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Futuro em jogo: como a crise climática afetará a vida das crianças de hoje

Futuro em jogo: como a crise climática afetará a vida das crianças de hoje

“Hoje, 1 bilhão das crianças vulneráveis ​​do mundo estão em risco. Amanhã, se o mundo não agir, serão todas as crianças”, afirma a diretora executiva do Unicef, Catherine Russell

Não é preciso um grande esforço de imaginação para entender que se o mundo não agir efetivamente para frear suas emissões de gases de efeito estufa e acelerar as ações de adaptação climática, o futuro se tornará cada vez mais incerto. Para as crianças, que representam todo o potencial de uma nova sociedade, a crise climática — iniciada lá atrás por seus antepassados que passaram a queimar combustíveis fósseis na Revolução Industrial — é uma violação aos seus próprios direitos.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, considerado o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, contempla entre seus 54 artigos parâmetros de orientação e atuação dos Estados signatários, a começar pelo reconhecimento de que toda criança tem o direito inerente à vida. Cabe aos governos assegurarem ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento sadio dos pequenos e que eles não sejam separados dos pais (salvo quando essa situação for considerada contrária ao seu melhor interesse).

Os Estados Partes também reconhecem o “direito da criança de gozar do melhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde” e se comprometem a “promover e incentivar a cooperação internacional para buscar, progressivamente, a plena realização [desse direito]”, levando especialmente em consideração “as necessidades dos países em desenvolvimento”.

Estamos em pleno ano de 2022 — algumas décadas à frente do abandono generalizado que marcou a infância da classe operária imortalizada nos personagens mirins maltrapilhos e esfomeados de do escritor britânico Charles Dickens entre os séculos 18 e 19, e ainda distantes das previsões mais sombrias que a crise climática reserva para o final deste século. O que a sociedade, governo e setor privado fizerem daqui para frente vai definir o Planeta que as crianças de hoje encontrarão lá na frente.

A pergunta que nossos descendentes farão não será mais por que ou como o petróleo, gás e carvão passaram de promessas de desenvolvimento socioeconômico e tecnocientífico para vilões do clima, mas por que nós, humanos do raiar do século 21 não fizemos o suficiente para impedir a hecatombe. O desafio é grande, é verdade. Diariamente, os direitos de milhões de crianças no mundo são violados.

São crianças e jovens que vivem em condições excepcionalmente difíceis, especialmente nos países mais pobres, carentes de infraestruturas básicas para uma vida minimamente saudável. “Hoje, 1 bilhão das crianças vulneráveis ​​do mundo estão em risco. Amanhã, se o mundo não agir, serão todas as crianças”, afirma a diretora executiva do UNICEF, Catherine Russell.

Essas crianças e adolescentes enfrentam uma combinação mortal de exposição a múltiplos choques climáticos e ambientais com alta vulnerabilidade devido a serviços essenciais inadequados, como água e saneamento, saúde e educação. Um relatório da Unicef lançado em agosto do ano passado revelou que quase todos os meninos e meninas na Terra estão expostos a pelo menos um risco climático e ambiental. É por isso que a diretora da Unicef classifica crise climática como uma crise infantil.

No entanto, as crianças ainda são negligenciadas no planejamento de respostas dos governos. “O mundo não pode continuar ignorando as crianças enquanto lida com a ameaça existencial das mudanças climáticas e da degradação ambiental. É hora de colocar nossos filhos no centro da ação climática”, defende.

O apelo consta em comunicado oficial da Unicef em reação às previsões trazidas pelo novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elaborado pelo Grupo de Trabalho II, que avalia a vulnerabilidade dos sistemas naturais e socioeconômicos frente às mudanças climáticas e aponta caminhos de adaptação. O IPCC é composto pelos principais cientistas climáticos do mundo, responsáveis por publicar atualizações abrangentes sobre o conhecimento global sobre mudanças climáticas e seus impactos, com o objetivo de orientar a formulação de políticas públicas.

