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El Niño chega intenso e com alerta de incêndios para quase 20% das cidades

El Niño chega intenso e com alerta de incêndios para quase 20% das cidades

Total de área ameaçada até outubro no país chega a cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados, segundo o Cemaden; eventos extremos, como tempestades e altas temperaturas, também estão previstos com o fenômeno

Primavera com El Niño não é a estação das flores. É do calor e do fogo. A chegada de setembro marca o início do período de maior atividade do fenômeno climático. Ele traz temperaturas elevadas em todo o Brasil e o aumento do risco de incêndios no Cerrado, no Pantanal e em parte da Amazônia. Daí para frente, é o que a Organização Meteorológica Mundial (OMM) chama de “mergulho em terreno desconhecido”: um clima de extremos nasce do temido fenômeno combinado a mudanças climáticas.

O “maçarico” da última semana sentido no país foi só um prenúncio do que vem pela frente. A Agência de Atmosfera e Oceanos dos Estados Unidos (Noaa, na sigla em inglês) estima em 95% as chances desse El Niño, que se acentua agora no fim de agosto, se prolongar ao menos até fevereiro de 2024. A combinação de calor e seca aumenta o risco de incêndios. Há 493 municípios brasileiros em nível de alerta alto e 546 em nível de alerta, com quase 5 milhões de quilômetros quadrados de área ameaçada, ao menos até outubro, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Os dados foram apresentados em reunião mensal de avaliação e previsão de impactos do Cemaden, em 15 de agosto.

De acordo com o mesmo boletim, há 75 áreas de proteção (unidades de conservação, terras indígenas e reservas extrativistas) em alerta alto e 136 em alerta para incêndios, totalizando uma área de 1,5 milhão de quilômetros quadrados sob risco de queimadas.

— O El Niño está muito intenso, as condições de temperatura acima da média histórica. Deve ser menor volume de precipitação em algumas regiões do país, especialmente na região Norte, partes do Centro-Oeste, do Pantanal. Isso cria uma situação dramática — afirma João dos Reis, pesquisador do Cemaden.

Nas áreas de risco, estão o Centro-Oeste, parte de Minas Gerais, da Amazônia e do Nordeste. No Pantanal, embora a cheia tenha voltado com força este ano devido às chuvas do ano passado, há muita matéria orgânica para queimar no solo, diz Reis.

Ele salienta que o fogo está diretamente associado a atividades humanas. Quando elas aumentam, como o desmatamento, há mais queimadas e incêndios florestais. Este ano, o desmatamento do Cerrado acumulado até julho cresceu 20% em relação a 2022.

— Este ano especialmente está preocupante porque o El Niño intenso vai encontrar muito material orgânico desmatado em anos anteriores para queimar. A previsão é essencial para o planejamento — frisa o pesquisador.

É o caso da região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, que nos últimos dois anos, nessa mesma época, foi palco de incêndios de grandes proporções. Lá, no coração do Cerrado — chamado de “a caixa d’água do Brasil” —, 240 famílias de agricultores e quilombolas correm contra o tempo para recuperar nascentes e solos destruídos pelo fogo e desmatamento.

— Há cada vez mais incêndios e também nascentes secando. Quando meu filho era criança (hoje tem 19 anos), nós vínhamos a essa cachoeira, e a água batia na cintura. Hoje, não molha nem os pés — diz Claudomiro de Almeida, de 42 anos, sobre uma das nascentes na Vila de São Jorge, em Alto Paraíso de Goiás.

Moradores da Chapada dos Veadeiros jogam sementes em área devastada pelo fogo: tentativa de recuperação e de evitar mais tragédias — Foto: Cristiano Mariz
Moradores da Chapada dos Veadeiros jogam sementes em área devastada pelo fogo: tentativa de recuperação e de evitar mais tragédias — Foto: Cristiano Mariz

Idealizado por ele, o grupo Cerrado de Pé reúne coletores de sementes nativas, usadas para dar vida a áreas do bioma arrasadas pelas chamas. Desde 2017, 600 hectares do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foram restaurados pela ONG. Para esta primavera, há alerta de incêndio para municípios que fazem parte do parque, incluindo Teresina de Goiás, em vermelho no mapa.

— Tenho medo que, daqui a 10, 20 anos, o parque não exista mais — teme o líder do Cerrado de Pé.

