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Fe Cortez: ‘Nossa missão aqui como humanidade é cuidar da vida’

Fe Cortez: ‘Nossa missão aqui como humanidade é cuidar da vida’

Idealizadora do movimento Menos 1 Lixo e autora do livro ‘Homo Integralis: Uma Nova História Possível para a Humanidade’, ela conta como pequenos atos impactam até na a saúde mental

Comunicadora, palestrante, apresentadora. São muitas as suas habilidades. Mas foi como idealizadora do movimento Menos 1 Lixo, que promove o ativismo e a inserção de práticas sustentáveis no dia a dia – quem não conhece o copinho de silicone retrátil que simboliza a causa? –, que Fe Cortez ficou conhecida. Defensora da campanha Mares Limpos pela ONU Meio Ambiente, foi conselheira do Greenpeace Brasil e apresenta o podcast Copo ½ Cheio.

Em seu primeiro livro, Homo Integralis: Uma Nova História Possível para a Humanidade (Leya Brasil, 360 págs., R$ 60), ela discorre sobre nossa capacidade para transformar o entorno e nossa responsabilidade com o futuro do planeta. Aqui, conta como pequenos atos de cidadania impactam até na nossa saúde mental.

MARIE CLAIRE: Você começa o livro com uma projeção do que poderia ser o Brasil no futuro se o país adotasse uma maneira de viver mais sustentável no pós-pandemia. Por exemplo, brincar com cavalo-marinho na Baía de Guanabara e vestir-se para uma reunião em um guarda-roupa coletivo público. Como acredita que de fato estaremos em 20 anos?

Fe Cortez: Vai depender do nosso esforço e da nossa consciência como coletivo. Despoluir a Baía de Guanabara é superpossível, inclusive em pouco tempo. Mas precisamos ter vontade política para fechar os vazamentos de esgoto e limpar os metais pesados. O guarda-roupa coletivo já existe em Florianópolis, assim como a Scooter compartilhada. Então, conseguir realizar ou não vai depender da nossa ação como sociedade organizada. Em 20 anos, podemos liderar o mercado de bioeconomia no mundo, por exemplo. Temos potencial para isso. Mas precisamos fazer essa escolha.

MC: É possível realizar esse tipo de mudança sem um governo comprometido com a educação?

FC: É bem mais difícil quando o governo está descomprometido com a educação e com a vida, né? Mas dá pra fazer se entendermos nosso papel, nossa responsabilidade e nosso poder. E se nos articularmos, fazendo valer de fato o poder de nosso voto. Mas algumas iniciativas podem ser feitas em nível micro, como na tomada de decisão de um prefeito. Se ele decidir fazer um sistema de fomento às hortas urbanas, ele consegue. Algumas coisas podem ser feitas, apesar do momento difícil que a gente enfrenta no Brasil hoje. Outras podem ser feitas pela iniciativa privada.

MC: Você relaciona o descaso com o planeta com o surto de depressão, que, segundo a OMS, será a doença que mais vai afetar a população mundial em 2030. Por quê?

FC: Segundo alguns estudos, a depressão está diretamente ligada a essa desconexão com a nossa essência. Inclusive bioquimicamente. As pessoas que vivem em países nórdicos, por exemplo, e ficam grande parte do ano sem sol, trancadas em casa, sofrem ainda mais de depressão. Na minha visão um pouco mais espiritual, a nossa desconexão com a natureza fez com que a gente se desconectasse do nosso propósito aqui como coletivo e raça humana. E uma vida sem propósitos, sem perspectivas, à beira de um caos climático e imersa na tecnologia gera ainda mais ansiedade. Então, o antídoto para o que a gente está vivendo hoje é se reconectar. Inclusive porque alguns estudos também mostram a capacidade de uma autorregulação química do corpo quando está na natureza.

MC: Como o cuidado com o planeta pode aplacar o crescimento de doenças psiquiátricas?

FC: Primeiro porque, quando a gente se volta para a terra, está na natureza, anda descalço, existe uma regulação do nosso corpo. Tanto que algumas pessoas colocam sons artificiais imitando a natureza para dormir porque ancestralmente temos codificado no código DNA que isso nos faz bem. E também porque, com ações regenerativas em relação ao planeta, conseguiremos diminuir um pouco essa ação de mudanças climáticas e de todas as questões que causam doenças, como poluição, envenenamento por agrotóxicos etc.

Ainda temos outro benefício, que é diminuir os impactos severos das crises hídricas, energéticas e emergências climáticas que a gente tem visto. Por último, acho que a nossa missão aqui como humanidade é cuidar da vida. Quando a gente se reconecta a essa visão de que estamos aqui para cuidar, manter e ser alicerce da teia da vida, a gente começa a recuperar um senso de pertencimento que, coletivamente, faz com que a gente entre menos num estado de desespero, ansiedade e depressão.

MC: É sabido que a pandemia do novo coronavírus tem ligação direta com a sobrecarga da natureza. Pode explicar por quê?

FC: Quando a gente força uma fronteira agrícola, que vamos desmatando para aumentar a fronteira e diminuir florestas, a gente libera tudo que está naquela floresta vivendo de forma harmônica. Numa palestra comigo, o cientista Carlos Nobre comentou certa vez que existem 80 tipos de coronavírus catalogados na Amazônia, e convivendo perfeitamente lá, porque eles não fazem mal aos morcegos hospedeiros e outros organismos que vivem ali – eles estão em equilíbrio. Quanto mais a gente desequilibra os sistemas, mais libera esse tipo de vírus para o qual a gente não tem resiliência, porque não é natural do nosso habitat. Nossos sistemas econômico, de criação de alimentos e industrial são pautados em extração de recursos e são degenerativos. Estamos o tempo todo causando possíveis pandemias, é uma questão de tempo acontecerem outras.

MC: O que você sugere como primeiros passos possíveis para mudar nossa relação com o planeta?

FC: O meu livro é basicamente sobre primeiro a gente mudar a nossa lente, a nossa forma de ver o mundo, para que a gente possa mudar a nossa relação com o planeta. Sobre a gente se ver como parte do todo – que são as plantas, os animais, a água e todos os outros tipos de vida. Precisamos voltar a esse entendimento de que não estamos separados, nem do outro e muito menos da natureza. A gente não pode mais basear os nossos sistemas com o ser humano no centro. Devemos fazer isso nas pequenas coisas, como, quando formos construir uma casa, pensarmos como vamos lidar com a água do lugar onde estamos construindo.

Ou como lido com os resíduos na minha própria residência, ou como lido com o consumo… Como posso aplicar um olhar de cuidado para cada coisa que eu faço no meu dia a dia? Uma pergunta é muito forte neste momento: isso que estou fazendo gera mais vida ou mais morte? Se a gente pensa: “Vou comprar uma comida envenenada com agrotóxico”, isso gera mais vida ou mais morte? Mais morte! Então, posso plantar o meu próprio alimento ou apoiar uma comunidade de agricultores locais. Posso mudar os meus hábitos alimentares. Isso é apenas um pequeno exemplo, mas o mais importante é mudarmos a nossa lente.

Livro da Fe Cortez: Homo Integralis — Foto: Divulgação

Livro da Fe Cortez: Homo Integralis — Foto: Divulgação