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No fundo do mar dominado por lixo, polvos usam resíduos como tocas

No fundo do mar dominado por lixo, polvos usam resíduos como tocas

Garrafas plásticas, embalagens, latas, canudos, bitucas de cigarro, baterias, pneus… A lista não tem fim. São resíduos encontrados hoje, em abundância, nas águas e no solo de todos os oceanos do planeta. Resultado do completo descaso do ser humano com o meio ambiente. É a poluição que impacta a vida dos seres marinhos. E agora, um estudo inédito feito por um grupo de pesquisadoras brasileiras revela que está afetando também o comportamento dos polvos.

Publicado recentemente na Marine Pollution Bulletin, o artigo mostra a análise de imagens de polvos interagindo com esses materiais. Os registros foram feitos em várias regiões do mundo, o que comprova uma realidade assustadora.

Realizado em conjunto por pesquisadoras das Universidades Federais do Rio Grande, Santa Catarina e de Pernambuco e também, da Universidade de Napoli (Itália), o estudo traz um alerta sobre o uso do lixo como toca artificial.

“Os polvos são realmente muito inteligentes e estão mostrando uma grande capacidade de adaptação a esse novo cenário com o qual estão se defrontando: um fundo marinho dominado por lixo. Pode parecer até uma coisa vantajosa num primeiro momento, só que isso pode provocar vários outros problemas”, ressalta a oceanóloga Maíra Proietti, professora do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande e uma das co-autoras do artigo.

Conversamos com ela sobre a pesquisa e você confere a entrevista a seguir:

Pra começar, gostaria de saber como surgiu a ideia para o estudo?
A ideia surgiu a partir da necessidade de melhor entender como o lixo no mar está impactando os cefalópodes, que incluem o grupo dos polvos, uma espécie extremamente interessante, carismática e inteligente, mas que infelizmente existem dúvidas de como esses animais estão interagindo com esses resíduos.

Qual foi o principal resultado de vocês após a análise das imagens de interação entre polvos e lixo nos oceanos?
Observamos através dessas imagens globais que o uso do lixo como toca foi a interação mais comum, principalmente em itens de vidro opaco, que provavelmente servem de bons abrigos para esses animais evitar a predação. Percebemos também outra espécie, o polvo-do-coco, que utiliza as cascas dessa fruta como toca e para se locomover utilizando esse tipo de abrigo.

Também analisamos imagens de mar profundo, de uma centena de metros, feitas com robôs submarinos operados remotamente. Nelas, novamente, registramos a interação de espécies com o lixo. E é bem preocupante perceber essa mudança de comportamento dos polvos, ao usar resíduos como habitat.

A Ásia aparece como o continente onde foi registrado o maior número de interações. Quais outras regiões também mostram um aumento dessa interação entre polvos e lixo?
Existem vários estudos que já mostram que a Ásia é uma das principais responsáveis pela geração de lixo marinho. Mas pode não ser apenas esse fator. Na Ásia há muita atividade de mergulho e com isso, mais documentação e isso pode ter gerado mais registros dessa interação entre polvos e resíduos. Pode ser uma combinação dessas duas coisas. Mas também há imagens desse comportamento em águas da Europa, Oceania, Américas do Norte e do Sul e Central, também. Ou seja, percebemos essa interação em todos os continentes.

O Brasil também aparece nessa análise?
O Brasil também tem alguns registros e inclusive, há uma questão específica de uma nova espécie, descrita recentemente pela bióloga Tatiana Leite, observada principalmente no Rio de Janeiro, numa região onde ela é comumente encontrada no meio do lixo. Parece ser uma espécie que achou uma solução para a falta de conchas vivendo entre resíduos.

No fundo do mar dominado por lixo, polvos usam resíduos como tocas, uma interação que preocupa especialistas em vida marinha
O registro de um polvo dentro de uma lata de alumínio
(Foto: Edmar Bastos)

Quais são os principais comportamentos revelados pelas imagens na interação entre polvos e resíduos?
O principal comportamento observado é o uso do lixo como abrigo. No lugar dos naturais, os animais utilizam esses materiais artificiais, tão abundantes nos oceanos, para se esconder e se proteger de seus predadores, como eles fariam com conchas e tocas naturais.

Polvos são seres bastantes inteligentes, inclusive, reconhecidos como seres sencientes recentemente pelo governo do Reino Unido. Vocês acreditam que por esta razão eles possuam uma maior habilidade em conseguir se adaptar a oceanos mais poluídos?
Os polvos são realmente muito inteligentes e estão mostrando uma grande capacidade de adaptação a esse novo cenário com o qual estão se defrontando: um fundo marinho dominado por lixo. Pode parecer até uma coisa vantajosa num primeiro momento – na maioria são abrigos bons para eles, numa garrafa de vidro, por exemplo, eles estão bem intocados dentro -, só que isso pode provocar vários outros problemas.

No nosso artigo relatamos casos de polvos intocados em garrafas de vidro quebradas ou latas enferrujadas ou danificadas, mesmo em baterias ou embalagens plásticas, que podem ter compostos tóxicos e acabando por afetar esses animais negativamente.

Agora precisamos de mais estudos para entender quais os impactos reais do uso desse novo habitat pelos polvos. Eles estão em contato direto com esses materiais, colocando ovos ali e isso pode ser prejudicial em algum nível.

Quais são os principais impactos dessa interação de polvos com lixo?
Além dessa questão de possíveis ferimentos, como no caso dos vidros quebrados, como citei acima, e da contaminação por substâncias desses resíduos, isso falando apenas do uso do lixo como toca, é preciso lembrar que esses animais estão ingerindo esses materiais e isso pode causar um impacto para a vida marinha como um todo.

É muito preocupante pensar que não há mais um habitat natural e eles precisem usar esses substratos artificiais, um reflexo direto da grande quantidade de lixo que estamos jogando no mar e está poluindo nossos oceanos.

No fundo do mar dominado por lixo, polvos usam resíduos como tocas, uma interação que preocupa especialistas em vida marinha
Um polvo utilizando copos plásticos como toca
(Foto: Claudio Sampaio)

Suzana Camargo
Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.