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Como excesso de iluminação urbana impacta o meio ambiente e nosso bem-estar

Como excesso de iluminação urbana impacta o meio ambiente e nosso bem-estar

Intensa iluminação nas grandes cidades pode causar impactos na saúde humana e na natureza. Por isso, pesquisadores e a sociedade civil trabalham para controlar esse tipo de poluição

Dormir de janela aberta, muitas vezes, é impossível. E isso não se deve apenas a pernilongos ou ladrões. Para garantir a segurança do condomínio onde moro, na Zona Oeste de São Paulo, foram instalados poderosos refletores no topo de cada prédio, no quarto andar, que iluminam não apenas o local que requer segurança, mas toda a área do jardim e prédios vizinhos. Como meu apartamento fica justamente no quarto andar, a luz do prédio ao lado reflete na parede a cerca de meio palmo acima do meu rosto quando estou deitado na cama. Mas, para os moradores dos andares abaixo, a luz invade diretamente toda a casa.

A astrofísica Tânia Dominici vive a mesma situação. Ela mora no décimo andar de um prédio no Rio de Janeiro, onde a luz do estacionamento de um hospital vizinho alcança diretamente. “A iluminação racional é aquela que incide no local que se planejou iluminar. Se as pessoas reclamam de falta de iluminação, isso ocorre onde elas circulam, e não dentro do quarto”, critica Dominici, que é pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e coordenadora da Céus Estrelados do Brasil, ONG criada em 2020 com a finalidade de defender a iluminação racional nas grandes cidades.

Ao longo da evolução, os seres vivos se desenvolveram com base na alternância entre o claro do dia e o escuro da noite, no chamado ciclo circadiano. Mas, nos últimos 100 anos, com o desenvolvimento tecnológico, o céu noturno está cada vez mais iluminado, especialmente nos centros urbanos, como se fosse um sinônimo de modernidade e segurança.

Não se defende uma volta à escuridão do passado, mas pesquisadores no Brasil e no exterior mostram que é preciso entender que o excesso de luz pode ser prejudicial à saúde humana, além de impactar a natureza e a própria produção científica, sobretudo a observação astronômica. Não à toa, o problema também é conhecido como poluição luminosa.

A iluminação pública cuja luz invade residências é chamada de “luz intrusa”, mas é possível notar no céu das cidades uma luz difusa no horizonte, muitas vezes alaranjada, chamada de skyglow (brilho do céu, em tradução livre). Pesquisa divulgada em 2021 pela Universidade de Exeter, na Inglaterra, concluiu, a partir de imagens de satélite e dados sobre o consumo de energia, que a poluição luminosa cresceu 49% em todo o mundo entre 1992 e 2017, com maior taxa de evolução em países da América Latina, Oceania e África.

O índice pode ainda ser maior, ultrapassando 200% de alta, pois os sensores dos satélites não captam a irradiação da luz azul, um dos componentes de cor que cria a luz branca gerada pelas lâmpadas LED, que estão substituindo as luminárias de vapor metálico na iluminação pública em todo o mundo.

O MAESTRO DO SONO

Essa poluição luminosa tem impacto direto no organismo humano. A professora Regina Pekelmann Markus estuda esses efeitos da claridade à noite. Integrante do Laboratório de Cronofarmacologia do departamento de fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), ela explica que é apenas durante a noite que produzimos o hormônio melatonina, sintetizado na glândula pineal.

Além de ser muito importante para o sistema imunológico e orquestrar o funcionamento de vários órgãos do corpo, é também um dos estímulos para o sono acontecer. “A melatonina não é indutor do sono, mas um maestro do ritmo biológico segundo o que está acontecendo no meio ambiente”, detalha Markus.

Imagem do globo terretre (Foto: earthobservatory.nasa.gov)
Imagem do globo terretre (Foto: earthobservatory.nasa.gov)

O problema é que o excesso de iluminação impede a produção de melatonina. “A luz induz esse bloqueio, porque todo o processo de indução depende de acionar uma via neural que se origina na retina, passa pelo hipotálamo, o relógio biológico central, para gerar as enzimas que produzem a melatonina”, esmiúça a pesquisadora.

