Estudo do WWF mostra como produção e consumo de alimentos podem barrar crise climática
Publicação coloca foco em quatro países: Brasil, Colômbia, Quênia e Emirados Árabes Unidos
Estudo inédito do WWF mostra que agir sobre os sistemas alimentares – a cadeia de valor que vai do campo para nossas mesas – pode ser uma das mais eficientes estratégias para lidar com as crises climáticas e de perda de biodiversidade simultaneamente. Porém, esse setor precisa de políticas nacionais específicas e interligadas, além dos acordos globais, uma vez que o perfil dos países produtores de alimentos varia significativamente de acordo com as condições físicas (relevo, temperatura etc.), sociais e econômicas. Lançado em outubro, o relatório “Resolvendo o Grande Quebra-cabeça Alimentar: 20 alavancas para expandir ações a nível nacional” analisa e fornece sugestões para o Brasil seguir como potência agropecuária sem perder sua rica biodiversidade.
“A insegurança alimentar, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade são três dos maiores desafios que a humanidade enfrenta neste momento. Eles colocam a presente geração em risco e deixam para as próximas um planeta instável que não poderá sustentar a todos. Mas é justamente no cruzamento desses três desafios, ou seja, nos sistemas alimentares, que está nossa melhor oportunidade de equacionar o problema”, explica Virginia Antonioli, analista de conservação do WWF-Brasil. “Ao avaliar os sistemas alimentares a partir da lente da conservação ambiental, conseguimos identificar um conjunto de alavancas para a transformação necessária dos sistemas alimentares. Porém certas alavancas oferecem maior potencial em diferentes sistemas, dependendo da ecologia e tendências de produção e consumo”, ressalta.
Embora existam acordos globais de clima, combate à desnutrição e o mundo esteja prestes a firmar um tratado global pela preservação da biodiversidade, o estudo mostra que existe um elevado potencial de transformação com o fortalecimento e harmonização de programas e ações em nível nacional, envolvendo governos, empresas, cientistas e consumidores. O estudo mostra ainda que o reforço de tais compromissos ajuda a atingir as metas globais de clima, biodiversidade e saúde.
Para a transformação necessária dos sistemas alimentares em nível nacional, o WWF identificou 20 alavancas, tais como o apoio a pequenos produtores, fortalecer pesquisa e desenvolvimento e financiar programas de alimentação escolar, por exemplo. Uma conclusão geral é que todos os países precisam reforçar os compromissos em nível nacional. Porém sua eficiência varia de país para país, conforme as características de seus sistemas alimentares. Para facilitar essa identificação, o estudo estabeleceu diferentes tipologias a partir da análise de um grupo de países: Brasil, Colômbia, Quênia e Emirados Árabes Unidos.
Além das diferenças claras de ecologia e sistemas de produção de alimentos, os impactos ambientais também variam enormemente. Quênia e Emirados Árabes Unidos têm emissões de gases de efeito estufa e perda de biodiversidade per capita relativamente menores que o Brasil e a Colômbia, cujos impactos são significativamente maiores. O Brasil, por sua vez, contém vários biomas que são globalmente significativos em termos de carbono, biodiversidade e apoio aos meios de subsistência dos povos indígenas e tradicionais. O país possui a flora mais diversificada do mundo, com 55 mil espécies (22% do total mundial) identificadas até o momento.
O relatório inclusive caracteriza o Brasil como um ponto crítico ou “hotspot” de sistemas alimentares; ou seja, um país que devido às suas características, tem maiores impactos nacionais e globais quando degradado, assim como por outro lado, tem alto potencial de ganhos positivos pela implementação de ações de conservação. Considerando também a urgência de reverter o cenário de insegurança alimentar que vem crescendo no país, é urgente que medidas de promoção a uma produção e consumo sustentável de alimentos sejam implementadas no Brasil.
Segundo o relatório do WWF, os sistemas alimentares do Brasil, Colômbia e Quênia podem se beneficiar da oferta de incentivos financeiros e fiscais para melhorar o consumo. Mais da metade dos domicílios brasileiros enfrenta algum nível de insegurança alimentar e, consequentemente, tendem a consumir mais alimentos ultraprocessados por serem menos caros que os alimentos in natura. Por isso, o relatório recomenda a implementação de políticas para tornar os alimentos frescos e saudáveis mais acessíveis e de fácil acesso a diversas partes da população.
Outras alavancas alimentares, especialmente o aumento da conscientização dos consumidores, o fornecimento de incentivos financeiros e fiscais para melhorar o consumo e o aumento de exposição das diretrizes alimentares nacionais, podem ajudar a proporcionar benefícios para a saúde e metas sociais, tanto em termos de redução da mortalidade prematura quanto de redução da incidência de doenças relacionadas às dietas alimentares.
Muitas ações para melhorar as práticas de produção também podem proporcionar benefícios sociais, como aumentar a renda dos produtores e reduzir a insegurança alimentar. Ampliar o armazenamento de carbono por meio da restauração de pastagens, por exemplo, pode reduzir as emissões e o uso da terra, e aumentar a lucratividade. Práticas de produção positivas para a natureza não só beneficiam a biodiversidade e o clima, mas também melhoram outros serviços ecossistêmicos que apoiam os meios de subsistência e o bem-estar das pessoas.
O relatório do WWF recomenda ainda a utilização de programas de rastreamento que garantam que uma produção livre de desmatamento e alinhem as práticas de produção aos padrões de sustentabilidade das principais regiões de importação, como a União Europeia. Isso precisa ser acompanhado pela aplicação de políticas, programas de monitoramento e implementação de práticas agrícolas favoráveis à biodiversidade. Por meio do programa ABC+, o Brasil já investiu na promoção da adoção de práticas agrícolas de baixo carbono, como sistemas integrados de lavoura-pecuária-agrofloresta, restauração de pastagens e plantio de florestas comerciais.
Sistemas alimentares na encruzilhada do clima e da biodiversidade
Os sistemas alimentares são atualmente uma das maiores causas de perda de biodiversidade em todo o mundo: 70% de toda a perda de biodiversidade em terra e 50% do consumo de água doce estão intimamente ligados à forma como produzimos alimentos e ao que comemos, segundo a última edição do relatório Planeta Vivo, do WWF, o qual mostra que os números da população da vida selvagem caíram em média 69% de 1970 a 2018. Paralelamente, os sistemas alimentares geram cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa, contribuindo significativamente para as mudanças climáticas e a poluição.
O relatório do Grupo de Trabalho III do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2022 e a Avaliação Global da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) de 2019 vincularam diretamente o progresso nas metas globais para clima e biodiversidade à transformação do sistema alimentar.