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Os desafios para financiar a conservação da biodiversidade global e o que ganhamos com isso

Os desafios para financiar a conservação da biodiversidade global e o que ganhamos com isso

Definição de mecanismos financeiros e origem dos recursos são temas tão urgentes quanto “espinhosos” na Convenção da Diversidade Biológica. Atualmente, mundo gasta mais com videogames do que com a natureza

Enquanto o planeta se prepara para acompanhar a final da Copa do Mundo, que acontece no calor do Catar no fim de semana, no outro extremo do globo, sob o frio de Montreal, no Canadá, as discussões esquentam nos dias finais da COP 15. Em jogo na reunião da ONU sobre biodiversidade está a criação do Marco Global para a Biodiversidade (Global Biodiversity Framework, GBF), um pacto a ser assinado por quase 200 países estabelecendo novas metas de conservação, uso sustentável e repartição de benefícios advindos da biodiversidade até 2030.

A definição de mecanismos financeiros e as origens dos recursos são pontos urgentes para garantir a implementação das ações de proteção, porém estão entre os temas mais “espinhosos” nas mesas da negociação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) que termina no dia 19. Atualmente, a lacuna financeira da biodiversidade é estimada entre 598 bilhões e US$ 824 bilhões por ano até final desta década, segundo do Paulson Institute, Cornell Atkinson Center for Sustainability e da The Nature Conservancy.

Precisamos pelo menos quintuplicar os investimentos atuais até 2030. Acha muito? Generosamente, a natureza nos entrega muito mais: todos os anos, um valor estimado entre US$ 125 e US$ 140 trilhões são fornecidos pela biodiversidade para a economia planetária a cada ano, cifra superior ao PIB global. São benefícios na forma de serviços ecossistêmicos, como polinização de culturas agrícolas, água potável, ar fresco, controle de doenças, proteção contra inundações, solo produtivo e florestas e oceanos que absorvem carbono.

“Money talks”: falando a língua da decisão

Claro que o valor da natureza não deve ser reduzido pela lente utilitarista do antropocentrismo. Estimar um valor para justificar a preservação ambiental vai contra o ideário do ecocentrismo, no qual o ambiente tem valor próprio independentemente de sua utilidade para os humanos. Mas, com esforços de valoração como esses, os pesquisadores buscam falar a língua da tomada de decisão, que é econômico-financeira.

E alguém precisa pagar a conta. Embora a biodiversidade mundial seja em grande parte mantida por países em desenvolvimento, de média e baixa renda, são as nações mais ricas as principais usuárias dos dados e recursos naturais atuais e históricos, e também as grandes responsáveis pela perda de biodiversidade atrelada ao desenvolvimento das sociedades e à emergência climática.

Há 30 anos, às vésperas da Cúpula da Terra (Rio-92), nasceu o Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, da sigla em inglês para Global Environment Facility). Diversos países se comprometeram a contribuir para o fundo, que financia ações de proteção e restauração ambiental em todo o mundo. Até hoje, no entanto, esse mecanismo não se consolidou, haja vista o financiamento aquém do necessário: o GEF mobilizou pouco mais de US$ 140 bilhões até agora, que se dividem entre projetos ambientais e climáticos — valor bem menor do que a receita obtida pela indústria de videogames no ano passado (US$ 214 bilhões).

Para reduzir o gargalo financeiro da biodiversidade, países megabiodiversos do Sul Global, como Brasil, Bolívia, Costa Rica, Colômbia, Indonésia, Quênia, México, Filipinas, Venezuela, África do Sul entre outros, defendem que as nações mais ricas façam doações para um novo fundo que seja específico para ações em biodiversidade. O grupo defende que os países ricos se comprometam com pelo menos US$ 100 bilhões anuais ou 1% do PIB global até 2030, para a preservação da biodiversidade em países em desenvolvimento, mas as nações desenvolvidas resistem a aceitar.

“Metas ambiciosas, mensuráveis e com conceitos claros podem contribuir de forma mais eficaz para acelerar o combate à perda da biodiversidade e, consequentemente, aumentar o compromisso dos países, em especial os mais ricos, em estabelecer mecanismos financeiros que contribuam para reduzir a lacuna de financiamento global”, diz Karen Oliveira, diretora para Políticas Públicas e Relações Governamentais da TNC Brasil. Ela acrescenta que, além de novas fontes de recursos financeiros, são também necessários os meios para prover estes recursos, como cooperação técnica, transferência de tecnologia e capacitação.

Buscando outras formas de mobilizar recursos para projetos nacionais, um grupo de países africanos propôs um mecanismo multilateral baseado na taxação de 1% sobre todos os produtos que usam informação genética da biodiversidade, amplamente aplicadas em diferentes indústrias, de soluções de biotecnologia e farmacologia à cosmética. A receita advinda dessa taxa, aplicável nos países desenvolvidos, seria utilizada para financiar esforços de conservação da biodiversidade nas nações em desenvolvimento, proposta que também encontra fortes resistências.

Um instrumento econômico que tem ganhado apelo é a venda de créditos da biodiversidade, semelhantes aos créditos de carbono, mas, em vez das emissões de carbono, eles representam uma certa quantidade de biodiversidade. Em relatório recente, a ONU sinalizou que apoia o desenvolvimento dos chamados “biocréditos” para ajudar a o mundo a frear esta crise. Alguns economistas ambientais argumentam que a solução poderia atrair maior financiamento do setor privado, podendo atingir o montante de US$ 1 trilhão por ano até 2030.

