Conheça a desconhecida e ameaçada ‘Galápagos’ da Europa
São por volta de 8h da manhã, e sinto um ar frio enquanto olho para o horizonte nebuloso do Lago Ohrid, que fica na fronteira entre a Albânia e a Macedônia do Norte.
Um grupo de pequenos barcos de pesca de madeira, pintados com cores primárias fortes, vai aumentando lentamente à medida que se movem em direção à costa.
Um deles encosta na margem ao meu lado, onde um senhor com um boné de beisebol surrado está esperando para comprar peixe do pescador.
Os pescadores vão para o lago todas as manhãs, a partir das 4h, para pescar a truta de Ohrid — conhecida na costa albanesa como “koran”.
É uma espécie que existe apenas neste lago e que é muito procurada em toda a região graças à sua deliciosa carne rosada, que costuma ser grelhada ou assada.
É popular aqui desde os tempos medievais, quando era celebrada na poesia.
O problema é que essa popularidade está ameaçando agora sua existência. Na década de 1990, eram pescadas mais de 120 toneladas por ano no lago. De 2012 a 2018, a média foi de 61 toneladas.
“Trinta anos atrás, podíamos sair com cerca de cinco linhas e pescar 30 kg”, conta Roland Bicja, um pescador de Lin, uma vila pitoresca repleta de flores silvestres situada na margem albanesa do lago.
“Agora, colocamos 100 anzóis e mal pegamos 3 kg.”
Cada família aqui tem uma longa tradição na pesca, e cada casa tem seu próprio barco ancorado do lado de fora. O pai e o avô de Bicja eram pescadores, e ele descreve ir ao lago todas as manhãs como uma experiência quase espiritual:
“Quando estou no barco, é como se [meu pai] ainda estivesse lá comigo.”
Mas Bicja e seus colegas sabem que estão em uma situação precária.
Eles precisam pescar a truta de Ohrid para seu sustento, mas, se pescarem muitas, pode acabar não sobrando nenhuma — e não haverá mais ganha-pão para as diversas pessoas que trabalham no lago.
É por isso que ele e seus companheiros agora fazem parte de um projeto que visa reabastecer o lago com trutas de Ohrid, enquanto mantém os pescadores empregados.
De dezembro a março, quando os peixes estão desovando, a pesca comercial é proibida no lago.
Em vez disso, os pescadores são pagos para pescar as trutas, coletar o esperma e os óvulos sem matar os peixes, e fecundar artificialmente os óvulos.
Em seguida, são levados para uma incubadora local, onde nascem e crescem por 10 meses.
Mais tarde, os pescadores são pagos para soltá-los de volta na água.
É uma solução ambiental e social para um problema que as comunidades pesqueiras de água doce enfrentam em todo o mundo.
O Ohrid é um dos lagos mais antigos do mundo, e acredita-se que tenha se formado entre 4 milhões e 10 milhões de anos atrás.
Suas águas azuis-esverdeadas hipnóticas são cercadas por montanhas cobertas de neve, e várias cidades e vilarejos estão localizados em suas margens, nos lados albanês e macedônio.
O local é considerado há muito tempo sagrado pelo cristianismo ortodoxo, e acredita-se que a maior cidade macedônia da região — também chamada Ohrid — já tenha ostentado 365 igrejas, uma para cada dia do ano.
O alfabeto cirílico, que é usado em muitas línguas eslavas, incluindo o russo, também foi desenvolvido aqui na Escola Literária de Ohrid.
O lago foi declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 1979, tanto por seu significado cultural quanto por sua imensa beleza natural.
No entanto, este lugar especial está ameaçado não só pelo excesso de pesca.
A construção e a poluição também aumentaram na última década devido ao “boom” do turismo.
“Em 1979, era imaculado”, conta Mechtild Rössler, diretora do centro de patrimônio mundial da Unesco.
“Mas, com o tempo, se tornou motivo de preocupação.”
O lago em si é muitas vezes chamado de Galápagos da Europa, devido ao grande número de espécies encontradas em nenhum outro lugar a não ser aqui.
São 212 no total, abrangendo toda a cadeia alimentar — de algas e zooplânctons a plantas, caracóis e minhocas. Há 17 espécies de peixes no total, das quais oito são endêmicas.
O lago é descrito pelos cientistas como “um museu de fósseis vivos”, diz Spase Shumka, professor da Universidade Agrícola de Tirana, capital da Albânia.
