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Mulheres quilombolas são linha de frente da resistência ao racismo ambiental

Mulheres quilombolas são linha de frente da resistência ao racismo ambiental

Com a operação da petrolífera ExxonMobil, comunidades já afetadas temem a possibilidade de um desastre ambiental e a completa destruição do Rio São Francisco

No município de Brejo Grande, localizado no Litoral Norte do Estado de Sergipe, a 110 km da capital, cinco comunidades quilombolas resistem há décadas ao racismo ambiental, aos impactos da Usina Hidrelétrica de Xingó inaugurada em 1994, à especulação imobiliária, à invasão e ao desmatamento dos manguezais pela indústria da carcinicultura e, mais recentemente, à chegada da ExxonMobil para perfurar até 11 poços para exploração petróleo em águas profundas de Sergipe e Alagoas.

À frente dessas lutas estão dezenas de mulheres negras que dão voz e rosto à resistência; entre elas, Dona Deca, Izaltina e Cida. Mulheres de meia-idade que sentem diretamente os efeitos da degradação ambiental e lideram a organização de um território quilombola reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, e que reúne quase 700 famílias na sede do município de Brejo Grande e nas comunidades Brejão dos Negros, Carapitanga, Santa Cruz, e Resina, onde fica localizado o assentamento Saramém.

Detentora de conhecimentos tradicionais, Maria José Bezerra dos Santos, 54, ou apenas Dona Deca, como é conhecida, mora em Brejo Grande, é quilombola, pescadora, agricultora familiar e preside a Associação Remanescente de Quilombola Dom José Brandão de Castro, com 90 membros entre homens e mulheres. Mas, segundo ela, “quem comanda aqui são as mulheres”.

Dona Deca está na luta desde os 14 anos, quando começou a andar com o Movimento Sem Terra (MST) e o padre Isaías Nascimento – teólogo e coordenador da Cáritas Diocesana de Propriá (SE) -, por quem ela demonstra ter um enorme carinho pela atuação junto a camponeses, indígenas, sem-terra, pescadores e quilombolas.

“Nossa luta começou nos anos 80, quando os padres que fizeram o levantamento histórico da comunidade, inicialmente reconhecendo a gente como sem-terra, depois o padre Isaías, junto com os antropólogos do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] fizeram uns estudos e descobriram que nós não éramos sem-terra, mas sim quilombolas”, conta Dona Deca.

Mulher negra, acima do peso, tem os cabelos pretos cortado baixinho, usa uma blusa rosa, e entre um muro e a parede de uma construção pintada de branco, posando sorridente ao lado de uma planta verde
Dona Deca, liderança da Associação Remanescente de Quilombola Dom José Brandão de Castro | Foto: Vinicius Oliveira

No início dos anos 2000, os caminhos de Cida e Izaltina também se cruzaram com o do padre Isaías. Maria Aparecida Vieira Xavier, a Cida, 54, nasceu no Povoado Saúde, no município de Neópolis, distante 84 km distante da capital, e foi morar com o irmão na Resina aos 18 anos, depois que o último dos cinco filhos nasceu e ela decidiu acabar com um relacionamento violento. Cida era uma criança de apenas 11 anos, quando o próprio pai decidiu que ela deveria se casar e, para isso, alterou a certidão de nascimento dela no cartório, aumentando sua idade em 6 anos, para que fosse possível a realização do casamento com um homem de 22 anos.

Hoje, ela mora perto de todos os filhos, mas, quando se separou, o mais velho ficou com o pai das crianças e os outros três foram levados pela avó, a mãe de Cida. “Me dê seus filhos todinhos que eu não vou deixar você cair no mundo com seus filhos não”, teria dito a mãe de Cida. “Eu só fiquei com o pequeninho porque ainda mamava, mas depois que ele parou de mamar ela veio buscar também”, conta Cida.

Apesar da pobreza extrema que se abatia sobre as famílias da Resina e que assustava Cida, foi lá onde ela encontrou o grande amor da sua vida, o Chico, com quem convive há 31 anos, e se tornou uma importante liderança comunitária. “Isaías reuniu todo mundo para ver quem tinha coragem de ficar como liderança. Aí eu disse: eu fico. Ficaram duas mulheres, eu e Iraneide. Os homens não quiseram, ficaram com medo, porque lutar com fazendeiro é complicado”, afirma Cida.

