O Rio daqui a 100 anos: especialistas projetam uma cidade mais verde, com mais espaço para pedestres e com avanço do mar

Arquitetos e urbanistas foram convidados pelo GLOBO a pensar como será a vida dos cariocas em 2125, tendo como eixo o meio ambiente e o combate às desigualdades
Esqueça o óbvio. Pode até ser que, no futuro, o Rio veja surgir arranha-céus ainda mais altos, finos e inteligentes do que os raros megatalls atuais. Há chance de que veículos autônomos — inclusive voadores, por que não? — se tornem tão comuns quanto táxis numa tarde em Copacabana. É provável que robôs de todo tipo e tamanho sejam cada vez mais presentes nas rotinas domésticas e profissionais. Não chega a ser difícil imaginar um androide de chapéu vendendo mate aos berros na praia. Tudo isso — e mais — sob comando de sistemas de inteligência artificial cada vez mais precisos.
No mês em que completa um século, O GLOBO convidou arquitetos e urbanistas a olhar adiante e imaginar como será, ou deveria ser, a cidade daqui a 100 anos. De modo geral, os clichês futuristas listados acima ficaram de fora. Em seu lugar, uma tendência se impôs: a busca por soluções sustentáveis e pela adaptação às inevitáveis mudanças climáticas. O futuro parece ter uma cor, e ela é verde.
Utopias possíveis
O Rio de 2125, imaginado em entrevistas, ilustrações e textos enviados ao jornal, surge com menos carros e mais sombras de árvores. No lugar do concreto e do asfalto, vegetação viva, telhados verdes, hortas comunitárias, vias com prioridade para pedestres, rios visíveis e limpos, moradia digna, transporte (quando necessário) eficiente e menos desigualdade social. Um conjunto de utopias possíveis — algumas simples, outras nem tanto — e, acima de tudo, urgentes. Para chegar lá com uma cidade onde se respira e vive melhor, não há milagre: é preciso agir desde já.
Em artigo no qual apresenta as transformações no Rio no contexto de mudanças em todo o mundo, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo prevê o desaparecimento de praias cariocas ante a forte tendência de elevação do nível dos oceanos, mas vê aí uma chance de a cidade retomar sua “vocação aquática” com a “Baía de Guanabara, finalmente, despoluída”, sendo transformada em “espaço central da vida urbana, com parques costeiros, praias calmas e novas formas de circulação”.
Uma ‘veneza’ na zona sul
No cenário hipotético de Fajardo, “Ipanema e Leblon sofreram muito com a elevação do mar, diques foram construídos e protegem os bairros das águas do oceano. As ruas foram substituídas por canais, e a vida se organiza entre barcos, muito uso de ciclomobiles e tudo se resolve a pé”.
Ex-secretário de Planejamento Urbano do Rio (2021-22), Fajardo prevê ainda que em 2125 a Zona Norte terá florescido “a partir de uma nova relação com a água”, e a Avenida Brasil será “considerada uma das avenidas mais bonitas do mundo”. O texto segue cogitando que “as favelas não desapareceram, mas melhoraram muito” e “a Rocinha passou por um processo de qualificação urbana que manteve sua identidade e densidade, incorporando edifícios ecológicos de médio porte, todos de madeira, praças públicas elevadas, arborização intensa e sistemas sustentáveis”.
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Morador do Morro da Providência e criador do Instituto Arquitetos de Favela, Fernando Pereira, de 30 anos, foca a sua reflexão sobre o futuro do Rio justamente na necessidade de requalificação dos territórios.
— O desafio é incluir a favela. O fato é que o Rio é uma grande favela com alguns pontos urbanizados. Para onde você olhar, tem favela. Então, é ela que tem de ser a prioridade no presente e no futuro. É o principal eixo para pensar o Rio daqui a 100 anos — opina o jovem arquiteto. — E, nesse contexto, acesso à moradia é fundamental. Ela é o primeiro passo para a dignidade.
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Em artigo escrito a pedido do GLOBO, a presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ), Marcela Abla, analisa primeiro os últimos 100 anos em que a cidade, reconhecida como “maravilhosa” por sua paisagem, passou a conviver “com um território profundamente marcado por desigualdades sociais, com uma estrutura urbana excludente, que se expressa, sobretudo, na persistente crise habitacional.”
Sobre os desafios climáticos, Abla chama a atenção para a necessidade de “pensarmos o Rio como uma cidade policêntrica, configurada por múltiplos centros conectados entre si, onde os deslocamentos sejam curtos, eficientes e sustentáveis — inclusive por meio flutuante”, e cita o “arquiteto nigeriano Kunlé Adeyemi (…), com a projeção de suas escolas flutuantes, apostando que construir com a água, e não contra ela, pode ser o caminho viável para muitas cidades costeiras”.