Impactos amplos e desiguais

A nova publicação está sendo considerada a mais “sombria” já realizada, dadas as previsões negativas para um mundo que ainda não toma medidas suficientes para enfrentar o problema da forma necessária. A cada ano, ondas de calor, secas, ciclones e inundações estão cada vez mais sendo sentidos em todas as regiões do mundo, impondo desafios crescentes à disponibilidade de água, produção de alimentos e meios de subsistência de milhões de pessoas. Não à toa, António Guterres, secretário-geral da ONU classificou o documento como um “atlas do sofrimento humano e uma acusação condenatória da falha de liderança climática”.

O IPCC traz uma mensagem clara: os impactos continuarão a aumentar se cortes drásticos nas emissões de gases de efeito estufa forem adiados – afetando a vida das crianças de hoje e a de seus filhos muito mais do que a nossa. Nas palavras da diretora executiva da Unicef, Catherine Russell, “para algumas crianças, a crise climática é mais do que um risco elevado. É uma realidade com risco de vida”

A avaliação científica feita por mais de 200 especialistas de todo o mundo aborda os riscos para o curto prazo (até 2040), médio prazo (2041-2060) e o longo prazo (2081-2100). É verdade que os dois últimos marcos podem parecer distantes, mas as crianças que nasceram em 2020 terão 20 anos em 2040 e 80 anos em 2100. “O final do século está a menos de uma vida de distância”, observa o relatório. O novo relatório traz um recorte de como as mudanças climáticas afetarão as vidas das crianças de hoje no futuro se nenhuma ação imediata for tomada.

As previsões ali traçadas vão de encontro aos direitos infantis mais básicos, como o direito à vida, à saúde e bem-estar (incluindo acesso à saneamento básico) e à segurança no núcleo familiar, que muitas vezes é desfeito em meio aos desastres ambientais. Confira a seguir como a crise climática afetará a vida das crianças de hoje no futuro — que é logo ali.

Escassez de alimento

 

Criança com fome: de 8 milhões até 80 milhões de pessoas correrão risco de passar fome em 2050. — Foto: Himarkley/GettyImages

Criança com fome: de 8 milhões até 80 milhões de pessoas correrão risco de passar fome em 2050. — Foto: Himarkley/GettyImages

Assim como os jovens de hoje, as gerações futuras também testemunharão os efeitos negativos mais fortes das mudanças climáticas na produção e disponibilidade de alimentos – uma tendência que deve atingir mais duramente as populações pobres. Pelas estimativas do novo relatório, de 8 milhões até 80 milhões de pessoas correrão risco de passar fome em 2050, com as populações mais afetadas concentradas na África Subsaariana, Sul da Ásia e América Central. Sob um cenário de alta vulnerabilidade e alto aquecimento, até 183 milhões de pessoas adicionais devem ficar subnutridas em países de baixa renda devido às mudanças climáticas dentro de três décadas.

Um olhar especial deve-se voltar para a África, continente com a população mais jovem do mundo — quatro em cada dez pessoas têm menos de 15 anos. Por lá, a crise climática deverá aumentar o número de crianças com desnutrição crônica grave em aproximadamente 1,4 milhão até 2050, considerando um cenário de aquecimento global de 2,1°C. Além dos danos à saúde física dos jovens, a falta de comida pode afetar o desempenho cognitivo e prejudicar o nível de educação, reduzindo assim suas chances de empregos e a própria capacidade de subsistência na vida adulta.

Estresse térmico

 

Produtor rural no semiárido brasileiro: estresse térmico deve aumentar e prejudicar trabalhadores rurais e suas famílias. — Foto: Arquivo/Agência Brasil

Produtor rural no semiárido brasileiro: estresse térmico deve aumentar e prejudicar trabalhadores rurais e suas famílias. — Foto: Arquivo/Agência Brasil

Atualmente, cerca de 30% da população mundial está exposta ao estresse térmico mortal, e o IPCC projeta que este número salte para 48 ou até 76% até o final do século, dependendo dos níveis de aquecimento futuros e da localização. Pelos cálculos dos cientistas, se o mundo aquecer mais de 4°C até 2100, o número de dias com condições climáticas estressantes aumentará em até 250 dias de trabalho por ano até o final do século em algumas partes do sul da Ásia, África tropical subsaariana e partes do América Central e do Sul.

