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Mudança climática afeta rota e alimentação de aves migratórias — e isso traz impactos ecológicos preocupantes

Mudança climática afeta rota e alimentação de aves migratórias — e isso traz impactos ecológicos preocupantes

Além da mudança climática, outros fatores ameaçam as aves migratórias, incluindo perda de habitat em função da ocupação humana desordenada, caça, poluição e espécies invasoras

O maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus) é uma ave de menos de 30 centímetros que chega a migrar impressionantes 30 mil km. Conhecida popularmente como maçarico, a pequena espécie de voos continentais está ameaçada de extinção no Brasil. É para cá que ela vem se refugiar do inverno norte-americano, fazendo paradas estratégicas em nossa costa antes de seguir ao extremo sul do continente. A espécie integra o grupo de aves migratórias costeiras de longas distâncias, um dos mais afetados pela mudança climática, afirma o biólogo Fernando Faria.

“Essas aves têm uma demanda energética muito grande, e evoluíram para chegarem aos locais de reprodução justamente no pico de recursos disponíveis para gerarem filhotes”, explica o especialista, mestre em Biologia de Ambientes Aquáticos Continentais. Com o derretimento acelerado do gelo no ártico, resultante das alterações climáticas, o pico de recursos acaba sendo antecipado. Assim, quando as aves chegam ao seu destino, há menos insetos disponíveis para sua alimentação.

O fenômeno, conhecido como ‘mismatch trófico’, tem consequências graves tanto no sucesso da reprodução quanto no êxito das aves em completarem ou não suas jornadas migratórias, esclarece o especialista. Além da diminuição da população do maçarico, outra marca da mudança climática sobre a espécie é a redução do seu tamanho, de acordo com pesquisa publicada na revista Science.

Maçarico-do-papo-vermelho. — Foto: Hans Hillewaert/CreativeCommons/Wikimediacommons

Maçarico-do-papo-vermelho. — Foto: Hans Hillewaert/CreativeCommons/Wikimediacommons

Os maçaricos também são afetados pelo aumento do nível do mar e a diminuição da área de faixas de área, ambientes que elas utilizam ao longo de sua rota. Além do maçarico, esses efeitos da mudança climática levam outras aves a alterarem seus trajetos ou até mesmo deixarem de migrar durante o ano. “Isso já acontece com algumas espécies de grows e de cegonhas na Europa”, exemplifica Fernando.

Todo o ciclo de vida dessas espécies é afetado. “Uma ave que decide não voltar para se reproduzir em um ano é um adulto a menos gerando novos indivíduos para a população”, diz ele. O impacto é maior em espécies ameaçadas de extinção, caso de muitas espécies migratórias, como o próprio maçarico. “Ainda, muitos indivíduos que decidem não migrar acabam morrendo ao enfrentarem invernos adversos onde estão menos adaptadas.”

Perda de espaço e aumento de tempo de rota

Através de projeções climáticas, a bióloga Natália Stefanini da Silveira descobriu que alguns sabiás devem enfrentar reduções no tamanho de suas áreas de reprodução e de invernada, onde descansam e se alimentam, se preparando para a reprodução. Em sua tese de doutorado “Efeito das mudanças climáticas e do ambiente nas rotas de migração de aves na América do Sul”, ela aponta que essas áreas devem se afastar da linha do Equador e subir de altitude, sinalizando a busca das aves por temperaturas mais amenas.

“As aves que migram são as mais impactadas pela mudança climática por terem duas áreas de distribuição, uma onde se reproduz e outra onde passa o inverno, que estão mudando e diminuindo. Se houver mudanças bruscas de temperatura e de quantidade de chuva, alterando os recursos da região, a ave só vai saber quando ela chegar lá”, explica Natália.

O fator surpresa faz com que muitas espécies migratórias acabem morrendo ou perdendo a capacidade de migrar, efeitos que podem se agravar no futuro com a piora da mudança climática, esclarece a especialista. Segundo ela, as espécies migratórias endêmicas, que reúnem necessidades específicas de um determinado tipo de floresta e de clima, devem sofrer ainda mais, já que a mudança no clima deve afetar toda essa dinâmica.

Também a partir de projeções, a bióloga Maraísa Resende Braga descobriu que as aves neotropicais austrais devem perder área reprodutiva no sul da América do Sul até o fim do século, levando ao aumento de competição por recursos. Já as aves que se reproduzem na América do Norte, as neárticas neotropicais, devem enfrentar um aumento na distância de migração, podendo levar ao atraso da chegada nas áreas de destino, o que prejudicaria todo o seu ciclo. As conclusões do mestrado “Mudanças climáticas e migração de aves (Tyrannidae) nas Américas” foram publicadas na revista Ornithology Research.