Mulher negra, acima do peso, de cabelo escuro amarrado, com vestido vermelho florido. Ela está sentada ao lado de um homem negro, magro, vestindo uma blusa vermelha. Atrás deles, a varanda de uma casa coberta de palha e coqueiros ao fundo. Eles estão sorrindo
Cida e Chico estão juntos há 31 anos na luta pelo território e no amor | Foto: Vinicius Oliveira

Já Maria Izaltina Silva Santos, 52, nasceu e se criou no Quilombo Brejão dos Negros. Quilombola, pescadora, conhecedora e guardiã das matas, aos 18 anos ela foi tentar a sorte no Estado de São Paulo, onde trabalhou como metalúrgica, na cidade de Guarulhos e de onde passou 10 anos planejando a volta.

“Em 1997 eu voltei e encontrei tudo igual, do mesmo jeito. Em 2005 chegou o Padre Isaías com o propósito de um acordar para nós. Nas missas, ele perguntava para nós qual era a nossa história, o que a gente lembrava. Ele perguntava porque o nome da comunidade era Brejão dos Negros e a gente respondia que era porque tinha muitos negros, como se nós não fossemos negros”, lembra.

Foi então, durante os questionamentos do padre, que surgiu pela primeira vez a palavra quilombo na comunidade e, a partir disso, eles iniciaram um processo de articulação para reconhecimento do território. “Nós juntamos um grupo pequeno, elaboramos a carta com a ajuda do padre, solicitando à Fundação Palmares o reconhecimento como comunidade quilombola, e conseguimos”, conta.

Hoje, Izaltina mora com mais 84 famílias no Quilombo Santa Cruz, comunidade construída em 2011, com recursos do Projeto Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Território que também abriga na mata “sagrada” um terreiro de Umbanda. “Aqui, a gente cultua os nossos ancestrais e os encantados”, afirma Izaltina.

Um território marcado pelo
racismo ambiental

O racismo ambiental é um conceito que tem sido utilizado no Brasil para se referir ao processo de discriminação sofrido por territórios periféricos, indígenas, quilombolas e de povos tradicionais que vivenciam a degradação ambiental, a marginalização e a vulnerabilidade em decorrência da omissão do poder público.

O município de Brejo Grande é todo um território pesqueiro e extrativista marcado pelo racismo ambiental, segundo a quilombola Izaltina, que abriga cinco comunidades quilombolas e a Foz do Rio São Francisco com toda a beleza natural que dela se origina; visível aos olhos de grandes empresários e grandes empreendimentos, mas quase invisível às políticas públicas e aos governantes.

Na área rural, a população vive a contradição de banhar-se aos pés do Velho Chico e até hoje não ter acesso a água potável e encanada. A política pública chega a galope e fatiada. Tem novos conjuntos habitacionais, mas não tem saneamento básico, nem pavimentação. As estradas são ruins, especialmente no período chuvoso, o que dificulta o acesso às comunidades. “Aqui nós temos dificuldade para tudo. Ônibus de empresa nenhuma quer passar. Para chegar e sair daqui só com lotação [táxi] ou carro particular”, descreve Izaltina.

A preservação ambiental é feita no dia a dia pelas mãos dos pescadores e quilombolas, pessoas dedicadas à proteção dos modos de vida e da cultura tradicional local, onde o uso sustentável dos recursos naturais é praticado pelos moradores, por meio da pesca artesanal e da agricultura familiar, mas que têm sido ameaçados pelos sucessivos conflitos de terra na região, por meio dos quais já foi impedida a construção de dois resorts.

“Essa elite acha que não temos o direito de estar na beira do rio. Nós estamos aqui por questão de sobrevivência, porque essa terra pertenceu aos nossos ancestrais, e não de veraneio como eles. Nós vivemos aqui a vida toda e nós não seremos expulsos daqui porque eles querem nos tirar a única coisa que nós temos, para usufruir a favor deles, é a ambição que é muita”, desabafa Izaltina.

Apesar do reconhecimento de área remanescente de quilombo, nenhuma das cinco comunidades tem ainda o título de posse da terra. “Até hoje eles não publicaram a nossa delimitação do território que está pronta, o relatório já está pronto. Desde 2015 já foram feitas as notificações, contestações e o Incra nacional segura o nosso processo, porque a maior parte é área da união, da SPU [Secretaria do Patrimônio da União], tem juiz, tem político, é uma área disputada por grandes empresas e empreendimentos”, disse Izaltina sobre o Quilombo Santa Cruz.