Há divergências. Mais de 100 acadêmicos e grupos ambientais capitaneados pelo think thank independente Green Finance Observatory publicaram uma carta aberta dizendo que incentivos de livre mercado “promoveriam uma valoração monetária sem sentido da natureza”. Eles defendem o endurecimento e cumprimento das regulamentações de proteção ambiental no mundo e criticam o que consideram ser um movimento de privatizar a conservação e reconceitualizá-la com base em considerações de rentabilidade.

“A promoção de mercados de compensação da biodiversidade poderia transferir decisões críticas de conservação para o nosso futuro aos mercados financeiros e as suas conhecidas oscilações de humor”, diz um trecho do extenso documento. “O conceito em si não é novo, mas sua aplicação exige um amplo debate, adoção de salvaguardas socioambientais que garantam governança, transparência e a justa e equitativa repartição de benefícios pelo uso sustentável da biodiversidade e o bem-estar social”, pondera a diretora para Políticas Públicas da TNC.

Cada vez mais endividados e enfrentando riscos de crise fiscal, os países em desenvolvimento também enxergam na reestruturação de suas dívidas externas uma saída para facilitar os investimentos em biodiversidade. Por serem menos capazes de arcar com recursos para fortalecer sua resiliência porque os orçamentos estão sobrecarregados por dívidas, eles propõem “Trocas da Dívida pela Natureza” (do inglês Debt-for-Nature-Swaps ou DNS na sigla). Os DNS são uma transação voluntária na qual parte da dívida de um país em desenvolvimento é cancelada ou reduzida por um credor, em troca do devedor assumir compromissos com a conservação. Segundo o Fundo Monetário Internacional, 59 países entre as economias mais vulneráveis aos efeitos da emergência climática enfrentam “alto risco” de uma crise fiscal.

Público x Privado

Cada vez mais cresce a pressão para que o setor privado contribua com uma parcela maior do financiamento para a natureza. Levantamento do Fórum Econômico Mundial mostra que os negócios são mais dependentes da natureza do que se pensava anteriormente, com aproximadamente US$ 44 trilhões de geração de valor econômico moderada ou altamente dependente do meio ambiente.

Atualmente, cerca de 80% dos investimentos na natureza vêm de fontes públicas. Ao mesmo tempo, de acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), os governos gastam entre US$ 500 bilhões e US$ 1 trilhão em “subsídios prejudiciais ao meio ambiente” todos os anos, em setores como o de combustíveis fósseis e na agricultura, por exemplo, na compra de pesticidas.

“O redirecionamento desses recursos para setores com atividades positivas para a biodiversidade poderia gerar novos empregos e especialmente em mercados menos desenvolvidos. A revisão desse subsídios pode ser um bom começo”, diz Malu Nunes, diretora executiva da Fundação Grupo Boticário. Existe potencial para uma situação em que todos saem ganhando, natureza, as pessoas, a economia e os atores empresariais e financeiros? Sim, se em conjunto pudermos responder com urgência ao desafio de proteger e restaurar o meio ambiente, começando a identificar, avaliar, mitigar e divulgar regularmente os riscos relacionados à natureza para evitar consequências potencialmente graves.

Melhor: os benefícios podem até superar os investimentos. Em novembro, mais de 70 especialistas em finanças da biodiversidade da Europa e da Ásia compartilharam abordagens para reduzir a lacuna de financiamento global para a gestão do tema. Mais do que deter a extinção, mobilizar recursos para a biodiversidade protege os ecossistemas dos quais milhões de pessoas dependem, incluindo florestas, rios e oceanos. Em comunicado, afirmam que cada investimento de US$ 1 bilhão reduz o número total de espécies animais e vegetais ameaçadas em 0,57%. No entanto, lembram, que apenas 0,19% do PIB acumulado do mundo é destinado à biodiversidade.

No Brasil, um exemplo efetivo de ganhos superando investimentos é o Movimento Viva Água, apoiado pela Fundação Grupo Boticário, que promove segurança hídrica e adaptação às mudanças climáticas em bacias hidrográficas do país. “No rio Miringuava, no sul do país, uma análise de custo-benefício revelou que os benefícios gerados pelas ações de restauração e conservação da natureza superam os custos em 45%. A cada R$ 1 investido no projeto, temos um total de R$ 2,46 gerados em benefícios como a disponibilidade de água, retenção de carbono entre outros serviços ambientais”, conta a diretora executiva da Fundação.

“Lembrando que nem todos esses benefícios a gente consegue medir, dar um valor em moeda”, pontua. Isso é só um exemplo da importância das empresas se envolverem na conservação da biodiversidade e de mobilizarem suas cadeias de valor, com impactos positivos tanto para o meio ambiente como para a sociedade, acrescenta Malu. A executiva considera o momento crucial para a biodiversidade ser inserida nos planos de crescimento e desenvolvimento econômico dos países. “A natureza é a base para uma economia forte, uma sociedade em desenvolvimento com segurança e qualidade de vida”, crava.

*Esta história foi produzida como parte de uma bolsa virtual obtida pela jornalista para a CBD COP15 organizada pela Earth Journalism Network da Internews.