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“Era como um médico medindo a pressão de uma pessoa”: estudo avalia resistência da Amazônia à seca e mostra que árvores sofrem até embolia

“Era como um médico medindo a pressão de uma pessoa”: estudo avalia resistência da Amazônia à seca e mostra que árvores sofrem até embolia

Pesquisa publicada na prestigiada revista científica Nature busca entender relação entre eventos climáticos extremos, como secas severas, e mortalidade de árvores na floresta

Quando se pensa na floresta amazônica o que vem à mente é uma imensidão verde, homogênea e totalmente úmida. Mas essa percepção está longe da realidade, pois na verdade há várias florestas dentro dela, cada uma com características diferentes, algumas inclusive adaptadas à falta de chuvas. Agora, um estudo em larga escala, realizado em 11 sítios espalhados por toda a região, constatou que a capacidade da maior floresta tropical em lidar com a falta de chuva varia ao longo de sua extensão. A pesquisa também mostra que em algumas partes as árvores emitem mais carbono do que consomem.

O trabalho foi feito por uma equipe de 80 pesquisadores do Brasil, da Europa, do Peru e da Bolívia e coordenado por brasileiros, como a geógrafa Júlia Tavares, doutora em Geografia pela Universidade de Leeds e atualmente pesquisadora na Universidade Uppsala, na Suécia, e o brasileiro Rafael Silva Oliveira, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, um dos autores. A pesquisa faz parte do Tremor — junção de sílabas da expressão “tree mortality”, ou mortalidade de árvores —, projeto financiado pelo Conselho de Pesquisa sobre Ambiente Natural do Reino Unido.

Os 11 sítios estudados estão distribuídos em áreas do centro-leste da Amazônia (próximas de Manaus e do Pará), do sul (Mato Grosso), e no oeste (Acre, Peru e Bolívia). De acordo com Tavares, a pesquisa analisou como as diversas espécies de árvores se adaptam à seca e como diferentes áreas da floresta são vulneráveis às mudanças climáticas. “Nosso estudo traz evidências sobre a heterogeneidade da Amazônia, destacando a diferença entre a sensibilidade das florestas do oeste, na região de Acre, Peru e Bolívia, menos resistente à seca, e do centro-leste, mais próximo de Manaus e Pará, e do sul, no Mato Grosso, que suportam melhor a falta de chuva”, explica. “O trabalho também identifica, pela primeira vez, que a capacidade da floresta de atuar como sumidouro ou fonte de carbono para atmosfera é relacionado com a fisiologia das árvores.”

Ela diz que muitas pessoas pensam na Amazônia como uma grande floresta sem diferenças de uma parte para outra. “Mas não é”, garante. “Ela é composta por inúmeras regiões florestais, que abrangem diferentes zonas climáticas, desde locais que já são muito secos até aqueles que são extremamente úmidos.” No estudo, os pesquisadores queriam ver como esses diferentes ecossistemas estão lidando com as mudanças climáticas, para poderem começar a identificar regiões que estão em risco particular de seca ou condições com menos chuvas.

Para isso, eles coletaram amostras de 540 árvores de129 espécies das áreas selecionadas. “Nesses locais, nós conhecemos todas árvores, de que espécies são, quanto crescem por ano, quais e como morrem”, conta Júlia. “Então, desses inventários florestais nós conseguimos ter uma noção de longo prazo do balanço de carbono. Unindo essa informação com a amostragem de características fisiológicas das plantas fizemos no estudo, conseguimos demonstrar que a capacidade da floresta de absorver carbono está ligada a essas características.”

Os ramos das plantas foram coletados das copas, a uma altura de 30 a 40 metros, durante as estações úmida e seca do ano. As amostras de tecido foram usadas para medir a hidratação das árvores, o que varia ao longo de um período de 24 horas. Era necessário medir essa hidratação durante os períodos de baixo e alto estresse hídrico. Para fazer isso, as coletas dos galhos foram feitas às três da manhã, quando a Amazônia estava em total escuridão e mais úmida e as plantas estavam recarregando seus níveis de água, e ao meio-dia. Ou seja, em cada um dos 11 sítios foram coletadas amostras duas vezes por dia.