O mesmo acontece com a comunidade quilombola localizada na sede do município de Brejo Grande, reconhecida desde 2007 pela Fundação Cultural Palmares, mas que até hoje não ainda teve nem as terras demarcadas. “A gente trabalha em terra de terceiros, que dão um pedacinho para a gente plantar”, disse Dona Deca, que também denuncia o racismo estrutural e institucional que a comunidade sofre no município. “Porque somos quilombolas, o povo fala que somos ladrões de terras”, lamenta.

O termo racismo ambiental nasceu da pesquisa de Benjamin Franklin Chavis Jr, em 1981, sobre a relação dos resíduos tóxicos e a população negra norte-americana: “racismo ambiental é a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”.

Ano passado, durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e às vésperas da Cúpula do Clima, em Glasgow na Escócia, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) questionou o uso do conceito “racismo ambiental”. O conceito serviu de base para um relatório do Conselho que reconheceu, pela primeira vez, o meio ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano e apontou o racismo ambiental como elemento para “normalizar a exploração e o descaso, abrindo oportunidades para se gerar lucro às custas da vida, dos recursos e das terras das pessoas”. A resolução é considerada pelos ambientalistas como um marco histórico para a justiça ambiental.

Estudos de organizações como Greenpeace, o Movimento para Vidas Negras e o Centro de Legislação e Política da Costa do Golfo, têm sugerido como o racismo está embutido no modelo de negócios dos combustíveis fósseis, ao gerar poluição que afeta desproporcionalmente as minorias étnicas e as comunidades pobres. É aqui que, segundo a advogada do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) /PE e professora universitária de Direito Ambiental e Direito Internacional, Ornela Fortes, a chegada da petrolífera ExxonMobil à região pode ameaçar os modos de vida tradicionais das comunidades quilombolas.

O medo que ronda as comunidades

Paisagem com vários barcos de cores azul e verde ancorados na beira de um manancial. Em terra, árvores e coqueiros. No alto, céu azul com nuvens brancas
Comunidade Resina, território pesqueiro e quilombola | Foto: Vinicius Oliveira

Em fevereiro deste ano, a gigante multinacional do petróleo, ExxonMobil, recebeu autorização do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para dar início à campanha que tem como objetivo perfurar até 11 poços exploratórios nos blocos SEAL-M-351, SEAL-M-428, SEAL-M-430, SEALM-501, SEAL-M-503, SEAL-M-573, áreas das 13a, 14a e 15a rodadas de licitação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em águas profundas da Bacia de Sergipe-Alagoas.

Na região, a exploração do Projeto SEAL é realizada pela sonda West Saturn, da Seadrill, cuja a primeira operação teve início em 21 de fevereiro e foi concluída sem sucesso, no mês seguinte. “A ExxonMobil completou a perfuração do poço exploratório Cutthroat1- de maneira segura em março de 2022. Apesar de não ter encontrado hidrocarbonetos, a ExxonMobil continuará integrando os dados da exploração do poço”, disse a empresa por meio de sua assessoria de comunicação.

No Relatório de Impacto Ambiental (Rima), consta que o bloco mais próximo fica a 50 km da costa, o que preocupa moradores. A ExxonMobil é uma empresa norte-americana de petróleo e gás, uma das maiores do ramo e com um histórico de desastres ambientais, entre eles, um dos maiores vazamentos da história, em 1989, quando o petroleiro Exxon Valdez despejou 42 mil toneladas de petróleo no Alasca, episódio conhecido como “maré negra”.

A hipótese de um desastre semelhante se repetir é justamente o que deixa as comunidades com medo, principalmente depois da experiência vivida por eles, após o derramamento de óleo que atingiu inicialmente a costa do Nordeste, no dia 30 de novembro de 2019, e que contabilizou, segundo o Ibama, 1.009 localidades afetadas em 130 municípios do Maranhão ao litoral norte do Rio de Janeiro, até março de 2020.

Até hoje, esse crime ambiental segue sem origem ou causa descobertas, e sem resposta para as comunidades atingidas. Considerando isso e temendo possíveis acidentes e impactos ambientais irreversíveis, em agosto de 2021, mais de 100 organizações do Brasil e do exterior, escreveram a Carta Aberta dos Povos e Comunidades Tradicionais à sociedade brasileira contra o licenciamento ambiental de exploração de petróleo da ExxonMobil.