Planeta em vermelho

A comparação do El Niño de 2023 com o de 1997, o mais forte do século passado, estampa em vermelho a preocupação dos cientistas. O El Niño se caracteriza pela elevação da temperatura do Pacífico Equatorial. Mas este ano não apenas o Pacífico está mais quente, mas todos os oceanos estão com temperaturas acima do normal, destaca José Marengo, coordenador-geral de Desenvolvimento e Pesquisa do Cemaden. Os oceanos estão tão quentes que o vermelho, que representa as anomalias de temperatura nos mapas climáticos, domina o planeta.

Água quente no mar é sinal de problemas em terra firme, com mais calor, tempestades e aumento de temperaturas. Os cientistas não sabem ainda como as anomalias oceânicas simultâneas ao El Niño vão se manifestar nos próximos meses, mas estão preocupados.

Marengo observa que este ano a Noaa emitiu alerta de uma temporada de furacões no Atlântico Norte, que superaqueceu, mais ativa do que o normal. Isso, por si só, já alarma. Mas o que amplifica o estranhamento é o fato de que os El Niños normalmente reduzem a atividade de furacões. Por enquanto a tendência é de que este El Niño seja de moderado a forte, e os modelos ainda não projetam um efeito devastador como em 1997.

Terras desmatadas para criação de gado em Goiás: Cerrado sobre com derrubadas e queimadas — Foto: Cristiano Mariz
Terras desmatadas para criação de gado em Goiás: Cerrado sobre com derrubadas e queimadas — Foto: Cristiano Mariz

Os meses críticos costumam ser dezembro, janeiro e fevereiro. Mas esse período pode flutuar para antes ou depois dependendo da intensidade e da interação com outros eventos climáticos. Renata Tedeschi, climatologista do Instituto Tecnológico Vale (ITV) e estudiosa do El Niño na América do Sul, prevê que até outubro ou novembro os impactos serão relativamente fracos. Mas ela lembra que o fenômeno é uma bomba de calor e libera uma quantidade colossal de energia na atmosfera. Uma elevação de apenas 0,5°C na temperatura da água numa faixa tão grande de oceano — aproximadamente do tamanho da Amazônia Legal brasileira — libera calor capaz de transformar o clima do mundo. Para a especialista, há condições para termos um super El Niño, com potência para reduzir as chuvas em toda a Bacia Amazônica e com alcance para além do Brasil. Uma redução nas chuvas amazônicas provoca efeito dominó em outras áreas do continente sul-americano.

A partir da primavera, a expectativa é de ondas de calor em todas as regiões do país, diz o meteorologista Gilvan Sampaio, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e autor de um livro sobre o El Niño:

— Podemos ter ondas de calor recorde e uma primavera e verão com tempestades mais intensas. No Sul, elas serão certamente mais volumosas.

Ele frisa que, com a configuração atual do Atlântico Sul, o cenário que se prevê é o de seca no Nordeste, no período de fevereiro a maio de 2024, justamente a estação das chuvas no Semiárido. Para o Sudeste e o Centro-Oeste, a certeza continua a ser a de temperaturas elevadas, sem impacto no volume total de chuva.

— O volume não muda, mas pode vir todo concentrado em poucos dias, com tempestades fortes e perigosas — adverte Sampaio.

O Norte e o Leste são as áreas mais vulneráveis da Amazônia, mais sujeitas a queimadas. Os grandes incêndios de 1997/1998 em Roraima ocorreram durante um El Niño poderoso.

Alice Grimm, professora titular do Laboratório de Meteorologia da Universidade Federal do Paraná e especialista em El Niño, enfatiza que o fenômeno chegará num processo climático complexo, com mudanças de cenário muito rápidas.

— Podemos dizer é que, em média, chove mais no Sul e terá mais seca no Norte e Nordeste — salienta.

Mas ela explica que, em El Niños fortes, é possível que, em janeiro e fevereiro, no auge do verão, aconteça o que os cientistas chamam de “reversão do sinal”, com a estação ficando menos quente:

— É uma esperança.

Esperança esta que não vem de graça. O alivio virá depois de uma primavera de calor escorchante. Com a Terra em clara tendência de aquecimento, se 2023 e 2024 baterem recordes de aquecimento, eles não vão durar muito. Tedeschi admite que, seja qual for o quadro que começa a se desenhar, não tem como “dar boas notícias”.

Sampaio concorda:

— O pior está por vir.