Anchor Deezer Spotify

Os cientistas que vivem em busca de morcegos para colher agentes ligados a novas doenças

Os cientistas que vivem em busca de morcegos para colher agentes ligados a novas doenças

Pesquisadores da Fiocruz escolheram a Amazônia pela biodiversidade da região ainda pouco conhecida

A casa de madeira em Bagre, na Ilha de Marajó (PA), consiste num só cômodo de pouco mais de 20 metros quadrados. Nela vivem pai, mãe, dois filhos e avó. Sem porta ou janelas, não difere muito das demais numa região com os piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil. Nela, cientistas de uma expedição liderada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) encontraram espremidos entre duas tábuas de telhado mais de 200 morcegos. E pessoas e morcegos vivendo juntos num cubículo compõem um retrato de uma Amazônia de biodiversidade e problemas de saúde pública com a imensidão da floresta.

Os cientistas fazem parte do projeto “Rede de prospecção e monitoramento de agentes zoonóticos associados a morcegos no Brasil”, financiado pela Faperj e coordenado pela Fiocruz, com a participação de pesquisadores de sete universidades.

Na primeira etapa, os cientistas foram a Marajó em busca de morcegos e dos vírus e outros micróbios causadores de doenças que carregam.

O coordenador da rede, Ricardo Moratelli, da Fiocruz Mata Atlântica, explica que todos os biomas serão investigados. Mas a Amazônia, devido ao tamanho e à biodiversidade, ainda pouco conhecida, é crucial.

— De forma geral, sabemos pouco sobre a circulação de patógenos (microrganismos causadores de doenças) em morcegos no Brasil. Áreas com elevada biodiversidade têm grande número de patógenos na fauna silvestre. Hospedeiros e microrganismos vivem num equilíbrio delicado, quebrado por atividades como desmatamento e garimpo. Caça e tráfico de animais silvestres também trazem risco — frisa Moratelli.

Dentre os vírus registrados para a região, destaca-se o da raiva, a doença mais letal do planeta, transmitido principalmente por morcegos. Também há, por exemplo, arenavírus, que podem causar febre hemorrágica.

Marajó foi escolhida porque foi palco de um dos piores surtos de raiva humana no país, registrado em 2018. Na ocasião, ocorreram 12 mortes pela doença, sendo 11 crianças e um adulto.

— Desde 2021 a Fiocruz apoia ações de combate à raiva na região, pois mordeduras por morcegos são constantes na população ribeirinha que vive em situação de vulnerabilidade social — afirma Moratelli.

Associados à possível origem do Sars-CoV-2, os morcegos são os mamíferos silvestres mais abundantes do mundo e também os mais ligados a doenças. Os morcegos têm adaptações fisiológicas e imunológicas que os fazem conviver com vírus e outros microrganismos com potencial de causar doenças em humanos.

Ninguém come morcego em Marajó. Mas não é preciso colocar o voador no prato para contrair algum de seus micróbios. Um bom exemplo disso é a emergência do vírus Nipah na Malásia e em Cingapura em 1999, quando humanos se infectaram ao comer porcos. Estes tinham contraído o hemorrágico Nipah ao ingerir frutas parcialmente comidas por morcegos. Tempos depois o Nipah voltou a infectar pessoas, desta vez por meio do consumo da seiva de uma palmeira que morcegos bebiam.

Marajó amarga os piores IDHs do Brasil (o mais baixo é o de Melgaço; Bagre tem o oitavo pior) e é um mar de dificuldades para caçadores de vírus ou qualquer um que se aventure a explorar as ilhas.

Especialista em morcegos, o biólogo Roberto Novaes, também da Fiocruz Mata Atlântica, conta que já trabalhou muito na Amazônia, mas Marajó é um desafio especial. Só se chega de barco e a floresta de várzea é um labirinto de lamaçais, barrancos e alagadiços. As marés ditam o horário para entrar e sair.

Quem mora nas comunidades ribeirinhas de Marajó não tem muitas perspectivas, além da extração de açaí e de buscar emprego em serrarias, onde árvores viram cabos de vassoura. Os moradores criam de tudo um pouco, porcos, galinhas. Pessoas e animais vivem juntos. As casas quase sempre não têm portas e janelas.