À época, as entidades denunciavam que o próprio Rima da ExxonMobil, alertava que, em um possível caso de vazamento, pelo menos 52 unidades de conservação podem ser diretamente afetadas, entre elas a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais, uma das sete áreas de prioridade máxima para a conservação dos recifes de coral no Brasil. “Se houver um derramamento de óleo o que será da gente”, indaga Dona Deca.

Estudos incompletos

Homem negro, de cabelo preto baixo, vestindo blusa uma amarela, costurando uma rede de pesca. Ao fundo o céu azul e uma barraca coberta de palha
A pesca é a principal fonte de renda das comunidades tradicionais em Brejo Grande | Foto: Vinicius Oliveira

Ornela Fortes, advogada da CPP, afirma que os estudos que amparam o Rima, realizado pela ExxonMobil, estão incompletos e que o licenciamento se deu “de forma mais célere que o normal”.

“A componente quilombola, por exemplo, não entrou no estudo como condicionante, desrespeitando a convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que é um instrumento supralegal, está acima das legislações ordinárias do País. Ainda assim, foi brutalmente desconsiderado, não só pelo Ibama, porque a gente interpôs uma ação judicial questionando, e o Estado Brasileiro, pormeio do Judiciário, também negou o direito de consulta às comunidades tradicionais”, disse Ornela. Além disso, ela afirma que os dados utilizados do Rima são todos secundários e “não são de uma realidade atual, são anteriores a 2019”.

O biólogo Dante Mariano, especialista em Ecologia e Biomonitoramento, analisou o Rima produzido pela ExxonMobil e também aponta problemas. A primeira coisa que chamou a atenção do biólogo é que, segundo o relatório, não tem atividade de pesca nas áreas de exploração, o que os pescadores contestam. A segunda é que o relatório desconsidera a mobilidade da biota, que “se contaminada na área de atividade pode bioacumular contaminantes ao longo da cadeia alimentar para outras localidades”, afirma.

O relatório parte do princípio de que o risco de vazamento de óleo de grande magnitude é improvável, ainda assim, prevê que, em caso de acidente, o ambiente pode se recompor antes que ocorra outro impacto de mesma magnitude. Dante contesta esse cenário. “O estudo não descreve a escala temporal de recuperação do meio ambiente, nem considera o tempo que as comunidades pesqueiras levarão para se recuperarem de consequências como, perda socioeconômica e cultural, a exemplo da tragédia de 2019. O fato é que o relatório apresenta mais impactos socioambientais negativos, do que positivos”.

Para Alexandre Araújo, físico, especialista em mudanças climáticas, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pós-doutor pela Universidade Yale, a questão não é se esse tipo de empreendimento pode gerar um vazamento de óleo, mas quando vai ocorrer e em que dimensão. “Não existe operação de petróleo segura, tanto que não existe uma petroquímica que não tenha ficha suja. Mesmo que o risco seja baixo, em algum momento vai dar errado”, sentencia.

O professor critica ainda a ampliação da aposta em um modelo de desenvolvimento econômico baseado na exploração de combustíveis fósseis, especialmente no Nordeste. De acordo com Alexandre, existe hoje um consenso científico de que carvão, petróleo e gás estão aquecendo o Planeta e que precisam ser superados enquanto matriz energética e modelo de negócio, a partir de uma política global de transição energética para garantir um futuro habitável.

“Todos os estudos mostram que precisamos, até o fim dessa década, reduzir em quase metade as emissões de dióxido de carbono e não há outro caminho para fazer isso que não seja uma transição violenta no sistema energético, preferencialmente com isso feito com menos demanda de energia, e que a gente abandone o uso de carvão, petróleo e gás o mais rápido possível, e que a gente elimine o desmatamento”, explica o professor.

Ele também critica a ExxonMobil por promover negacionismo climático em todo o mundo. Segundo Alexandre Araújo, em 1978, a Exxon já sabia da gravidade do risco climático e foi orientada por um cientista do seu próprio quadro técnico a reunir a informação necessária para uma transição energética, não mais incentivando os combustíveis fósseis naquele momento. “Talvez a ExxonMobil possa ser considerada a mais criminosa dentre todas as empresas do ramo petroquímico, porque ela sabia da questão da gravidade climática desde os anos de 1970 e, ainda assim, seguiu financiando o negacionismo climático”, disse.