Os efeitos disso vão muito além de noites maldormidas. Para se ter ideia, a produção de melatonina pelo organismo está ligada, por exemplo, à resposta do sistema imunológico contra vírus e bactérias invasoras. Desarranjos na síntese desse hormônio impactam cada pessoa de diferentes maneiras.

Os danos podem refletir até sobre quem ainda nem nasceu. Uma pesquisa publicada no Southern Economic Journal em janeiro do ano passado, feita por cientistas da Universidade Lehigh e da Faculdade Lafayette, ambas nos Estados Unidos, estudou oito cidades de Nova Jersey correlacionando a poluição luminosa à ocorrência de partos prematuros e nascimentos de bebês abaixo do peso.

De acordo com a investigação, o excesso de luminosidade aumenta em 12,9% o número de nascimentos pré-termo. Isso porque as luzes da cidade, segundo esses cientistas, interrompem a produção de melatonina e prejudicam o sono das grávidas, fundamental para a formação das crianças.

Mas nada de sair por aí se entupindo com comprimidos de melatonina. É necessária orientação médica para fazer uso do suplemento, autorizado para consumo no Brasil em outubro de 2021 pela Anvisa. Também é crucial um olhar crítico sobre as evidências científicas.

A bióloga Claudia Moreno, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, pondera que ainda faltam pesquisas controladas suficientes para comprovar o elo entre os efeitos da falta de melatonina e patologias, especialmente o câncer. Junto a 26 cientistas de outros países, Moreno conduziu um estudo do Instituto Internacional de Pesquisa do Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre os impactos da troca do dia pela noite no caso de trabalhadores de empresas aéreas, hospitais, call centers, petrolíferas, entre outras empresas que precisam funcionar 24 horas.

“A poluição luminosa cresceu 49% entre 1992 e 2017, sobretudo na América Latina, Oceania e África

Pesquisa First Estimation of Global Trends in Nocturnal Power Emissions Reveals Acceleration of Light Pollution (2021)

A pesquisa, que se baseou na análise de diversos levantamentos científicos, foi publicada em 2019 no periódico The Lancet Oncology e concluiu que o trabalho noturno, de fato, está ligado a fatores cancerígenos. “Vimos um risco aumentado para câncer de mama e próstata”, relata Claudia. Porém, não se pode atribuir isso apenas ao bloqueio da melatonina. “O que sabemos hoje é que tem um risco relacionado à inversão dos seus horários de dormir e acordar e o câncer. A inibição da melatonina vem junto com isso, mas aparentemente, só a inibição dela não está ligada ao maior risco de câncer em trabalhadores que são expostos à luz à noite”, assegura.

PREJUÍZOS À FAUNA

Se os reflexos da poluição luminosa podem gerar efeitos de longo prazo nos seres humanos, eles são radicais no caso de animais e insetos. O professor Alessandro Barghini prevê o desaparecimento de mariposas e diversos insetos polinizadores com hábitos noturnos. Autor do livro Antes que os Vaga-lumes Desapareçam ou Influência da Iluminação Artificial sobre o Ambiente (Annablume), Barghini é um economista italiano de 81 anos, que trabalhou como consultor internacional no planejamento energético por mais de 50 anos, escrevendo e lecionando sobre o tema na USP e em outras universidades da América Latina.

Sua preocupação com a natureza o levou a fazer mestrado e doutorado em ecologia. Hoje, ele vive dividido entre a Itália, onde é vice-presidente do Istituto Nazionale di Sociologia Rurale, e o Brasil, dando aulas sobre meio ambiente e culturas indígenas da América Latina.

Para navegar à noite, os insetos buscam uma baliza em um ângulo constante. “Quando a baliza é uma estrela, tudo bem, ele consegue ir e voltar sem dificuldade. Quando a baliza é uma fonte de luz terrestre, o inseto acaba se aproximando em uma espiral equiângulo, às vezes batendo na lâmpada (como acontece com frequência com os besouros e as mariposas) ou circulando em volta da lâmpada até se cansar. A atração é tanto mais forte quanto mais a radiação luminosa tiver componente azul”, explica Barghini.

