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“Governos têm a responsabilidade nas tragédias causadas por chuvas fortes”

“Governos têm a responsabilidade nas tragédias causadas por chuvas fortes”

Há tentativas frequentementes de colocar culpa na população que sofre com os eventos climáticos extremos. Mas governos é que precisam ser cobrados por suas ações e omissões

Estamos quase no inverno, estação usualmente seca no Sul e Sudeste do país, e que começa em 21 de junho. Mas o tempo nos dá sustos diários: no Rio Grande do Sul, choveu em dois dias o esperado para dois meses; ciclone e alagamentos causaram ao menos duas mortes e espalharam destruição pelo Sul; alertas de tempestade se espalham pelo país. No litoral paulista, após chuvas intensas de mais de 260 mm, deslizamentos e enchentes já ocorreram em São Sebastião. Naquela área, em fevereiro deste ano, o volume acumulado de chuvas foi de 683 milímetros, o maior registrado no sistema até o momento. A crise climática está sobre nós — e precisamos analisar mais a fundo as questões que ela levanta, nas relações entre cidadãos e governos.

Em quase todo o mundo, populações desfavorecidas são desproporcionalmente afetadas por impactos ambientais. Frequentemente, essas populações vivem em áreas mais afetadas pelo risco. São famílias assentadas próximas a corpos hídricos (muitas vezes poluídos) e locais onde há risco de desmoronamento, alagamento e inundação. Elas também têm menos opções para se deslocar e procurar abrigo. Os desprovidos suportam uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de 1) operações econômicas; 2) decisões políticas, 3) programas de governo e 4) ausência ou omissão da aplicação de políticas públicas.

A desigualdade se evidencia de diferentes formas. Uma vistoria do Ministério Público de São Paulo indicou risco de deslizamento na Vila Sahy, em São Sebastião, no litoral norte, quase dois anos antes da tempestade do Carnaval. Não bastou para impedir a tragédia. Infelizmente, essa é uma situação vivenciada na maioria dos municípios do litoral paulista, em que observamos a ocupação de locais proibidos pela legislação (como áreas de preservação permanente e encostas e topos de morros). As Prefeituras pouco fiscalizam ou preferem não tomar nenhuma ação concreta para evitar a ocupação desses lugares.

Mas é possível aferir responsabilidade para alguém? Sim. A responsabilidade do Estado pelos atos ou omissões de seus agentes é premissa básica do Estado Democrático de Direito. Dois são os principais entendimentos: 1) a responsabilidade do Estado por omissão seria de natureza subjetiva — portanto, a responsabilidade objetiva ocorreria apenas quando originada por uma ação; 2) a responsabilidade objetiva do Estado se aplicaria tanto a ações quanto a omissões.

A divergência advém do fato da Constituição Federal (em seu artigo 37, parágrafo 6º), não ter diferenciado ambas as condutas – comissivas (por ação) e omissivas. No entanto, o entendimento majoritário no Direito é de que a responsabilidade do Estado é objetiva – independentemente da existência de culpa. Se todos se beneficiam com a atividade da Administração, nada mais lógico que todos (sociedade) compartilhem com o ressarcimento pelos danos que essa atividade tenha causado a um ou mais indivíduos.

No caso dos deslizamentos — apesar de se tratar de fortes chuvas, fora do que se considerava normalidade até hoje –, ainda assim, a responsabilidade é do Estado pela omissão e pela má administração governamental ao longo dos anos. A responsabilização deve servir como alerta aos governos. Mas ela não é suficiente. Evitar tragédias exige a adoção de políticas públicas de moradia e de infraestrutura, assim como a proibição e fiscalização contínua para que áreas de risco não sejam ocupadas de forma irregular.

* Renata Franco de Paula Gonçalves Moreno é advogada especialista em Direito Ambiental e Regulatório, com doutorado pela Unicamp em Ciências Sociais