Nesse conflito, os pescadores e pescadoras da região, que já vivenciam um processo de décadas degradação ambiental, temem a possibilidade de o “Velho Chico morrer de vez”. “Eu costumo dizer assim, se me tirar do rio e do mangue, me tirou a vida. Eu não sei viver sem o rio. É desse rio que a gente vive e sobrevive, que a gente tira o nosso alimento. Nós temos o peixe, o camarão, tudo nós temos aqui e se isso acontecer [vazamento de óleo] o que vai ser da gente?”, questiona Dona Deca.

Homem negro, magro, cabelo preto baixo, veste uma blusa azul. Ao fundo, um grande espelho d’agua e o céu azul com nuvens branca
Eneias Rosa se dedica à luta em defesa dos pescadores artesanais | Foto: Vinicius Oliveira

Para Eneias Rosa dos Santos, 36, presidente da Associação da Comunidade Tradicional dos Pescadores Artesanais da Resina, sempre quem perde é a comunidade. “Eles vêm, tiram o lucro, quando não tem mais o que destruir vão para outro canto, deixando rastro de destruição e a gente que fica com todo resultado negativo”, protesta.

À reportagem, a Exxon afirmou que “está comprometida em conduzir os seus negócios de maneira ambientalmente responsável e em sintonia com as necessidades das comunidades onde a companhia opera”.

Pescador Revoltado

Seo Domenicio José dos Santos, o pescador revoltado, como ficou conhecido nas redes sociais, tem 63 anos, nasceu do lado alagoano do Rio São Francisco, e está há 40 anos ao lado de Dona Deca na luta em defesa do seu território. Ele acredita que é preciso continuar resistência à exploração de petróleo para evitar “que o pior aconteça”.

“Se a gente não falar, a coisa acontece mais depressa. Enquanto a gente está lutando por aquilo, eles estão se movimentando também, e aquilo vai demorando a acontecer. E se nós cruzar os braços isso acontece mais depressa e a desgraça chega mais rápido pra nós”, defende Seo Domenicio.

A preocupação de pescadores como Seo Domenicio e Eneias é da perda das poucas espécies remanescentes de peixes por causa do processo de prospecção do petróleo e de possíveis vazamentos de óleo, além do fim do modo de vida e subsistência econômica das comunidades pesqueiras, considerada a percepção deles sobre a redução de espécies e de pescado.

Homem negro, magro, cabelos brancos, está com chapéu na cabeça, blusa vermelha e short marrom, está à frente da porta de um galpão pintado de branco onde está pintado o nome Associação Remanescente de Quilombola Dom José Brandão de Castro. Há duas bicicletas encostadas na fachada uma de cada lado
Seo Domenicio há 40 anos luta em defesa do território | Foto: Vinicius Oliveira

“Cada ano que passa a gente sente a diminuição de espécie e o tamanho, o assoreamento do rio, e o mar quebrando o mangue. Antigamente, tinha muito marruá, curimã, peixe-porco, robalo, piai, achira, tucunaré, cará/tilápia, pitu, camarão do doce, várias dessas espécies a gente não encontra mais. Acabaram de vez. O que a gente encontra muito hoje é peixe do mar que a gente não sabe nem o nome. Às vezes a gente pega peixe que não sabe o nome e vai perguntar para os amigos pescadores que vieram do Cabeço para cá [Resina], porque eles que pescavam em alto mar e conhecem mais. Então o medo é piorar essa situação”, conta Eneias Rosa.

Seo Domenicio completa a lista de espécies de peixes que os pescadores não encontram mais na região: “Não temos mais o mandi, o surubim, a tubarana e o cabaço. Tudo isso a gente tinha e agora não tem mais”.

Eneias Rosa, também diz que as comunidades sentem o desamparo dos órgãos de proteção. “Eles são criados para proteger o meio ambiente, mas também são quem licenciam isso aí, não faz sentido”, explica. Ele reclama que não são escutados. “Se eles respeitassem o meio ambiente e respeitassem os povos, antes de instalar uma empresa dessa na região, eles vinham conversar com a gente, para saber o que a gente acha disso, para saber qual a melhor forma de se fazer isso. Tinha que consultar a gente na verdade”, critica.

falta de escuta ativa das comunidades e a desinformação são, segundo a advogada Ornela Fortes, uma estratégia nesse processo de implantação de grandes empreendimentos e também pode ser caracterizada como “um dos braços do racismo ambiental que se apresenta para as comunidades”. “Sem informação como é que as comunidades vão organizar a luta e processo de resistência?”, questiona Ornela.