As luzes também atraem insetos que transmitem doenças a humanos. “O aumento da transmissão do mal de Chagas, da leishmaniose e da malária em ambientes silvestres quando se utiliza a iluminação artificial está comprovado. Nos dias de hoje, quando um vírus silvestre está perturbando o mundo todo com uma terrível epidemia [a do coronavírus Sars-CoV-2], não é o caso de atrair vetores de doenças, conhecidas e desconhecidas”, alerta o professor.

Aves também são impactadas pelo abuso luminoso. Um estudo de 2014 da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, estimou que 988 milhões de aves migratórias morriam no país anualmente em choques com prédios, especialmente devido à poluição luminosa ou ao cansaço decorrente da desorientação espacial que luzes da cidade podem produzir.

Uma pesquisa publicada em 2019, realizada pela Cornell Lab of Ornithology, fez um monitoramento de 125 grandes cidades estadunidenses e mostrou que a iluminação de Houston, Chicago e Dallas são as que mais prejudicam os pássaros durante a migração de primavera e outono.

Em Nova York, no local das antigas torres gêmeas do World Trade Center, em setembro são acesos dois feixes de luz azul direcionados para o céu, o que também ameaça esses animais voadores. “As pessoas fazem arte sem pensar nos impactos, produzem algo estético sem saber que isso faz mal ao meio ambiente”, observa a arquiteta Silvia Maria Carneiro de Campos, especializada em iluminação e integrante do comitê internacional da Internacional Dark Sky Association, entidade que busca combater a poluição luminosa.

Memorial iluminado em Nova York, tributo aos ataques terroristas de 2001 às Torres Gêmea (Foto: Getty Images)

Memorial iluminado em Nova York, tributo aos ataques terroristas de 2001 às Torres Gêmea (Foto: Getty Images)

Há ainda impactos na fauna oceânica. Os filhotes de tartaruga marinha, por exemplo, dirigem-se para a água após o nascimento, guiados pelo brilho da luz da Lua e das estrelas refletidas nas ondas do mar. Mas, com a iluminação pública na orla das praias, eles podem se perder e acabar morrendo atropelados.

O episódio mais grave aconteceu em 2019, em Pontal da Barra, praia de Maceió. “Foi o caso mais chocante de todos, porque os filhotes foram para pista e literalmente foram achatados. Foi uma das piores coisas que eu já vi”, lembra a bióloga Waltyane Bonfim, coordenadora de pesquisa do Instituto Biota, na capital alagoana.

E não foi o único caso. Em janeiro deste ano, filhotes de tartaruga foram para o calçadão das praias de Jatiúca e Jacarecica, também em Maceió. As pessoas carregaram os animais direto para o mar, o que não é recomendado, porque a transição pela areia colabora para que as fêmeas retornem para desovar no mesmo local.

Segundo Bonfim, foi preciso que um dos integrantes do instituto usasse o refletor de uma emissora de televisão que estava cobrindo o caso, direcionando a luz para dentro do mar a fim de que os animais seguissem o caminho correto.

O Biota se reuniu com a prefeitura de Maceió no fim de 2021, para garantir com que a iluminação pública não prejudique as tartarugas. O Ibama regula o assunto com uma portaria, mas somente a Bahia tem legislação estadual sobre isso. No âmbito municipal, apenas as cidades de Campinas (SP) e Caeté (MG) contam com uma legislação sobre poluição luminosa, mas isso em bairros próximos aos observatórios públicos dessas cidades.

No cenário internacional, a República Tcheca foi o primeiro país a criar uma legislação federal sobre o assunto, em 2002. Cidades norte-americanas e europeias já realizaram modificações nos seus sistemas de iluminação pública para minimizar efeitos nocivos. “Desde 2011, a França tem regulamentação contra a poluição luminosa e, em 2018, aumentou as restrições quanto à luz artificial. Mas o Brasil é muito atrasado em relação à política pública. O mercado não quer se modernizar e investir em tecnologia”, lamenta a professora Silvia Carneiro.