Efeitos ecológicos

Ao alterar temperatura e umidade de forma acelerada, a mudança climática interfere nos ciclos fisiológicos, resultando não apenas na alteração da reprodução de insetos, mas também no atraso da frutificação das plantas, pontua a bióloga Karlla Barbosa, pós-doutoranda e pesquisadora associada SAVE Brasil (Sociedade para Conservação das Aves do Brasil). “As aves migratórias evoluíram junto com esses fenômenos, e como eles estão sendo alterados de forma muito rápida, elas não conseguem acompanhar o ritmo.”

Segundo Karlla, o impacto pode ser grande para aves migratórias que dependem de frutos, como alguns sabiás. Além da perda de alimento, a alteração interfere também no serviço ambiental dessas aves na dispersão de sementes, que podem estar disponíveis em um momento diferente do esperado. “Se uma espécie muda sua área de vida, as interações ecológicas de que ela participa vão se perder ou serão no mínimo alteradas, como por exemplo, dispersão de sementes, controle de insetos, entre outras”, resume.

De acordo com Fernando, estudos mostraram que declínios causados por mudanças climáticas em aves dispersoras de sementes já impactaram a distribuição de espécies vegetais. “E sabemos o quão importante as florestas são para a contenção do avanço das mudanças climáticas.”

A saúde humana também deve sofrer consequências. “Muitas aves migratórias também podem carregar cepas de vírus, e uma mudança nos padrões de distribuição dessas espécies em função das mudanças globais pode se tornar questão de saúde pública”, pontua Fernando.

Caminhos para soluções

A prioridade para reverter o impacto das mudanças climáticas nas aves migratórias é diminuir o ritmo do aquecimento global através da redução das emissões de gases de efeito estufa em escala global, desmatamento zero em determinados biomas, diminuição de áreas de agropecuária, investimento em energias mais limpas e comportamentos mais saudáveis à manutenção do planeta, concordam os especialistas consultados.

“As aves estão aí há milhões de anos, muitas espécies atuais há dezenas de milhares de anos, e já se adaptaram a períodos de maior e menor temperatura”, relembra Fernando. “A questão é que estamos causando um impacto muito grande e em um período de tempo muito curto quando pensamos em evolução e capacidade de adaptação dessas espécies.”

O especialista lembra que, além da mudança climática, outros fatores ameaçam as aves migratórias, incluindo perda de habitat em função da ocupação humana desordenada, caça, poluição e introdução de espécies invasoras. “Diversas áreas de atuação precisam cooperar para que as aves consigam encontrar ambientes com condições de se reproduzirem, trocarem as penas, migrarem, encontrarem locais com alimento e descansarem para retornar aos locais de reprodução e cumprirem seu ciclo.”

Karlla defende a necessidade de proteção de áreas naturais que são habitats para essas aves, incentivo para pesquisadores estudarem mais sobre a dinâmica e demanda dessas espécies, conscientização da população para redução e melhoria de atividades impactantes e mais fiscalização eficiente em atividades impactantes.

A bióloga destaca como exemplo de solução o Projeto das Aves Limícolas, da SAVE Brasil, que visa proteger áreas essenciais para as espécies limícolas, muitas delas, aves migratórias, que dependem de ambientes úmidos e que buscam alimento nas zonas entremarés, incluindo batuíras, piru-pirus e o próprio maçarico.

Mapa com locais de atuação do Programa Aves Limícolas.  — Foto: Save Brasil

Mapa com locais de atuação do Programa Aves Limícolas. — Foto: Save Brasil

Outra iniciativa importante é a proteção através de áreas de preservação, acrescenta, seja por Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) ou em parques e unidades de conservação de nível municipal, estadual ou federal. “Muitas espécies dependem exclusivamente de áreas alagáveis que acabam não recebendo tanta atenção. Não apenas as aves limícolas, mas também espécies como gavião-caramujeiro, por exemplo. Ou ainda aquelas aves que migram por dentro do continente, como o bem-te-vi-rajado, que precisam de áreas verdes com recursos para ‘abastecer’ e continuar a viagem”, explica.

Fernando destaca os Planos de Ação Nacionais (PANs) que visam ações de conservação de espécies, incluindo as aves migratórias que ocorrem no país. E cita ainda a Rede Hemisférica de Reservas para Aves Limícolas (WHSRN), sítios que se comprometem com a conservação das aves e dos seus ambientes no manejo e na gestão de suas áreas.

Se você quiser se aproximar da defesa das aves e do impacto do clima sobre elas, a pesquisadora Maraísa sugere um exercício de observação do comportamento das espécies. “Basta anotar quando determinada ave apareceu no seu quintal naquele ano e associar isso a um evento climático: por exemplo, pontuar se ela chegou uma semana antes da chuva”, explica. “Pode ser uma experiência muito rica e fazer com que as pessoas valorizem as espécies, conheçam melhor o ambiente onde elas vivem e percebam a dimensão cotidiana da mudança climática, que às vezes soa como algo muito distante, mas não é.”