Perguntada sobre se empresa estabeleceu algum tipo de relação com as comunidades locais, e a partir de quais metodologias, a Exxon respondeu que realizou uma audiência pública virtual relativa às atividades de perfuração de poços marítimos na Bacia de Sergipe-Alagoas, no dia 14 de setembro de 2021. “A audiência pública virtual foi aberta a todos e transmitida por um site da audiência, pelo Youtube, por rádios locais e também em três pontos de acesso – dois em Aracaju e um em Maceió. Também foi oferecido serviço de internet em algumas localidades”. Ainda segundo a ExxonMobil, em preparação para a audiência pública virtual, foram realizadas mais de 190 reuniões virtuais com mais de 560 partes interessadas.

Ausência de sinal de internet ou queda da qualidade quando chove são algumas das dificuldades enfrentadas por famílias que vivem em comunidades quilombolas e rurais do Nordeste brasileiro, observada na pesquisa Territórios Livres, Tecnologias Livres, realizada com 274 famílias de 33 comunidades dos nove estados do Nordeste entre os meses de abril a junho de 2021.

Essa é uma realidade que, de acordo com Dona Deca, não permitiu a ela, nem a mais ninguém da Associação Remanescente de Quilombola Dom José Brandão de Castro, participar da audiência pública virtual da ExxonMobil. “Aqui já é ruim de internet e ligação, nessa época de chuva é pior ainda. Eles não observaram isso. Acabou que não fomos ouvidos e ficou por isso mesmo”, lamenta.

“Nós também não participamos da audiência porque era virtual e a internet aqui é ruim demais. Além disso, eles [ExxonMobil] nunca estiveram aqui”, disse Izaltina.
Seo Domenicio também não conseguiu ser ouvido. “A audiência foi aquela coisa só para enrolar o povo. Pessoas que foram para lá, ligaram dizendo que não estavam achando o local, outros, como eu, não conseguiram participar por causa da internet”, afirma indignado.

Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça a suspenção da audiência pública virtual sobre o Projeto SEAL, com o objetivo de que a audiência fosse realizada em formato presencial e após consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais, seguindo a Convenção 169 da OIT, antes da emissão de qualquer ato de caráter autorizativo ou parecer que legitimasse a viabilidade do empreendimento. A Justiça negou o pedido do MPF/SE.

A ExxonMobil também realizou um exercício de treinamento aos pescadores e comunidades locais na Bacia de Sergipe-Alagoas, entre outubro e novembro de 2021, que, segundo a empresa, foi “requerido pelo Ibama”, órgão regulador para obtenção da licença ambiental do Projeto SEAL.

Porém, em um ofício assinado pelo coordenador Ivan Werneck Sanchez Basseres, o órgão afirma não ter autorizado o treinamento “tendo sido voluntariamente organizado pela empresa”. A autenticidade do documento pode ser conferida no site https://sei.ibama.gov.br/autenticidade, informando o código verificador 11215955 e o código CRC 5239DC03.

O presidente da Associação da Comunidade Tradicional dos Pescadores Artesanais da Resina, Eneias Rosa, disse que não quis participar do treinamento e que à época a atividade atrapalhou a pesca local. “Eles andaram aí por Piaçabuçu [Alagoas], ficaram nos lugares onde a gente costuma passar a rede, aí já prejudicaram a gente porque ficamos uns dias sem conseguir pescar naquela região por conta da atividade deles, tudo isso com a Marinha dando todo suporte a eles”, afirmou.

Pandemia agravou situação de
pescadores atingidos pelo vazamento de óleo

Após o derramamento de óleo, em 2019, e a pandemia da Covid-19, em 2020, a atividade econômica e de auto-organização das comunidades ficaram devastadas. Comunidades inteiras que têm na pesca sua principal, ou única, fonte de renda e subsistência alimentar, sem informação sobre a contaminação do pescado e do meio ambiente. Famílias em insegurança alimentar, outras passando fome. “Foi um período muito difícil. A gente não vendia, mas comia o peixe que não servia para os outros. Ficamos quase um ano assim, aí foi quando veio a pandemia e acabou de arrebentar também”, conta Dona Deca.

