decisão do governo. “Acho importante a gente participar porque a gente precisa convencer os países produtores de petróleo de que eles precisam se preparar para o fim dos combustíveis fósseis”, disse Lula. “Se preparar significa aproveitar o dinheiro que eles lucram com petróleo e fazer investimento para que continentes como o africano e a América Latina possam produzir os combustíveis renováveis que eles precisam, sobretudo o hidrogênio verde.”

O economista Diogo Lisbona, da FGV, tampouco entende como uma grande contradição a exploração de petróleo. “Ele não vai desaparecer daqui a 10, 20, 30 anos. A agenda ambiental vai tornar cada vez mais urgente essa transição, mas não vamos conseguir mudar toda a matriz da noite para o dia”, opina. “Não precisamos abrir mão dessa produção de petróleo e do que representa uma renda para o país em um mundo de transição.” Ele também destaca a dependência do petróleo para o setor petroquímico e da importância do gás natural para a produção de hidrogênio azul.

O hidrogênio é uma das apostas de combustíveis que reduzem o volume de emissão de carbono. Embora abundante, não é encontrado “puro” na natureza e precisa ser produzido — o que significa separá-lo de outros elementos, como da água, que tem dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (H2O).

A forma como esses átomos são separados é que determina a “cor” do hidrogênio: no caso do azul, ele é produzido a partir do gás natural com captura de dióxido de carbono ao longo do processo, uma espécie de intermediário entre o cinza (também produzido a partir do gás natural, mas sem a captura de CO2 e muito poluente) e o verde (sem emissão de CO2).

O economista da FGV defende, porém, que o país não pode se prender a isso, muito menos acreditar que, por ser produtor de petróleo, o insumo deve ser mais barato internamente. “Quando subsidio esse preço, estou distorcendo sinalizações de preço em um momento de transição. Devemos seguir o preço internacional, além de internalizar o custo das emissões, pois queremos que as tecnologias renováveis se tornem competitivas”, explica Lisbona. “Faz sentido continuar com nossa produção, expandir a fronteira, respeitando as condicionantes ambientais nesse mundo de transição, mas não podemos nos tornar reféns dessa produção”, pondera.

Outro ponto contraditório (e menos debatido) são projetos de lei que visam colocar reservas de mercado para combustíveis fósseis e garantir subsídios para o carvão mineral. Um exemplo é o Marco das Usinas Elétricas Offshore, aprovado em 29 de novembro na Câmara dos Deputados. Embora o texto foque na transição para energia renovável, uma emenda prevê prorrogar contratos com as termelétricas (movidas a carvão e altamente poluentes) de 2028 até 2050.

Na reta final

Apesar dos desafios e das contradições, os especialistas veem com bons olhos o processo de transição da matriz energética brasileira. “Os desafios são grandes, mas as oportunidades também. Nós temos vantagem na parte elétrica e uma fronteira de expansão que também é renovável, com fontes mais competitivas como a eólica e a solar, além da biomassa da cana”, aponta Lisbona.

Para ele, a energia é uma commodity que pode vir a ser exportada pelo país, seja bruta, seja absorvida em produtos — por exemplo, o “aço verde”, método de produção da liga metálica que utiliza carvão vegetal e contempla neutralidade das emissões de carbono.

No campo de políticas públicas, o Plano Nacional de Energia — 2050 (PNE 2050) dedica um capítulo à descarbonização da matriz nacional e outro à transição energética, com objetivo de modernizar e reduzir a pegada ambiental do setor de energia, além de trazer mais segurança e estabilidade ao sistema em um cenário de mudanças climáticas. Isso passa pela ampliação de fontes de baixo carbono, inovação tecnológica e medidas que aumentem a eficiência.

O PNE 2050 também considera os novos cenários globais, como a polarização entre EUA e China, a guerra de preços no mercado de petróleo entre Arábia Saudita e Rússia, a escalada das mudanças climáticas e o advento das tecnologias disruptivas. No entanto, embora proponha uma participação maior do setor privado e da sociedade na responsabilidade junto ao governo, o documento peca em não estabelecer diretrizes e políticas claras.

Outra ação governamental para promover a transição energética é o Novo Marco Legal de Geração Distribuída (Lei 14.300/22), que regulamenta a geração de energia elétrica e a disponibilização na rede pelos consumidores, principalmente a partir de painéis solares. O texto estabelece regras para participar da geração distribuída, incluindo a cobrança de uma tarifa de uso da infraestrutura de transmissão e distribuição elétrica, mas isentando a taxa cobrada pelo serviço prestado pelas empresas distribuidoras. Também prevê uma transição de seis anos para novos consumidores começarem a pagar pelos custos associados à distribuição.

O relatório Brasil 2045, do Observatório do Clima, divulgado em 2023, pondera que o alcance efetivo das medidas de descarbonização e eficiência energética no Brasil ainda é limitado. E recomenda algumas ações prioritárias a serem tomadas no curto prazo, entre elas: conceder incentivos econômicos a pesquisa, implantação e geração eólica; apoiar o uso do transporte público limpo; cobrar resultados de eficiência energética dos setores produtivos; descomissionar as usinas a carvão mineral; e vetar a exploração offshore de petróleo e gás em áreas de sensibilidade ambiental.

“Às vezes, parece que falta compreensão da gravidade da crise climática. Não temos tempo para ignorar a importância de um planejamento energético, o país tem que ir muito além de propaganda, não basta mostrar só os números da matriz elétrica”, pondera Suely Araújo.

“Às vezes, parece que falta compreensão da gravidade da crise climática. Não temos tempo para ignorar a importância de um planejamento energético”
— Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima

O potencial do Brasil, caso a transição se concretize, é imenso: a previsão do Observatório do Clima é que o país não só deixe o posto de quarto maior responsável pelo aquecimento global, devido principalmente ao uso do solo e desmatamento, como alcance o status de emissor negativo de carbono até 2045. Se isso acontecer, seremos a primeira grande economia a atingir esse ambicioso objetivo e nos transformaremos em uma potência ambiental. Tudo vai depender das nossas escolhas daqui para a frente.