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O que são RNAs não codificantes e como podem ajudar a prevenir doenças

O que são RNAs não codificantes e como podem ajudar a prevenir doenças

Sabendo que a maioria dos genes humanos são não codificantes, pesquisadores explicam como esses RNAs que não participam da síntese proteica estão relacionados e podem ser aliados da saúde

Por muitos anos, a medicina sempre focou no estudo dos RNAs codificantes – que ajudam a formar proteínas dentro da célula – nos seus esforços para entender, prever e tratar doenças de perfil genético. Mas e se eu dissesse que mais de 97% do nosso genoma é formado por estruturas não codificantes, e que estamos perdendo informação ao não estudá-las?

Uma pesquisa publicada em outubro de 2023 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) investigou como essas moléculas podem nos ajudar a diagnosticar e tratar doenças.

Antes, um passo atrás para explicar um conceito básico. O nosso genoma é uma sequência de bases nitrogenadas, as famosas “letras” que constituem nosso DNA e que compõem nossos genes. São sequências definidas de letras (como se fossem palavras) que, quando lidas, se transformam em RNAs – formados por apenas uma única fita de bases nitrogenadas. Existem vários tipos de RNAs, e os mais estudados são os codificantes. Até bem recentemente.

A medicina e a bioinformática estão cada vez mais preocupadas em identificar esses RNAs que não participam da síntese proteica, mas que intermedeiam processos celulares. No Projeto Genoma Humano, uma das surpresas para a comunidade científica foi justamente a descoberta de que a maioria dos genes humanos são não codificantes. Depois do sequenciamento do genoma, estudos internacionais começaram a parte da interpretação, ou seja, o que cada pedaço genético significa e faz.

Bibliotecas de RNAs

No trabalho de outubro de 2023, montamos uma biblioteca digital com vários tipos de RNAs não codificantes, como os micro RNAs e os RNAs longos. Para fazer isso, partimos de estudos experimentais em laboratório que já haviam identificado a participação dessas moléculas em algum processo genético relacionado a doenças.

Com a ajuda de computadores, montamos um banco de dados contendo informações sobre interações físicas entre proteínas (produtos dos RNAs codificantes) e outro com o acréscimo das informações vindas das interações dos RNAs não codificantes.

Esses bancos de dados virtuais informam quais genes e proteínas interagem entre si. Se interagem, é porque existe uma relação. Paralelamente, selecionamos mais de 800 doenças – para as quais já sabíamos que pelo menos cinco genes estavam envolvidos no processo da enfermidade – e estabelecemos uma comparação entre as duas bases de informação.

O resultado é surpreendente. Os RNAs não codificantes aumentam em 46% a leitura de genes associados a doenças e em 107% a observação de interações celulares.

Há doenças que antes só conhecíamos cerca de 10% dos processos genéticos ligados a elas. Na base de dados que inclui esses RNAs, essas doenças dão saltos informativos gigantes, mostrando que o avanço no entendimento sobre a patologia deve incluir o estudo dos RNAs negligenciados.

Pré-eclâmpsia, pancreatite e glaucoma agora são mais compreendidos

Para várias patologias, ganhamos um arsenal de informação que permite detalhar os mecanismos que podem levar à doença. Por exemplo, na pré-eclâmpsia, quadro hipertensivo específico da gravidez, conhecíamos cerca de 5% dos processos celulares correspondentes. Com a base de dados dos RNAs não codificantes, esse número aumenta para quase 80%.

O mesmo acontece para a pancreatite aguda e o glaucoma (ocasionado pelo aumento da pressão ocular). Na primeira, tínhamos cerca de 12% de dados genéticos mapeados, e os RNAs não codificantes nos oferecem mais 60% de informação. Para o glaucoma, a mesma tendência é observada.

Os genes associados a uma doença moram perto uns dos outros. Então, ao identificá-los corretamente, melhoramos o processo de diagnóstico e conseguimos entender como que aquela doença surge. Além disso, essas novas moléculas identificadas nos contam qual medicamento pode ser mais eficaz.

Genes associados mostram possíveis comorbidades

Outro achado interessante do estudo é o mapa das comorbidades. Da mesma forma que é possível estabelecer um núcleo de genes associados a uma doença, nota-se quais doenças são próximas umas das outras. Isso significa que a enfermidade pode potencializar o surgimento de uma segunda (o que entendemos como comorbidade) ou agir como fator protetor, ou seja, quando impede a ocorrência de outra doença.

No quadro de informações só com os RNAs codificantes, essas relações costumam ser poucas e sutis. Com o banco de dados dos não codificantes, o gráfico ganha uma malha rica de linhas e conexões.

Um exemplo é a relação conhecida entre a artrite reumatoide e a doença de Crohn – a primeira pode levar ao surgimento da segunda. Com os RNAs não codificantes, identificamos diversos outros núcleos de doenças que representam comorbidade, como diabetes mellitus tipo 2 e asma.

Esse tipo de estudo abre muitos caminhos de investigação. No contexto brasileiro, podemos nos concentrar nas doenças tropicais, como dengue, zika, Chikungunya e febre amarela. Um novo horizonte também se desenrola na medicina de rede, que utiliza um grande volume de dados para estudar doenças, e na medicina personalizada, que acolhe o paciente de acordo com as características individuais.

*Deisy Morselli Gysi é professora do Departamento de Estatística na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Albert-László Barabási é professor de Ciência das redes na Northeastern University, nos EUA.

Este texto foi originalmente publicado no site The Conversation Brasil.