Em seis milhões de anos de isolamento, as espécies dentro dele foram capazes de evoluir de forma única.
Segundo a Unesco, é de longe o lago com maior biodiversidade do mundo, se levarmos em conta o tamanho.
Shumka explica que o lago é oligotrófico, “o que significa que é um lago transparente com poucos nutrientes”.
Isso torna a água maravilhosamente límpida e segura até para os humanos mergulharem as mãos e beberem.
No entanto, também significa que tem uma produtividade baixa — em outras palavras, os peixes se reproduzem em um ritmo muito mais lento em comparação com a maioria dos outros lagos.
As espécies aqui evoluíram para prosperar nessas condições incomuns, incluindo a truta de Ohrid.
Elas demoram cerca de cinco a seis anos para atingirem a maturidade sexual e, mesmo depois disso, têm apenas 2 mil-2,5 mil óvulos por quilo de peso corporal. Para efeito de comparação, uma carpa tem 500 mil.
Também são muito dependentes do nível incomum de oxigênio do lago e só conseguem sobreviver em águas com no máximo 15,6 °C.
Mas essa evolução delicada dentro do Lago Ohrid torna os peixes vulneráveis a mudanças.
Shumka descreve o lago como um “ecossistema de cima para baixo” — a truta de Ohrid, que é um dos dois principais predadores junto ao caboz de Ohrid, controla as populações de todas as espécies mais abaixo na cadeia alimentar.
Se seus números caem, há um impacto em todo o lago.
Um plano para repor a truta de Ohrid foi desenvolvido pela primeira vez por cientistas da Macedônia do Norte em 1935, quando a mesma fazia parte da pré-comunista Iugoslávia.
Naquela época, os pescadores pegavam os peixes usando redes de arrasto quando era época de desova, e a truta estava nadando perto da costa.
Um limnologista local, Sinisha Stankovic, entendeu que isso estava acabando com a reprodução dos peixes.
Ele estabeleceu um sistema em que os pescadores coletavam os óvulos e esperma da truta antes de vendê-las no mercado, e fundou o Instituto Hidrobiológico de Ohrid, em que os óvulos fecundados artificialmente poderiam se desenvolver.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Albânia e a Macedônia do Norte foram governadas por regimes comunistas, sendo a última como parte da ex-Iugoslávia.
Ao longo desse período, a situação ambiental em ambos os lados manteve-se razoavelmente estável.
A pesca era praticada apenas por empresas estatais, por isso o número de trutas capturadas era bem controlado. A fertilização artificial também ajudou a manter os números.
Bicja se lembra de como, quando era criança, costumava olhar de sua casa para as águas límpidas do lago repletas de peixes.
“Naquela época não tínhamos permissão para pescar”, ele recorda.
“Mas eu costumava sair para nadar por conta própria e pescar com anzol, quando tinha cerca de 12 anos.”
Tudo mudou no início dos anos 1990. Os regimes de ambos os lados entraram em colapso, levando ao caos generalizado.
Todas as regras e sistemas que estavam em vigor agora haviam sido abolidos. A Albânia, em particular, sofria com extrema pobreza.
Como a truta de Ohrid continuava sendo um dos peixes comerciais mais populares da região, e autoridades fragilizadas regulavam a atividade, muita gente desesperada viu uma maneira fácil de ganhar dinheiro.
“De repente, todos estavam no lago”, lembra Bicja.
“Havia 100, talvez 200 barcos lá.”
Essa situação continuou por anos, criando um declínio nas populações de trutas do qual o lago ainda está tentando se recuperar, de acordo com Zoran Spirkovski, chefe de pesca aplicada e agricultura do Instituto Hidrobiológico de Ohrid.
Ele me disse que ele e seus colegas começaram a cooperar com o lado albanês do lago na década de 1990 para tentar encontrar uma solução.
“Havia uma antiga incubadora em Lin, que havia sido usada para a criação de trutas arco-íris durante o período comunista”, afirma.
“Era uma espécie exótica, o que não está de acordo com nossas leis ambientais. Mas pensamos que as instalações poderiam ser reconstruídas.”
Em 2005, o Banco Mundial concordou em financiar a reforma da incubadora, que passou a ter capacidade para produzir um milhão de alevinos (peixes recém-nascidos) por ano.