O pescador Eneias Rosa, lembra ficou muito de tempo sem conseguir colocar o pão na mesa. “Toda vez que degradam o meio ambiente a gente sente aqui, porque a pescada diminui. Nesse caso, ninguém foi responsabilizado, ficou seis por meia dúzia. Quem ficou prejudicado foi a gente que não podia trabalhar, e também não recebeu reparação de ninguém. Inclusive, até hoje tem óleo enterrado na encosta, de vez em quando a gente se encontra com isso aí”, revela.

Quando Doca Deca soube da Covid-19, ela estava junto com Seo Domenício em um ônibus, voltando do Rio de Janeiro, onde tinham ido conhecer outras comunidades quilombolas para trocar experiência. “Chegando em Aracaju já foi uma correria para comprar mascara, álcool em gel”, conta.

Ela chegou em casa e teve que entrar pelo quintal, sentiu-se constrangida por passar uma semana fora de casa e ao voltar não poder abraçar o filho, o neto, o marido e já ter que se isolar. Dona Deca não se contaminou pela Covid-19 e tomou as quatro doses da vacina. Mas, infelizmente, ela perdeu uma tia e um primo. “A dor maior nem é tanto pela morte, porque a gente sabe que o que tem de certo na nossa vida é a morte. A dor maior é não poder se despedir, a gente só vê o caixão passando de longe. Até hoje eu sinto muito por não poder fazer um velório digno e se despedir”.

A necessidade do isolamento social impôs o fechamento das associações por mais de um ano e meio. “Aqui é um espaço onde também a gente resgata a nossa origem com a música, a dança. Eu amanhã me vou e são eles [crianças] que vão contar a nossa história, aí de repente teve que fechar tudo e todo mundo ficar dentro de casa, foi uma tristeza muito grande”, relembra Dona Deca.

“A fome bateu na nossa porta”

Mulher negra, acima do peso, os cabelos pretos cortados baixinho, usa uma blusa rosa e short rosa, pousa para a foto ao lado de homem negro, magro, cabelos brancos, com chapéu na cabeça, blusa vermelha e short marrom. Mais atrás, à direita, há duas mulheres negras sentadas em cadeiras. Acima há uma faixa grande de cor laranja, com a frase: “FORA EXXON! ESSE TERRITÓRIO TEM DONO”
Dona Deca e Seo Domenicio são duas grandes lideranças quilombolas no município de Brejo Grande | Foto: Vinicius Oliveira

Dona Deca e Seo Dominicio fazem parte do conselho gestor do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (Peac), realizado a partir de uma exigência do licenciamento ambiental federal, pelas atividades marítimas de exploração e produção de petróleo e gás da Petrobras, conduzido pelo Ibama, e que incentiva o fortalecimento dos Territórios de Vida dos Povos e Comunidades Tradicionais em Sergipe. No Conselho, eles levantaram a bandeira contra a fome nas comunidades.

“No conselho, nós levantamos uma demanda por doação de cestas básicas, mas nós conseguimos só por três meses. Foi muito difícil ver famílias passando fome e a gente não conseguir ajudar. Foi muito triste”.

Para denunciar esta realidade, mais de 50 associações e movimentos representativos do Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe publicaram, em maio de 2021, uma Carta Aberta à população de Sergipe: “Estamos passando fome, em muitas de nossas casas não há o que comer, nos falta alimento no prato e não temos tido condição de trabalhar, em um cenário de isolamento social e prestes a completar dois anos do derramamento de petróleo, a maior tragédia-crime da história deste País”, afirmam num trecho do documento.

A reabertura do comércio, possibilitada pelo avanço da vacinação contra a Covid-19, foi comemorada por Cida, da comunidade Resina. Agora, ela planeja a construção da sede da Associação Pescadora e Trabalhadora, presidida por ela e acompanhada por outras 60 mulheres. “Elas [mulheres] querem trabalhar com costura e fazer o óleo de coco. Tem mãe que tem 5 a 6 filhos, então já faz roupa para os filhos vestir e não precisa comprar. Os homens estão desempregados, rio ruim de peixe, um botijão está 130 reais, o bolsa família o homem [presidente] está cortando tudo. Então é isso que eu quero fazer para ajudar as mulheres com fé em Deus”, ambiciona.

Agatha Cristie Silva elaborou esta reportagem com bolsa de jornalismo fornecida pelo ClimaInfo com o apoio financeiro do Instrumento de Parceria da União Europeia com o Ministério Federal Alemão para o Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) no contexto da Iniciativa Climática Internacional (IKI). Os conteúdos desta publicação são de inteira responsabilidade dos seus organizadores e não necessariamente refletem a visão dos financiadores.