Preservar e conviver
Para Lucas Rosse, professor no Programa de Engenharia Civil (PEC/Coppe) e no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (Proarq), da UFRJ, não é possível pensar uma cidade sustentável e inteligente sem enfrentar pautas cruciais como a desigualdade e as mudanças climáticas. Rosse olha com esperança para a revitalização do Centro, propõe atenção às chamadas “soluções baseadas na natureza” como jardins de chuva e telhados verdes e defende o incremento do transporte aquaviário:
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— Muita gente pensa que a solução está em carros voadores, vejo isso como uma transferência de problema. Vai tirar da terra e jogar para o céu. Transporte público eficiente é a base. A cidade deveria investir em modais aquaviários, inclusive. E tudo isso tem que começar o quanto antes.
Verena Andreatta, ex-secretária de Urbanismo do Rio (2017-2019) e de Urbanismo e Mobilidade Urbana de Niterói (2013-2017), é outra voz que ratifica o discurso da cidade que, “inexoravelmente, terá que ir se adaptando às alterações climáticas: subida do nível do mar, frequência de eventos climatológicos extremos, efeitos de marés e ressacas”.
A arquiteta e urbanista antevê que “o Porto do Rio será transferido para outro local e a imensa área entre os cais da Gamboa, São Cristóvão e Caju, e dentro da bacia marítima, ganhará um belo projeto de urbanização com tecnologias construtivas inovadoras”. A aposta dela é que a “Baía da Guanabara será totalmente despoluída e se tornará uma “grande lagoa” para recreação, lazer, esportes náuticos e atividades da economia do mar, como a piscicultura.
Para a arquiteta carioca Carla Juaçaba — vencedora do AR Emerging Awards de 2018 —, o futuro do Rio deve apontar para a remoção das fronteiras que hoje separam a cidade de um de seus mais importantes ativos: a natureza exuberante que a cerca.
— Existe uma linha perimetral que acompanha a cidade inteira, supostamente para preservar a natureza. Mas essa ideia de preservação tem que ser entendida de outra forma. Existem muros, reais e invisíveis, na cidade inteira, uma ideia antiga de preservação sem convivência — disse.
A ideia de Carla Juaçaba para o Rio daqui a um século é de uma cidade onde os rios hoje canalizados possam correr a céu aberto e se tornem lugares de encontro e convívio. Ela propõe ainda a supressão de ruas, tendência observada já nos dias de hoje em cidades como Paris e Barcelona. No fim das contas, a proposta é de uma metrópole na qual a floresta possa se confundir com o espaço urbano e vice-versa:
— Como se a natureza crescesse tal qual um rizoma pela cidade. E a cidade como um rizoma na natureza.
Rios à vista
A abordagem converge com o que pensa o arquiteto Pedro Rivera sobre o futuro.
— É preciso mostrar as infraestruturas naturais que hoje estão ocultas, como rios que foram canalizados ou cobertos. A cidade tem muitos rios que foram escondidos, porque são vistos como esgoto, mas eles são essenciais para a vida. Precisamos revelar e integrar, para que façam parte do cotidiano e não apenas cumpram funções invisíveis — diz.
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Rivera aposta ainda em uma Região Metropolitana em que longos deslocamentos sejam cada vez menos necessários e onde praças e hortas comunitárias proliferem:
— Não adianta ter transporte de massa para trazer um cara todo dia lá de Duque de Caxias para o Centro. Não faz sentido. É claro que você vai ter gente indo e vindo, mas não é a massa. Não pode ser essa coisa pendular, o território tem que, ele todo, prover ofertas, possibilidades de trabalho, de entretenimento, de educação, de lazer, desenvolver pluricentralidades, para que as pessoas prescindam desse deslocamento diário.
Argentino radicado no Rio há mais de 40 anos, o arquiteto Jorge Mario Jáuregui, que participou dos primeiros anos do projeto Favela-Bairro, tem propostas bem concretas para o futuro da cidade: reformular o eixo Galeão—Aterro do Flamengo, com prédios cobertos de hortas ao longo da Linha Vermelha, um VLT rápido e enormes jatos d’água saindo do mar para amenizar o calor.
Em Copacabana, Jorge Mario propõe revitalizar o calçadão central, mantendo o traço de Burle Marx e criando a Rambla Carioca, uma enorme passarela cultural com iluminação dinâmica. Já no Aterro, sua proposta é enterrar as pistas diante da Praia de Botafogo, criando um grande parque à beira-mar e facilitando o acesso à areia.
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— Essa é uma das vistas mais bonitas do Rio. Você tem o Pão de Açúcar, os barquinhos, o mar, mas ninguém usa — diz o arquiteto.
O desafio de pensar o futuro é encarado com equilíbrio pelo coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro:
— Devemos pensar o futuro que desejamos ou o futuro que parece escrito nas tendências do presente? O ideal é sair dessa dicotomia, prestando atenção nas questões que precisam ser resolvidas para termos um futuro diferente do que estamos vendo hoje. Primeiro, precisamos restaurar a capacidade institucional para pensar o futuro, sair da administração por projetos emergenciais.