Rafael Silva Oliveira, um dos autores do artigo publicado na Nature, em trabalho de campo. — Foto: Divulgação/Unicamp

Rafael Silva Oliveira, um dos autores do artigo publicado na Nature, em trabalho de campo. — Foto: Divulgação/Unicamp

Todo esse trabalho foi para realizar a primeira pesquisa sobre o estresse hídrico enfrentado pelas árvores em toda a bacia amazônica e como elas podem lidar se, como preveem alguns modelos climáticos, a Amazônia ficar significativamente mais quente e os padrões de chuva mudarem. Para isso, a equipe mediu a pressão das árvores, para ver quão estressadas elas estavam. “Era como um médico medindo a pressão de uma pessoa, só que em vez da sanguínea era a da água nos vasos (xilemas) das plantas.”

A bióloga Fernanda Barros, pesquisadora da Universidade de Exeter, na Inglaterra, que também participou do estudo, acrescenta que em cada sítio estudado, a equipe selecionou espécies representativas e dominantes na comunidade e avaliou uma série de atributos de funcionamento das árvores. “Por exemplo, características do xilema (tecido de transporte de água da planta), parâmetros que medem o quanto as plantas estão hidratadas no período mais seco do ano e como elas estão operando dentro dos limites de sua segurança hídrica”, conta.

De acordo com ela, eventos de seca podem exigir muito das árvores pois elas precisam transportar água sob uma tensão muito alta nos vasos. “Existe um limite de tensão antes de a planta começar a sofrer danos, que podem levá-la à morte”, explica. “Esse limite varia entre as espécies e as regiões. No campo, conseguimos medir esse limite e também o quanto cada árvore está operando com mais ou menos segurança dentro dele.”

Tavares destaca as principais descobertas da pesquisa. “Uma delas é que a Amazônia não é homogênea em termos de suas características fisiológicas”, explica. “Isso significa que diferentes partes floresta têm níveis de resistência à seca maior do que outras. As florestas mais úmidas têm um aparato hidráulico, isto é, uma estrutura para suportar uma seca, menor do que as de áreas mais secas.”

Isso ocorre por causa de uma característica chamada de resistência à embolia, que varia de região para região na floresta amazônica. Para transportar água de que necessitam, as árvores precisam que ela suba até as folhas para conseguir manter as suas funções vitais. Em situações de seca, os vasos delas são bloqueados por bolhas, ou seja, embolia, o que interrompe esse transporte de água, podendo levar à planta à morte.

Os pesquisadores descobriram que no oeste da floresta (Acre, Peru e Bolívia), que são suas partes mais úmidas, as árvores têm uma menor resistência à seca. Mas em contrapartida, por estarem menos expostas ao estresse hídrico, estão mais seguras quanto aos riscos das mudanças climáticas. Pelo menos por enquanto, por ainda não terem sofrido consequências delas.

Em contraste, a floresta do centro-leste, região de Manaus e Pará, e sul, no Mato Grosso (na fronteira agrícola), onde historicamente houve queda nos níveis de chuva, as árvores apresentaram maior resistência à seca. Mas isso não é uma boa notícia para a floresta. O estudo revelou que as plantas nessas partes da região correm maior risco de morrer devido à falta de precipitações. Ou seja, estão no limite de sua resistência.

Tavares explica que isso se deve ao fato de que nessas regiões, as mudanças climáticas foram mais intensas, com maior aumento da temperatura e diminuição das chuvas. “Provavelmente essas árvores estão além do seu limite fisiológico”, diz. “Elas estão preparadas para aguentarem uma tensão hídrica muito grande. Mas a mudança no clima lá está sendo tão intensa, que as plantas não estão conseguindo lidar com isso.”

Com o estudo, os pesquisadores descobriram também que à medida que o risco de mortalidade por seca aumenta, a capacidade das árvores de armazenar carbono é significativamente reduzida. “Constatamos pela primeira vez que existe uma relação entre características fisiológicas das plantas e a capacidade da floresta de absorver carbono”, conta Tavares.

De acordo com ela, isso acontece porque a mata em situações de seca deixa de crescer e com isso deixa de absorver carbono da atmosfera e incorporar na estrutura dela. “Além disso, quando as árvores morrem todo carbono que está nelas é liberado pra atmosfera”, explica. “Por isso, é importante entender as características fisiológicas dessas árvores pra aguentar secas atuais ou futuras.”