Ondulações nos anéis de Saturno revelam o núcleo gigante e pastoso do planeta
O núcleo de Saturno é uma mistura imensa e inesperada de gelo, rocha e gás, surpreendendo os cientistas que tentam descobrir como o planeta se formou e evoluiu para o enigmático mundo que vemos hoje.
Escondida em meio à abundância do sistema solar, encontra-se uma recompensa inesperada: o gigantesco núcleo de Saturno, que ocupa até 60% da largura do planeta. O núcleo, medido recentemente e revelado através de ondas sutis nos anéis de Saturno, parece ser formado por gelo, rocha e gás misturados em uma massa pastosa com bordas indistintas.
“É enorme”, afirma Chris Mankovich, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), um dos autores de um novo estudo que descreve o núcleo de Saturno na revista científica Nature Astronomy. “Com certeza não é algo que esperávamos encontrar.”
As características do imenso núcleo de Saturno fizeram os cientistas repensar como o planeta pode ter se formado e como gera seu campo magnético estranhamente uniforme. “É mais complexo do que pensávamos que seria”, comenta Sabine Stanley, da Universidade Johns Hopkins, que não participou do novo estudo.
O núcleo de Saturno, que contém cerca de 17 vezes a massa da Terra, é formado por uma mistura de hidrogênio, hélio, gelo e rocha.
Para examinar o interior de Saturno, os cientistas observaram os anéis do planeta, que atuam como um sismógrafo, registrando a pulsação e o movimento interno do gigante gasoso. Ao decodificar ondulações sutis nos anéis, a equipe descobriu que o núcleo de Saturno contém material equivalente a 17 vezes a massa do planeta Terra, e que não é um pedaço distinto e compacto de rocha e ferro como esperado.
“É muito difícil constatar quaisquer dados sobre as partes mais profundas de um planeta, especialmente de planetas gigantes”, afirma Stanley. “Qualquer informação que conseguimos obter aprimora o que sabíamos antes.”
Agora os cientistas precisam descobrir como planetas gigantes como Saturno podem crescer com núcleos tão grandes e irregulares. E, para complicar a questão, o interior recém-revelado de Saturno torna difícil explicar como o planeta sustenta seu enigmático campo magnético.
“Uma das maiores dificuldades a respeito de Saturno é explicar as observações de seu campo magnético, que é bastante intrigante por diversos motivos”, explica Mankovich. “Essa é uma característica fora do padrão para a estrutura interna do planeta.”
Um portal para o interior do planeta
Saturno talvez seja mais conhecido por seus anéis cintilantes que orbitam o planeta e, vistos de longe, parecem sólidos. Na verdade, esses anéis são formados por inúmeros pedaços de gelo — alguns do tamanho de casas, outros menores do que pedregulhos — que podem ser empurrados, puxados e esculpidos por interações gravitacionais com o planeta e suas luas. Algumas dessas luas abrem lacunas nos anéis, enquanto outras aparam suas bordas e os mantêm organizados.
Os anéis também registram o funcionamento interno de Saturno. Normalmente, cientistas utilizam flutuações no campo gravitacional de um planeta para investigar abaixo de sua superfície — mas essa técnica não é capaz de penetrar no interior profundo de um gigante gasoso como Saturno. Os anéis, no entanto, fornecem um acesso para as profundezas do núcleo do planeta.
No início da década de 1990, o cientista planetário Mark Marley teorizou que movimentos no interior de Saturno poderiam criar ondulações observáveis no anel C do planeta, que é um anel largo, mas indistinto, localizado próximo ao astro. Enquanto seu núcleo oscila e seu interior se move, o planeta pulsa. Essas oscilações interagem com as partículas dos anéis e produzem o fenômeno conhecido como ondas de densidade em espiral, ou ondulações dentro do anel C.
Todas essas ideias “acabaram se provando corretas”, afirma Mankovich. Mas seriam necessárias mais de duas décadas e uma missão espacial multibilionária para confirmar as previsões.
Em 2013, ao estudarem dados da espaçonave Cassini, da Nasa — que orbitou Saturno de 2004 a 2017 — cientistas leram as primeiras assinaturas sísmicas nos anéis e as utilizaram para analisar o interior do planeta. A equipe cunhou o termo “kronoseismology” (cronoseismologia) para descrever esse novo campo de estudo, e relacionaram a maioria das ondulações observadas a movimentos dentro do planeta. Em 2019, cientistas utilizaram a cronoseismologia para determinar que Saturno dá uma volta completa a cada 10 horas e 33 minutos.
“Este não é um campo para pessoas impacientes”, comenta Marley, rindo. Ele agora trabalha na Universidade do Arizona e atuou como revisor do novo estudo. “Descobrimos que todas essas ondas realmente estão lá, que pelo menos vinte ou mais delas estão mais ou menos onde previmos.”
Mas também há pelo menos uma onda misteriosa que Marley não previu — e é aquela que Mankovich e Jim Fuller, também da Caltech, utilizaram para olhar diretamente para o núcleo de Saturno.