Mosquitos há de sobra e a malária é frequente. Mas quase ninguém usa mosquiteiro, num lugar onde faltam dinheiro e informação. Novaes estima que mais de 50% dos moradores sejam analfabetos funcionais.

Os ataques de morcegos estão longe de serem raros. As pessoas se protegem como podem. Há quem apele para garrafadas feitas de ervas diversas, para “cortar o veneno” do morcego.

Quando os pesquisadores estiveram em Marajó, uma criança tinha sido mordida por um vampiro há poucos dias. O morcego foi visto caminhando pelo chão perto do lugar onde quatro crianças dormiam.

— Eles preferem as crianças porque elas têm a pele fininha, mais fácil de romper. Além disso, crianças também costumam ter o sono mais pesado e não acordam com a sutil mordida do morcego — explica Novaes.

Ele relata que mesmo os morcegos sendo comuns, os cientistas não esperavam encontrar uma casa com mais de 200 deles convivendo com as pessoas, abrigados no telhado. Foi possível capturar 140 animais.

— Certamente eram mais de 200, mas muitos escaparam — diz Novaes.

Os morcegos dessa casa em particular eram insetívoros. Como indica o nome, se alimentam de insetos. Mas o risco em potencial está em suas fezes. Quando secas, elas viram pó. O calor do Sol faz com que parte vaporize e esse aerossol pode cair e ser inalado pelas pessoas, carregando vírus, fungos, bactérias e o que mais houver.

— Não é impossível o transbordamento, caso o morcego seja portador de um vírus capaz de se adaptar aos seres humanos. Por isso, é tão essencial conhecer os morcegos e todos os microrganismos que carregam — explica Novaes.

A interação com a fauna na Amazônia é intensa. Até demais. A quantidade de animais que comem é grande. Morcegos não fazem parte da dieta, mas há estreito contato com eles. Seja porque vivem em qualquer recanto das casas seja porque se alimentam dos animais silvestres e de criação que as pessoas comem.

A falta de informação sobre higiene é regra, diz Novaes. Quando um animal é morto, não raro há sangue pelo chão, pelas panelas. E no sangue pode haver uma série de microrganismos.

Os pesquisadores trabalham à noite, hora dos morcegos. Os locais de instalação de redes são determinados pelo histórico de ataques de morcegos hematófagos a pessoas e animais.

Existem três espécies de morcegos hematófagos no Brasil, todos presentes na Amazônia. O mais comum e conhecido é o vampiro (Desmodus rotundus). Outra é o morcego-vampiro-de-asas-brancas, que costuma se alimentar do sangue de aves silvestres, como os jacus, mas ataca galinhas quando estes faltam.

Há também o vampiro-de-pernas-peludas. Este se pensava só sugar aves, mas em 2009 se descobriu que, eventualmente, pode se alimentar de sangue humano.

Na Amazônia, enfatiza Novaes, existem todos os elementos para a tempestade perfeita de doença. A combinação de miséria e ambientes selvagens é perigosa. Há pessoas subnutridas e, por isso, imunologicamente mais frágeis, com contato direto com a fauna silvestre, seja pela moradia seja pela caça, e falta de acesso a serviços de saúde.

— É um ambiente de instabilidade ecológica, que a ciência ainda mal começou a revelar e que precisa de políticas públicas especiais — afirma Novaes.

Vigilância epidemiológica, saúde preventiva e educação são essenciais na prevenção, frisam os cientistas. As pessoas precisam ter acesso a serviços de saúde e informação de que devem evitar o contato direto com a fauna silvestre, não manipular o sangue dos animais.

A biodiversidade e o desconhecimento sobre a Amazônia são tamanhos que em apenas dez dias de campo, os pesquisadores descobriram três novas espécies de morcegos. Ainda estão sendo cientificamente descritas, mas duas são insetívoras e outra se alimenta de frutas e néctar. Possivelmente um gênero novo (conjunto de espécies) foi encontrado. Os cientistas coletaram 5.000 amostras para detecção viral.

— Quem habita a Amazônia precisa aprender a viver com o risco controlado. Não adianta acabar com os morcegos. Não apenas ele é o mamífero mais abundante quanto, se desaparecer, os vírus e outros patógenos que vivem neles vão procurar outros hospedeiros, incluindo o ser humano. Nossa função é descobrir novos patógenos e o papel dos morcegos no espalhamento deles — acrescenta Novaes.