ESCURIDÃO BEM-VINDA

Com o apoio de ONGs como a Céus Estrelados do Brasil e o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), o Congresso Nacional está discutindo uma legislação para proteger da luz áreas turísticas e regular o uso da iluminação pública, especialmente em regiões de observação astronômica.

No país, as luzes de vapor de sódio foram trocadas por lâmpadas de vapor metálico entre as décadas de 1980 e 1990. E, agora, estão sendo substituídas por lâmpadas LED. Mas essas, além de conterem a faixa azul do espectro, usam uma temperatura de cor elevada, de até 6,5 mil kelvins.

“IIuminar bem não é iluminar em excesso, e sim com eficiência, e a comunidade em geral deve ser alertada para isso”

Saulo Gargaglioni, coordenador do Observatório Picos dos Dias, em MG

O engenheiro Saulo Gargaglioni, atual coordenador do Observatório Picos dos Dias, em Brazópolis (MG), está sugerindo em discussões com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) uma revisão da norma 5101 para que a iluminação pública tenha temperatura igual ou menor a 3 mil kelvins, o que faria com que a luz ficasse mais em um tom amarelo. “Algumas prefeituras exageram na potência instalada”, avalia Gargaglioni.

Ele ilustra o problema como uma foto que ele mesmo fez da influência do skyglow na observação do céu ao redor do telescópio Zeiss (veja abaixo), um dos quatro equipamentos do observatório. A espessa camada laranja no horizonte são as luzes noturnas da cidade de Campos do Jordão (SP), distante 74 km de Brazópolis.

Na foto, skyglow em Campos do Jordão, a 74 km do Pico dos Dias (Foto: Saulo Gargaglioni))
Na foto, skyglow em Campos do Jordão, a 74 km do Pico dos Dias (Foto: Saulo Gargaglioni))

O brilho de outras dez cidades prejudica a observação do céu noturno no Pico dos Dias. “O LNA está estudando a criação de um selo astronomy-friendly [amigável à astronomia, em tradução livre], que poderá ser utilizado por associações e fabricantes de iluminação no Brasil”, compartilha o especialista.

Para ele, a recuperação do céu escuro não depende só de medidas normativas, mas também de campanhas de educação ambiental com caráter sensibilizador e didático. “IIuminar bem não é iluminar em excesso, e sim com eficiência, e os profissionais e a comunidade em geral devem ser alertados para isso”, sugere Saulo.

A física Fabiana de Andrade Oliveira, embaixadora da associação internacional Dark Skies For All no Brasil, acredita que o ensino nas escolas e o estímulo à observação do céu podem despertar a preocupação dos jovens sobre a poluição luminosa. “É um passo importante a observação astronômica, para que a pessoa entenda o que é poluição luminosa”, afirma Oliveira, que estudou a relação da educação com a astronomia em seu doutorado, na Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp).

Além da atuação educacional, são importantes ações de reconhecimento de áreas livres de poluição luminosa. Em dezembro, o Parque Estadual do Desengano, no noroeste do estado do Rio de Janeiro, ganhou o título de Dark Sky Park, o primeiro da América Latina a receber a distinção da International Dark Sky Association.

Carlos Dário, gestor do parque, explica que demorou três anos para que o local obtivesse o reconhecimento, que o protegerá do avanço das cidades e estimulará políticas públicas nas localidades próximas à região. Das 1,9 mil espécies de pássaros do país, 486 vivem no Desengano, o que faz o parque ser internacionalmente reconhecido por sua avifauna. “Agora, estamos fazendo visitas noturnas com escolas da cidade [de Santa Maria Madalena, local da sede do parque]. Na trilha, mostramos para as crianças o efeito da poluição luminosa em plantas, morcegos, corujas”, relata Dário.

Ainda que num ritmo aquém do necessário, a sociedade aos poucos se organiza para evitar que a iluminação das cidades se transforme em um verdadeiro sol da meia-noite.