“Eles mostram, de forma muito convincente, que só é possível explicar essa onda adicional, juntamente com todas as outras, se Saturno possuir um núcleo difuso e gradual”, explica Marley. “Essa onda de anel específica é muito sensível às profundezas do planeta.”
O núcleo colossal de Saturno
Utilizando essa ondulação do anel, Mankovich e Fuller constataram que o núcleo de Saturno ocupa a maior parte do planeta. Contrariando as expectativas, ele é formado por uma mistura difusa e pastosa de hidrogênio, hélio, gelo e rocha, em vez de um pedaço sólido de ferro e rocha. Se fosse possível dividir Saturno ao meio, não haveria camadas distintas como as que existem dentro de cebolas, balas recheadas ou do planeta Terra. Em vez disso, a borda do núcleo se mistura com o exterior e, quanto mais fundo se vai, mais denso o material se torna.
Nas temperaturas e pressões extremas do núcleo de Saturno, os gases se comportam mais como fluidos metálicos do que como nuvens de ar, e todo o conjunto é uma mistura de materiais exóticos difícil de replicar em laboratórios aqui na Terra. Mankovich conta que, quando ele e Fuller viram como a imagem de Saturno tinha ficado estranha, tentaram encontrar outra explicação para a assinatura sísmica nos anéis.
“Nós tentamos descartar essa hipótese de todas as formas possíveis”, afirma ele, mas a imagem do núcleo de Saturno no novo estudo “parece ser o que os dados estipularam”.
Embora inesperado, o modelo do núcleo de Saturno se encaixa perfeitamente com a riqueza de dados coletados por cientistas sobre a gravidade do planeta. Também ecoa descobertas da espaçonave Juno, da Nasa, que sugerem que o núcleo de Júpiter pode ser uma mistura similar e difusa de ingredientes.
No entanto, Júpiter não possui um sistema de anéis espessos para registrar seus movimentos internos. “Precisaríamos explodir uma das pequenas luas de Júpiter”, brinca Marley, para criar um anel que registre os movimentos do núcleo do planeta.
Vários mistérios para resolver
A história clássica de origem de um grande mundo gasoso começa com pequenos pedaços de material que vão se aglomerando e crescendo cada vez mais até que a gravidade do protoplaneta atrai todo o gás nas proximidades. Mas não está claro se esse cenário poderia dar origem a um núcleo como o que Mankovich e Fuller observaram.
É possível que o núcleo de Saturno tenha evoluído e mudado durante seus 4,5 bilhões de anos de existência, talvez se dissolvendo lentamente em hidrogênio metálico líquido ou sendo modificado por outros processos desconhecidos. “Nós simplesmente não sabemos ainda”, afirma Mankovich.
Outra surpresa é que Mankovich e Fuller deduziram que o núcleo não é convectivo, o que significa que não movimenta o calor como esperado — uma observação que pode explicar por que Saturno é surpreendentemente brilhante sob a luz de infravermelhos. “Júpiter é tão brilhante quanto se esperaria que fosse depois de 4,5 bilhões de anos, mas Saturno é brilhante demais”, compara Marley. “Pelo fato de [o núcleo] não ser convectivo, ele retarda o resfriamento e se torna mais brilhante do que deveria.”
Mas um núcleo não convectivo apresenta um desafio substancial para a compreensão do campo magnético do planeta. Normalmente, os campos magnéticos planetários são alimentados por um dínamo — uma camada giratória e convectiva de fluido que funciona como um condutor elétrico nas profundezas do núcleo do planeta. Mas isso não é possível em Saturno, onde 60% do planeta não tem convecção, de acordo com o novo estudo. Cientistas agora estão se perguntando se uma fina camada de hidrogênio metálico líquido pode estar se movendo dentro ou talvez do lado externo do núcleo.
Mas, mesmo com essas teorias, é difícil explicar o campo magnético estranhamente simétrico de Saturno, que é diferente dos campos inclinados e irregulares da Terra e de Júpiter. Uma possibilidade é que uma camada de chuva de hélio possa estar suavizando as linhas do campo magnético antes que atinjam a superfície do planeta, mas os pesquisadores não têm uma boa explicação de como o núcleo gigante pode afetar esse processo.
“É muito difícil ocorrer isso com campos magnéticos, e impossível de ocorrer com um dínamo, mas está acontecendo em um planeta gigante”, comenta Stanley, que está trabalhando com Mankovich e Fuller para desvendar o quebra-cabeça magnético. “É por isso que a ciência é divertida.”
Responder a essas questões sobre Saturno exigirá analisar com atenção as informações coletadas pela espaçonave Cassini, realizar simulações detalhadas de interiores planetários com supercomputadores e fazer experimentos com telescópios a partir da Terra. No futuro, cientistas também podem usar esses métodos para examinar os anéis de outros planetas, como Urano e Netuno, descobrindo quaisquer segredos que possam estar escritos em suas partículas de gelo.
“Há inúmeros mistérios sobre esses anéis”, afirma Marley, “então queremos descobrir se acontece a mesma coisa em outros planetas”.