Do lado macedônio, outros 2,5 milhões são criados.
Eu visitei a incubadora durante minha viagem a Lin, logo após conhecer Bicja. Fica no final do vilarejo, depois de passar por campos repletos de cebolinha.
Pássaros cantam alto ao meu redor e lagartos disparam cruzando meu caminho enquanto caminho até lá.
Me encontro com Celnike Shegani, que administra a incubadora desde sua reabertura.
“Esses alevinos são minha vida”, diz ela.
“Até meus netos me perguntam: ‘Como estão os alevinos?’, assim que eles me veem.”
As restrições à pesca foram introduzidas na Albânia desde os caóticos anos da década de 1990, e agora todos devem ter uma licença e ser membro da associação de pesca local.
O processo de fertilização dos óvulos também foi aprimorado ao longo dos anos para se adequar melhor à espécie da truta de Ohrid.
Na década de 1930, os peixes eram vendidos no mercado após a coleta dos óvulos.
Como a truta de Ohrid pode se reproduzir muitas vezes ao longo da vida, a venda comercial de peixes durante o período de desova agora está proibida.
Em vez disso, os pescadores capturam os animais vivos, coletam os óvulos e espermatozoides e os misturam em uma tigela com água para fecundá-los.
Um funcionário público então vem e compra os peixes vivos de volta, e leva os óvulos fecundados para a incubadora.
Celnike pega alguns alevinos para me mostrar — eles têm cerca de cinco centímetros de comprimento e se contorcem e brilham na luz.
“Eles têm cerca de 400-600 miligramas e cerca de quatro meses agora”, diz ela.
Quando atingirem 4g, os pescadores vão coletá-los e soltá-los no lago.
O processo do lado macedônio também evoluiu. Spirkovski me disse que o ideal é que a fertilização seja realizada por cientistas, e não por pescadores, para garantir que o número ideal de óvulos seja usado, mas a Albânia não tem recursos para isso.
Então, na Macedônia do Norte, os pescadores são pagos apenas para ajudar a capturar as trutas e levá-las até um grande barco de pesquisa.
O óleo de cravo é usado como um anestésico natural enquanto os óvulos são coletados.
Especialistas, como Shumka, acreditam que o projeto de repovoamento está ajudando, mas ainda faltam dados sobre quantos peixes soltos sobrevivem.
“Apresentei um método em que 5% dos alevinos teriam um fio de prata inserido no focinho”, explica Spirkovski.
Os peixes adultos capturados seriam então testados com um detector de metais, para estimar quantos daquele grupo sobreviveram. Mas, infelizmente, essa parte do projeto não foi implementada.
“Não temos financimento”, afirma Shumka.
“Teríamos de compensar os pescadores pela perda comercial de peixes.”
No lado macedônio, há atualmente uma proibição total da pesca da truta de Ohrid até que dados precisos possam ser coletados.
Do lado albanês, embora a pesca esteja mais controlada do que costumava ser, especialistas acreditam que deveria ser proibida a captura da truta antes de atingir um determinado tamanho, devido ao longo tempo que leva para atingirem a maturidade sexual.
“Eu sempre devolvo os peixes quando são pequenos, mas você vê pessoas que não fazem isso e vendem”, concorda Bicja.
A pesca ilegal também ainda acontece no lago, embora a associação de pescadores tenha autoridade para confiscar os equipamentos de quem é flagrado.
“Não sei se é possível em qualquer lugar se livrar disso completamente”, diz Spirkovski.
“Só podemos trabalhar para tentar reduzir.”
Aqueles que vivem à beira do lago e dependem dele para sobreviver esperam um dia receber a ajuda necessária para conservar este lugar único.
Há dois anos, foi recomendada a inclusão de Ohrid na lista de patrimônios ameaçados da Unesco. Caso o lago seja adicionado no futuro, encorajaria a comunidade internacional a tomar conhecimento.
“Houve algum progresso”, diz Rössler.
“Mas ainda há um acúmulo de problemas. É preciso fazer mais para preservar essa natureza primitiva.”
Independentemente da percepção internacional do peixe, aqui no Lago de Ohrid, as pessoas que dependem do lago sabem o que ele significa.
“A truta de Ohrid é a coisa mais importante que temos aqui no nosso vilarejo”, conclui Bicja.
“Todos precisam se importar com ela, e entender como é especial.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.