Incêndios na Amazônia exigem reação local e internacional — e cientistas de três países buscam juntos essa fórmula

Decisões de governos nacionais — muitas vezes distantes e sem coordenação entre si — não bastam para conter os desastres na floresta. Por isso, pesquisadores tentam reforçar o papel das redes locais na fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru
A preservação da floresta e quase tudo que envolve a Amazônia mobiliza regularmente governos, ONGs e cientistas. Nada de errado até aí, se não fosse o fato de que muitas vezes as instituições e pesquisadores locais têm pouco ou nenhum protagonismo. Pior: os diferentes atores envolvidos frequentemente trabalham sem o necessário grau de sintonia uns com os outros. Em reação a esse problema, cientistas de três países amazônicos — Brasil, Bolívia e Peru — se uniram para estudar o assunto, compreender e reforçar o olhar local sobre o meio ambiente. O foco do trabalho foi analisar as vulnerabilidades e capacidades de governança na reação contra incêndios florestais, e gerar ferramentas tecnológicas e sociais para reduzir o risco desses desastres.
A pesquisa foi realizada como parte do Projeto Plano de Adaptação Multiatores para Enfrentar o Aumento de Risco de Incêndios Florestais (MAP-Fire), criado em março de 2019, com financiamento do Inter-American Institute for Global Change Research (IAI). “Desastres naturais não respeitam fronteiras político-administrativas”, lembra o pesquisador Victor Marchezini, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “O projeto estudou a Amazônia brasileira, peruana e boliviana e teve ações específicas voltadas para a região conhecida como MAP, na tríplice fronteira entre Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia)”. Um diagnóstico da percepção social se baseou na aplicação de questionário a 111 participantes (gestores públicos, cientistas e representantes do terceiro setor) dos três países, naquela região.
As questões foram sobre as capacidades e vulnerabilidades em oito dimensões: econômica, educacional, ambiental, organizacional, política, legal, sociocultural e tecnológica. As respostas deverão ajudar a construir ferramentas a fim de reduzir o risco de desastres associados aos incêndios florestais, diz a pesquisadora Liana Anderson, do Cemaden.
Isso é importante quando se leva em conta que a Amazônia, e em particular a região MAP, sofre grandes impactos de desastres associados a queimadas florestais. Entre 2003 e 2019 houve aumento significativo dos incêndios nessa área de tríplice fronteira. No período, cerca de 3,8 milhões de hectares foram queimados, e aproximadamente 22% dessa área correspondiam a florestas. A região teve recordes de queimadas e incêndios florestais em 2005, 2010 e 2015, quando também enfrentou secas severas.
Os resultados do estudo mostraram que 60% dos entrevistados consideraram o desmatamento a principal causa dos incêndios florestais que atingem a Amazônia, seguido da utilização do fogo na gestão agrícola (58%) e das secas (39%). Os efeitos das agressões se reforçam. “A área de florestas degradadas na Amazônia, seja pelo fogo, corte de madeiras ou efeitos da fragmentação florestal, ultrapassa a área desmatada acumulada até hoje”, diz Liana.
Os pesquisadores apontam que há muitas ferramentas técnicas de monitoramento das atividades causadoras de fogo nos três países, mas que não são conhecidas pela sociedade e mesmo por profissionais da área. “Adiciona-se, em muitos casos, a falta de pessoal qualificado para o manuseio das ferramentas de monitoramento”, explica Marchezini. “Apesar de existir muitas que auxiliam no monitoramento de focos de calor, entre outros, a comunicação entre instituições como intercâmbio de conhecimento e auxílio na elaboração de planos (de comunicação, contingência entre outros), ainda é falha e precisa ser melhorada.”
Esse esforço precisa envolver os atores locais. “Em muitos casos, as propostas de medidas nacionais não observam as peculiaridades regionais e locais, tornando escassa qualquer chance de mudança do cenário atual”, afirma a acreana Yara Depaula, também pesquisadora do Cemaden.
Os 111 entrevistados alertaram para problemas previsíveis: deficiências em instituições e órgãos de controle, associadas à redução de funcionários e limitação de recursos financeiros. “Instabilidades de políticas públicas nacionais e locais também prejudicam a governança da reação contra incêndios”, diz Yara. A equipe defende que, para melhorar essa governança, há um roteiro básico a seguir: fortalecer as capacidades organizacionais, investir adequadamente para proteção ambiental de acordo com a realidade de cada país e região do MAP, aumentar o capital humano das organizações quantidade e em conhecimento. “E a formulação de políticas públicas e de leis precisa levar em consideração a realidade local”, diz Liana.
Justamente porque eventos como incêndios florestais, poluição em rios e no ar não respeitam fronteiras, a gestão compartilhada internacional de recursos naturais é uma área de estudo necessária e complexa. A preocupação com esta questão não é de hoje, no entanto Uma das pioneiras a pensar sobre o tema foi a cientista social americana, Elinor Ostrom (1933-2012), quem 2009 recebeu o Prêmio Nobel de Ciências, junto com seu compatriota Oliver Wiliamson (1932-2020), por seu trabalho sobre o assunto.
Ela desenvolveu uma linha de pesquisa sobre os bens comuns, na qual descreve a formação de uma relação sustentável entre os seres humanos e os ecossistemas, por meio de arranjos institucionais que se desenvolveram ao longo de milhares de anos. Ostrom trabalhou para entender como os seres humanos interagem com o seu ambiente para manter e usufruir de recursos sustentáveis e comuns – florestas, pesqueiros, pastagens e sistemas de irrigação, por exemplo – no longo prazo.
Uma das suas principais conclusões é que direitos de propriedades nem sempre resolvem a má gestão de bens comuns. Ela defendia uma abordagem que ia além do governo e do setor privado, com instituições locais voltadas para resolverem os problemas comuns daquela área.
Com outras palavras, Liana defende algo semelhantes. De acordo com ela, as pessoas da região do MAP, expostas ao fogo ou que o usam, não são convidadas a participar de nenhum sistema de governança, que poderia ajudá-las a tomar decisões ou ser mais bem informadas. Para a pesquisadora, isso incluiria melhorar a integração entre as instituições, a qualidade da comunicação dentro e entre elas, assim como uma mudança na educação ambiental na região, com o currículo escolar tratando do fogo e o conectando com a realidade local.
Na ausência disso, a população local vem se virando como pode. Segundo Yara, os três países possuem “redes” informais de apoio mútuo de colaboração para diversas finalidades, como tentar saber como as nações vizinhas estão lidando com desastres na região.
Para isso, as redes são formadas por grupos de pessoas interessadas ou com algum vínculo com a temática, como projetos de pesquisa com estudantes de graduação e pós-graduação, ONGs, comunidades extrativistas e cooperativas. “O setor público também age nessa colaboração, como corpo de bombeiros, defesa civil, secretarias municipais e estaduais de meio ambiente”, conta Yara.
A pesquisadora acreana afirma que, entre “tentativas e erros”, a troca de experiência nessas redes de cooperação, que integram monitoramento, planejamento e combate aos desastres (seca, fogo ou inundações), gera aprendizado conjunto e tem potencial para construir e implementar melhores políticas públicas. “Por isso, a atuação dessas redes está citada como principal capacidade da região detectada por nosso estudo”, explica.