Por afetar principalmente trabalhadores de áreas livres, como os agricultores, isso causaria consequências negativas, como redução da produção de alimentos e aumento dos preços dos alimentos. E, claro, afetaria a renda e meios de subsistência de muitas famílias, comprometendo a criação e desenvolvimento dos mais jovens.

Enchentes

Criança em enchente: pequenos serão mais expostos a temporais e inundações. — Foto: Getty Images

Criança em enchente: pequenos serão mais expostos a temporais e inundações. — Foto: Getty Images

Ainda segundo o relatório, o aquecimento global deverá expor crianças a inundações causadas pelo aumento do nível do mar. Há preocupação acentuada com os jovens do sul e sudeste da Ásia, que deverão sofrer perdas crescentes em regiões costeiras. Em meados do século, projeta-se que mais de um bilhão de pessoas que vivem em cidades e assentamentos costeiros de baixa altitude em todo o mundo estarão em risco de riscos climáticos específicos da costa. Muitos deles serão forçados a se mudar para terrenos mais altos, o que aumentará a competição por terras e a probabilidade de conflito e realocação forçada.

Saneamento básico

Menina indiana bebendo água doce em aldeia na desértica Rajasthan, Índia. — Foto: Hadynyah/GettyImages

Menina indiana bebendo água doce em aldeia na desértica Rajasthan, Índia. — Foto: Hadynyah/GettyImages

As mudanças climáticas terão impacto na qualidade e disponibilidade da água para higiene, produção de alimentos e ecossistemas devido à fenômenos como inundações e secas. Globalmente, até 3 bilhões de pessoas correm risco de escassez crônica de água devido a secas em um cenário de aquecimento de 2°C, e até aproximadamente 4 bilhões com aquecimento de 4°C, considerando apenas os efeitos das mudanças climáticas, sem levar em conta a pressão de atividades humanas exploratórias.

As crianças que crescem na América do Sul enfrentarão um número crescente de dias com escassez de água e acesso restrito à água, especialmente aquelas que vivem nas cidades e nas áreas rurais dependentes de água das geleiras. Isso porque à medida que as geleiras andinas e as calotas nevadas continuam a derreter, a quantidade de água disponível diminui. Além disso, países da América Central experimentarão tempestades ou furacões mais frequentes e mais fortes que podem prejudicar o sistema de abastecimento hídrico.

O que falta para assegurar um futuro mais seguro e saudável?

Duas medidas urgentes: aumentar o investimento em adaptação ao clima e resiliência, e fortificar a própria natureza e seus serviços ecossistêmicos. Claro, à frente disso reside o maior desafio e responsabilidade: cortar drasticamente nossas emissões de gases de efeito estufa, reduzindo assim a dependência humana de combustíveis fósseis. Nenhuma medida resolverá o problema do dia para noite, mas desenham a rota necessária que deve ser cumprida para um futuro mais seguro e saudável.

Os esforços de mitigação levarão décadas para reverter os impactos das mudanças climáticas e, para as crianças e os adolescentes de hoje, poderá ser tarde demais. Por isso, a Unicef demanda aos governos mundiais maior ênfase no financiamento para construir resiliência climática e capacidade de adaptação. O pedido é para que os países desenvolvidos excedam sua promessa de 2009 de mobilizar US$ 100 bilhões anualmente em financiamento climático à luz das evidências de que essas quantias são insuficientes para enfrentar a escala dos impactos climáticos.

Esses recursos, se mobilizados e bem aplicados, ajudarão a fortalecer planos de melhoria de serviços essenciais, como sistemas de água, saneamento e higiene, serviços de saúde, educação, além de apoiar transições positivas no campo agrícola em regiões vulneráveis. “Tão importante quanto isso, eles devem ser desenvolvidos e implementados com o envolvimento e participação dos jovens – garantindo que suas vozes sejam ouvidas e suas necessidades sejam refletidas nas decisões”, destacou a diretora executiva do Unicef, Catherine Russell.

Cada ação conta. Afinal, o que fizermos agora moldará a vida de todos os meninos e meninas em todas as nações do mundo, em nosso tempo e no futuro.