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Natureza tem “reservatório invisível” de soluções para enfrentar ameaça climática

Natureza tem “reservatório invisível” de soluções para enfrentar ameaça climática

Tema estará em debate durante um dos eventos mais importantes desta geração, a Conferência da ONU sobre a Água, que acontece em Nova York de 22 a 24 de março

No mundo da emergência climática, o futuro da água e o nosso futuro se tornam incertos. É simples entender. Os recursos hídricos são o meio pelo qual o aquecimento global influencia os ecossistemas da Terra, o modo de vida e o bem-estar da humanidade. Já somos testemunhas dos efeitos negativos de extremos do clima. Secas mais severas ou enchentes avassaladoras estão cada vez mais presentes no cotidiano do Brasil e do mundo. Há luz no fim do túnel? Segundo o último relatório do IPCC, divulgado nesta semana, sim.

Há dinheiro e soluções para enfrentarmos o problema, garantem os cientistas, mas só agindo agora poderemos garantir um futuro sustentável e habitável para todos. O compilado de estudos científicos mais avançados sobre o tema, que busca informar os tomadores de decisão, moldar as negociações da ONU e mobilizar a opinião pública sobre o tema, traz dois recados claros. De um lado, é urgente eliminar os combustíveis fósseis, principais causadores do efeito estufa; do outro, precisamos fortificar a natureza, maior aliada do homem na luta climática.

Segundo o IPCC, a natureza absorveu 54% das emissões de dióxido de carbono relacionadas ao homem nos últimos 10 anos: 31% é removido por ecossistemas terrestres, incluindo plantas, animais e solos, e os outros 23% são absorvidos pelo oceano. É possível expandir esse potencial de proteção dos ecossistemas se governos passarem a investir intencionalmente na natureza. Os benefícios são inúmeros, principalmente para as cidades, que concentram mais da metade da população mundial e estão sujeitas a riscos, como elevação do nível do mar, ondas de calor e tempestades fortes e volumosas que causam enchentes mortais.

Construir parques lineares na margem de córregos e rios para minimizar os impactos das inundações e aumentar a cobertura de árvores e vegetação para reduzir as ilhas de calor são exemplos do pacote de soluções de “infraestruturas verdes” capazes de não só aumentar a absorção de gases nocivos mas também de adaptar os centros urbanos aos perigos de um mundo em aquecimento.

Essas intervenções fazem parte das chamadas Soluções Baseadas na Natureza – ou simplesmente SBNs. Cunhado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), o termo carrega um leque de medidas simples e econômicas que beneficiam a sociedade, o ambiente e a biodiversidade. O tema estará em debate durante um dos eventos mais importantes desta geração: a Conferência da ONU sobre a Água.

Depois de quase quatro décadas, as Nações Unidas voltam a realizar uma grande conferência com objetivo de definir ações e estratégias para alcançar os objetivos e metas internacionais acordados sobre os recursos hídricos e aquelas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ODSs).

O mundo está atrasado em muitas delas, incluindo a implementação do ODS 6 — assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas as pessoas — crucial para o alcance dos demais objetivos, como os de saúde, alimentação, igualdade de gênero, educação, subsistência, indústria, clima e meio ambiente. A Conferência da ONU sobre a Água acontecerá na cidade de Nova York entre os dias 22 e 24 de março de 2023, e reunirá especialistas, gestores públicos, ONGS e empresas ligadas ao setor de saneamento.

Um pacote de soluções naturais no Brasil

Além dos benefícios ambientais, as SbN têm impacto financeiro positivo, pois os custos da intervenção e da restauração são menores do que o da inação, como apontado pelo economista inglês Nicholas Stern. Usando modelos econômicos formais, ele mostrou que os custos e riscos gerais das mudanças climáticas serão equivalentes à perda de pelo menos 5% do PIB global a cada ano, podendo subir para 20% do PIB ou mais caso nada seja feito para freá-las.

E o Brasil tem muito a desbravar e ensinar sore o enfrentamento à crise do século utilizando SBN. Um estudo inédito publicado na revista científica Water e que será divulgado durante a Conferência analisou o potencial impacto das Soluções baseadas na Natureza, como a restauração, na disponibilidade de água e na adaptação climática.

Desenvolvido pela The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil), o estudo mostra como intervenções verdes na cidade de São Paulo poderiam ter evitado a maior crise hídrica da história do estado que tem a maior economia do país e concentra 20% da população brasileira. No verão de 2014, “São Pedro” mostrou sua face mais implacável.

Na ocasião, uma receita nada fresca de fenômenos meteorológicos deu origem a uma estação atípica marcada por algumas das mais altas temperaturas em décadas e muita secura no ar. O medo da torneira seca virou realidade em muitas localidades, principalmente as mais pobres.

A pior estiagem a atingir São Paulo em quase oito décadas escancarou também a falta de planejamento público, políticas de prevenção, a destruição da Mata Atlântica e a expansão urbana desordenada, expondo a fragilidade política e física que pairava sobre o sistema Cantareira, principal manancial de abastecimento da região metropolitana e um dos maiores do Brasil. Escolhas passadas poderiam ter evitado o cenário crítico.

Segundo o estudo, que analisou as características biofísicas do Cantareira nos últimos 30 anos, o sistema teria mais água disponível se as intervenções necessárias de infraestrutura verde tivessem sido realizadas. Em um cenário ideal, com intervenções em pontos-chave das bacias hidrográficas e mananciais que compõem o Cantareira, o reservatório invisível de águas subterrâneas do sistema teria 130% a mais de água entre os anos de 2014 e 2015.

O portfólio de soluções baseadas na natureza que podem ajudar a reforçar os sistemas de abastecimento incluem a restauração de vegetação nativa em áreas específicas dentro dos mananciais, a recuperação de matas ciliares, e uso das melhores práticas agrícolas implantadas em escalas significativas, não só no Brasil como em todo o mundo. Recentemente, uma pesquisa analisou dados de 9,5 mil bacias hidrográficas do planeta e concluiu que elas são mais sensíveis que o esperado às mudanças climáticas

“As SbN trazem uma contribuição incremental na promoção da segurança hídrica, aumentando o tempo de retenção de água nas sub-bacias que compõem o Sistema Cantareira, aumentando o volume de água contida no solo e no lençol freático durante todo o ano e melhorando a recarga de água para os corpos hídricos na estação seca”, diz o relatório.

O estudo também cobra maior protagonismo do setor de saneamento e papel de maior liderança para envolver outros atores e forças políticas, como as administrações municipais e estaduais e mesmo o setor privado. O envolvimento de municípios vem logo em seguida, uma vez que a maior parte das SbN são implantadas no território municipal; além disso, as cidades têm a capilaridade para mobilizar e envolver os proprietários de terra, a quem, em última análise, cabe a decisão sobre a mudança do uso do solo.